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Depoente: João Cominotti

Entrevistador: Maria Clara Medeiros Santos Neves
Data do depoimento: 29/12/2003

Infância

Eu nasci e fui criado na Matutina, município de Itaguaçu, mas hoje pertence a Itarana, em 5 de janeiro de 1915. Meus pais foram criados na roça, eram lavradores.

Meu pai era Pedro Cominotti e minha mãe, Teresa Bressiani Cominotti. Minha mãe veio da Itália com oito anos, com os pais dela — a mãe se chamava Rosa Bressiani e o pai José Bressiani. Meu pai nasceu aqui, em Cariacica. A mãe dele chegou no porto, e eles se encostaram por aí, procurando por parentes. Quando a mãe dele chegou no porto de Vitória, no outro dia ele nasceu. Ele é capixaba legítimo.

Para cá também vieram um primo e uma prima, filhos de um irmão de meu pai. O meu tio se chamava Francisco Cominotti.

Na verdade, minha mãe veio para o Brasil, pela primeira vez, aos seis anos, mas o pai dela não se adaptou bem e eles acabaram voltando para a Itália. Daí a dois anos vieram novamente para o Brasil e ficaram.

Meus pais foram criados na roça, em Itaguaçu. Meu avô tinha um terrenozinho — ele trabalhava na roça também — na Matutina, que hoje pertence ao município de Itarana.

Meus pais se casaram em 1902, quando minha mãe tinha 20 anos. Meu pai entrou lá na mata, ele mais o cunhado dele, tirou um pedaço de terra, fez a casinha dele de estuque, e começou a criar a família lá. Era um cantão que fazia até medo.

Minha mãe teve onze filhos, mas só criou nove, dois morreram logo depois do nascimento, era um casal. O último a morrer foi meu irmão Francisco, lá em São Mateus.

Meu pai começou a plantar e colher café, pegou um dinheirinho, aí fez uma casa boa, naquele mesmo lugar. Meu pai pagou um tal de José Simão, carpinteiro, para construir a casa. Era uma casa grande, com toda a estrutura em madeira e paredes de pau-a-pique. Era varas por baixo, e depois se jogava o barro de dentro para fora e de fora para dentro. Depois disso as paredes eram rebocadas e pintadas. Só quarto de dormir tinha seis, duas salas grandes, uma varanda de dois metros de largura e dez metros de comprimento, com escada que descia, porque a casa era alta. O chão era assoalhado e as paredes de estuque. A cozinha era separada da casa, com um fogão grande à lenha. Não havia banheiro, nós íamos no mato, e o banho tomávamos numa bica com água que vinha de uma nascente. Lá em casa tinha, acho, quatro nascentes. A bica tinha dois metros de altura.

A água da nascente era usada para tudo: beber, cozinhar, tomar banho etc.

Nós nunca compramos sabão. Minha mãe fazia. Nós comprávamos latas de soda, juntávamos a cinza do fogão para fazer de coada. Quando matava um capado sobrava torresminho, aquelas coisas, ela fritava e guardava, quando juntava uma boa quantidade, nós tínhamos um panelão grande em que cabiam quatro latas de água. Aí ela botava fogo naquilo, fazia de coada, voltava a misturar, botava um pouco de soda e fazia o sabão. O sabão fazia bastante espuma, era melhor do que os que a gente compra por aí, e era usado para tudo, lavar panelas, tomar banho. Uma vez morreu uma capada nossa, que pesava mais de três arrobas, e minha mãe fez sabão com ela. Deu mais de 40 quilos de sabão. Ela encaixotou ele e guardou. Esse sabão durou anos e anos.

Minha infância se passou na roça mesmo. A nossa diversão de domingo era o bodoque, um pau envergado com uma corda. Quando nós chegávamos da roça a gente ia lavar os pés, pescoço ou tomar banho. Depois disso, nós íamos para o barranco fazer umas pelotas de barro. Levávamos para casa. O fogão estava aceso e a gente colocava aquelas pelotas em cima da chapa para secar. Quando chegava domingo, o almoço era às 7:00h (o café era às 5:00h e era só o café preto) e depois dele nós saíamos para caçar passarinhos com o bodoque.

Nós não sabíamos o que era brincar. Com oito anos eu já ia para a roça com o meu pai para carregar água. Quando acabava a água, ele mandava eu buscar. Eu passava o dia todo lá. Quando não tinha água [para carregar] eu pegava no cabo da enxada para capinar. De todos os meus irmãos, quem mais trabalhou fui eu. Minhas irmãs quando pequenas trabalhavam na roça do mesmo jeito que nós [homens], e em casa minha mãe ensinava elas a cozinhar. O dia que minha mãe resolvia ir para a roça, minhas irmãs ficavam em casa fazendo comida.

Tinha dia que quando dava 6:00h e nós estávamos no caminho da roça ainda. Nós íamos trabalhar longe de casa e só chegávamos de volta às 6:00h da noite já. Para a roça nós levávamos o almoço, que era às 8:00h, e às 3:00h levavam a janta para nós. Quando nós chegávamos em casa nos lavávamos e se a gente ainda quisesse comer, esquentava a comida e comia. No trabalho usávamos às vezes chapéu ou boné. Ninguém se importava com o sol não.

Na roça nós plantávamos café, milho, feijão, criava criação. Quando nós saímos de lá [para o Hospital] deixamos duas juntas de bois[ 1 ] e duas vacas de leite. Nós criávamos muitas galinhas, patos, cachorros.

Nós também moíamos a cana e fazíamos a rapadura [que servia de açúcar], melado. Nós tínhamos muita cana. Meu pai mandou fazer um engenho. A gente moía a cana, botava aquela garapa num tachão grande, botava fogo. Aquilo ia secando e se a gente quisesse tirar o melado tirava. Se quiséssemos rapadura era só deixar secar mais e fazia aquele açúcar. Nós chamávamos de açúcar batido. O produto era colocado ainda quente dentro de formas. Quando secava a rapadura nós tínhamos as barras. Na hora de fazer o café, a rapadura era fervida na água e se dissolvia.

Nós fazíamos também a farinha. Nós plantávamos a mandioca, arrancávamos ela no ponto, raspávamos, lavávamos bem e deixávamos enxugar. Depois disso ela era passada no molinete.[ 2 ] A massa era então colocada na prensa, que no nosso caso era feita com varinhas cruzadas numa arapucazinha. A massa, colocada dentro de um saco de estopa e botava um pau comprido e pendurava uma pedra na ponta daquele pau para apertar a massa e fazê-la secar. Ela era deixada assim de um dia para o outro. No outro dia tirava aquilo e tinha a massa enxutinha. Ela era então passada na peneira para tirar os farelos mais grossos, deixava enxugar mais um pouco e colocava no tacho e ia torrando ela até chegar no ponto de comer.

Com a goma retirada da mandioca nós fazíamos biscoitos. Nós tínhamos um forno grande, com uns dois metros de largura, e em dia de sábado minha mãe mandava botar fogo no forno. Juntava ovo, que lá tinha muita galinha, um pouco de água e gordura. Ela fazia aquela montoeira de biscoito e nós comíamos até não querer mais. Ela enchia um saco, colocava em cima da mesa, amarrava a boca para não entrar formiga, e nós comíamos durante dois ou três dias.

O café minha mãe torrava em casa, socava no pilão e coava, fazia ele ficar todo fininho.

O macarrão era feito em casa. Meu pai comprava o trigo.

A tropa ia buscar o café e o milho lá em casa, e levava uma caixa de querosene, dois sacos de sal (um de sal grosso[ 3 ] e outro de sal fino), um sacão grande de trigo, de 60 quilos, 3 ou 4 peças de pano (que davam para passar o ano).[ 4 ]

A tropa era de dez burros com cangalhas. Eram sempre dois homens. Um deles era o arrieiro, que monta, e o outro era o tropeiro, o tocador de mulas. Um homem só não conseguiria carregar aqueles burros por causa daquelas bolsas. Elas precisavam ser penduradas na cangalha e para isso eram necessários dois homens (cada um levantando uma bolsa). Depois eles ainda colocavam os sacos de café por cima. Eram três ou quatro sacos de café em cima de cada burro.

Eu conheci muitos tropeiros. Eles vinham da fazenda do Guido. Os tropeiros eram empregados que juntavam aqueles burros, davam milho a eles e cuidavam do transporte das mercadorias. Guido Adami tinha muitas tropas e depois comprou o carro e acabou com elas.

O milho nós colhíamos e guardávamos no paiol e também era levado pela tropa. Para nós, o milho servia para tratar da criação e fazer fubá. Para fazer o fubá nós o levávamos para a casa dos outros, a uma grande distância. Eles tinham moinho lá, e nós moíamos o milho e pagávamos em dinheiro, 3$000 réis por saco. Canjiquinha nós não fazíamos muito não, não costumávamos comer muito dela.

Nós não produzíamos o arroz. Quando chegava o tempo da colheita dele, meu pai dava umas voltas pelos lugares que plantavam e comprava às vezes 10 ou 20 sacos. Para transportar esse arroz ele arrumava burros emprestados. Quando ele chegava em casa, minha mãe embalava bem embaladinho e ia socar no pilão de madeira. O pilão era feito pelo meu pai, que escava o tronco de madeira com um formão. (Aqui eu fiz um a fogo, porque não tinha ferramenta.)

Nosso feijão nunca era vendido, era somente para o nosso consumo. Quando nós viemos para cá nós guardamos 20 sacos de feijão. Tinha muitas pessoas que iam trabalhar para nós, eram muito pobres, que recebiam uma cota de feijão, com dois três filhos em casa. Naquele tempo o valor de uma pessoa que trabalhava na enxada era 2$000 réis, três, conforme fosse. Então era assim que meu pai pagava a eles, só com mantimentos de casa. Assim era com o feijão e farinha.

Minha mãe cozinhava feijão, arroz, canjiquinha, polenta. O forte mesmo era a polenta e o macarrão. As carnes eram de porco, galinha, de boi (às vezes). Nós fomos criados com polenta, para falar a verdade. O arroz minha mãe cozinhava, todo dia na janta, um litro. Era uma porção de gente. O macarrão era feito mão: ela fazia aquela massa com ovo, bem amassadinha, e depois com um rolete de pau, sobre uma toalha limpinha colocava aquela massa em cima da mesa e ia relando aquele pau assim, e ela ia esticando. Depois enrolava bem enroladinha [a massa esticada] e ia cortando. Essa massa não podia ser guardada, tinha que fazer e cozinhar. Se a massa fosse seca, poderia ser guardada por cerca de uma semana.

Nós freqüentávamos a igreja católica do Divino Espírito Santo, localizada na Matutina, e tinha ao lado um cemitério. Mais tarde, quando ela ficou em ruínas, meu primo tirou licença com o padre e fez a igreja dentro do terreno dele, num lugar mais plano e melhor, ficando então mais distante do cemitério.

Minha mãe rezava pouco e em italiano, mas acabou esquecendo a língua. Ela costumava cantar alguma coisa para nós, mas eu já não me lembro mais.

Lá fora, quando chegavam os meses de maio e junho, mês de muitos santos, eles faziam novenas e todos os dias de tarde tinha reza na igreja. Então eles faziam leilão e nós levávamos coisas para o leilão, podia ser qualquer coisa, até mercadoria. Nessa época também os vizinhos costumavam se reunir. Às vezes a pessoa fazia muito biscoito em casa daquela goma de mandioca e juntava muita gente para comer aquilo, tomar café, dançar. Mas era só isso: a pessoa fazia as coisas de comer em casa e convidava os outros, e assim dançavam ao som da concertina, bandona e harmônica. Muitas pessoas tocavam harmônicas, mas poucos tocavam a concertina, que é mais difícil.

Todos nós éramos batizados, e quando crescemos fomos crismados. Isso de acordo com as possibilidades do padre, que nem sempre podia ir até lá. Geralmente ele ia uma vez por mês, ou mesmo de dois em dois meses.

Nas festas de casamento se matava muita criação, fazia-se muito macarrão, cozinhava-se muito arroz e toda a vizinhança comparecia. Eram de 50 a 60 pessoas para almoçar ou jantar que fosse. Faziam bailes onde se dançava a noite inteira, até amanhecer o outro dia. O sol raiava e o pessoal ainda estava dançando. E tinha concertina. Eu conhecia a casa de uma gente lá em que até as mulheres tocavam concertina e bandona. Todo casamento tinha concertina.

Um camarada de lá tinha concertina e não tocava. Ele comprou ela só para ir fazer pagode na casa dos outros. Ele montava a cavalo e levava aquela caixa da concertina. Ele se chamava Francisco Adami, filho de Guido Adami. Os dois eram padrinhos de duas irmãs minhas. Mataram ele (Francisco) lá em Itarana. Ele era muito bravo, filho de gente rica… o pai dele não deixava ninguém prender ele… a polícia queria prender ele, ele botava peito… aí o pai dele ia lá e mandava soltar ele.

O Sr. Guido Adami era o mais poderoso do lugar. Ele tinha venda e vendia fiado para aquelas pessoas e no fim as pessoas que não podiam pagar perdiam seus terrenos para ele. Ele tinha muita terra. Ele já morreu há muitos anos.

Mas Francisco Adami não tocava concertina, ele só carrega ela. Agora, tinha um tal de Antônio Campista, que morava lá pro lado de Afonso Cláudio, que em qualquer festa que se fizesse ele era chamado. A mãe dele morava perto da minha casa e se chamava Balbina. Ela era negra e foi criada no meio dos escravos e quando estava mocinha o patrão dela se apoderou dela e ela ganhou um filho e quando ele cresceu e acabou a escravidão, ela se casou com um homem que trabalhava pintando casas, rebocava. Na verdade, o nome de Antônio Campista era Antônio Soares. Eles tinham três moças em casa — Arlinda, Ana, e a terceira eu não lembro o nome dela — irmãs de Antônio Campista, que tocavam concertina igual aos homens.

Minhas irmãs foram crescendo e casando, cada uma foi caçando o seu rumo, e quando a gente veio para cá [Hospital Pedro Fontes], das mulheres só tinha a Terezinha. Se casaram quatro irmãs e o meu irmão mais velho (Joaquim). A Maria largou o marido e juntou com outro e desse outro que ela teve o menino aqui no hospital (e logo depois ela morreu), ela veio para cá trazendo um menino de 11 anos e uma menina de 4 ou 5 anos. Esses dois filhos morreram aqui menos o último menino.

Eu fui para a escola, pela primeira vez, aos 9 anos, e fiquei lá uns 3 meses. Lá não tinha escola pública. Apareceu então um homem lá, e aquelas pessoas que tinham algum recurso se reuniram e pagaram aquele homem (3$000 réis cada criança) e meu pai pagava. Aqueles que não podiam pagar, os outros pagavam por ele. Essa aula ficava bem distante de casa, como daqui a Cariacica. O professor era ruim, bravo, batia muito na gente, botava a gente de castigo. Não deu para eu aprender nada.

Depois apareceu uma professora na fazenda de Guido Adami. Ele arranjou uma casa no pasto e uma professora de nome Isaura, que era muito boa, tinha muita paciência com a gente. Foi com ela que eu aprendi um cadinho, aprendi a assinar o meu nome. Eu tinha então uns doze anos. Depois disso, o segundo marido de minha irmã Maria, pai do menino que nasceu aqui, ia lá em casa todos os dias de tarde ensinar a gente. Ele se chamava José Maciel.

Mas eu só aprendi a ler aqui. Logo que eu cheguei aqui tinha um homem que dava aula à noite. Então de dia a gente ia trabalhar, de tarde, quando chegava em casa, ia tomar banho, jantar e ia para a escola.

Eu nunca arrumei namorada na roça. Com certa idade eu fiquei doente [portador de hanseníase, ou lepra] — aos 10 anos —, mas ainda não sabia o que era, só soube depois que os doutores começaram a andar por lá.[ 5 ] Meus irmãos, exceto os casados, estavam também doentes. Éramos então eu, Pedro, Francisco, Maria e Terezinha. O pessoal tinha um medo de nós danado. Depois que os doutores descobriram que nós éramos doentes, ficamos condenados de um jeito que todo mundo tinha medo da gente.

De vez em quando a gente ia até a rua [cidade, Itarana] para comprar alguma coisa, remédios ou tratar de outros negócios, consulta médica. Naquele tempo, quando minha mãe se casou aquilo lá se chamava Boa Família, depois passou a se chamar Figueira de Santa Joana e depois de se tornar município passou a ser Itarana.[ 6 ]

Aqui [no Hospital Pedro Fontes] morreram a Maria, a Terezinha, o Pedro, o meu sobrinho … Francisco…

Data da entrevista: maio/2003



No Hospital Pedro Fontes

Eu tinha a idade de dez anos e já estava doente, mas não sabia ainda o que era. Meus pais não tinham a doença. Minha mãe morreu aqui com 97 anos. Viemos todos da minha casa para cá. No começo disso, quando o doutor descobria que nós estávamos doentes, éramos todos condenados. Toda a família era condenada, inclusive os parentes. Todos éramos obrigados a comparecer no posto uma vez por mês para fazer exame. […]

Nós recebemos um ofício mandando que comparecêssemos num lugar na roça, para onde a ambulância ia. Com a intimação, tivemos o prazo de sete dias para comparecer ao local, onde o carro, uma ambulância, como um “galinheiro”, iria nos buscar.

Meu pai era Pedro Cominotti, e minha mãe era Teresa Bresciani Cominotti. Viemos todos para cá, inclusive meus irmãos, que éramos quatro filhos solteiros em casa.

Durante a viagem, lá na serra do Limoeiro, em Itarana, o motorista estava meio perdido e, como chovia muito, jogou a ambulância num buraco. Por causa disso, nós todos ficamos lá das 21:00h até as 6:00h do dia seguinte, quando um caminhão carregado de café passou por lá. Eu acordei o motorista, que estava dormindo e falei do caminhão para que ele pedisse ajuda para nos tirar de lá. Então o motorista ligou o farol da ambulância, saiu de dentro dela para falar com o motorista do caminhão. Depois das primeiras explicações, o motorista do caminhão se dispôs a ajudar. Com isso conseguimos sair daquele buraco.

Chegamos na Colônia eram 3:00h da tarde, sem comer nada, pois eles não deixavam ninguém sair de dentro do carro. Na época o diretor daqui era Arnaldo Zel, esse não morreu, e está lá em Copacabana até hoje. Pedro Fontes era o chefão, não morava na Colônia.

Eu cheguei aqui no dia 15 de julho de 1937, com 22 anos. Na época não havia nada para se comprar aqui, nem uma banana. Quem cozinhava para nós era uma mulher doente. A comida era muito ruim, e só era servido um tiquinho de comida. A gente na roça trabalhava muito, mas, graças a Deus, trem de comer nós tínhamos muito.

Tomávamos aquele golinho de café de manhã cedo, ninguém mais tinha café durante o dia, era só o golinho de manhã cedo, e um pãozinho. O almoço saía às 11:00h, às 7:00h da noite saía a janta, mas só aquele pratinho de comida, muito ruim mesmo.

Quando minha família chegou aqui, as casas ainda estavam fechadas. As casas então eram entregues para nós, uma para cada família. Eles diziam: “Vocês podem ficar aí, morar aí, isso aí é seu”, e pronto. Não se achava nada para comprar. Nem roupas nós trouxemos, não trouxemos nada, disseram que não precisávamos trazer nada.

Dia de domingo, “a mulher” dava um almoço, uma hora depois de meio-dia, não dava mais nenhum café pra gente, e não tinha jeito de se comprar nada. Um dia nós estávamos sentados assim na varanda, eu e meu irmão, o Francisco, e meu pai sentado na sala, quieto, pensando na vida. Aí o meu irmão disse “É, eu estou com tanta fome, que estou até com os olhos amarelos.” E íamos comer o quê, se não tinha nada? Não se achava uma folha de nada aqui. Meu pai disse: “E eu se soubesse que isso aqui era desse jeito, eles podiam me trazer pra cá, mas só se me matassem e me trouxessem morto, porque eu não viria para um lugar desses não. Tanto que nós trabalhamos, tanta coisa de comer que nós tínhamos lá, e agora eu vejo meus filhos passarem fome e eu não tenho nada para dar a eles para comer, com tanta coisa que nós deixamos lá, que tínhamos de tudo.” Aí ele começou a chorar, e chorou até lá pelas 8:00h, aí foi deitar. [Isso aconteceu uns dois meses depois de terem chegado à Colônia.].

A partir de então ele começou a passar mal, parou de comer. Ficou quarenta dias sem comer nem beber nada, só reclamando e chorando, e cada vez pior, e foi enfraquecendo, e quando completou os quarenta dias ele faleceu. Morreu magrinho que só estava o couro dele e o osso.

Durante o período em que ele esteve doente o Dr. Pedro Fontes foi lá ver ele com o diretor. O diretor ia lá todo dia. Ia lá, conversava com ele, dava uma injeção, dava outra; mas comida, nunca mais colocou uma colher de comida na boca. Quando foi no dia 19 de novembro [de 1937] ele morreu.

Mas antes dele morreu minha irmã. Ela ganhou neném, foi o primeiro menino que nasceu aqui. Ela morreu no dia 7 de novembro de 1937. Ganhou menino no dia 7 de outubro, aí quando ia vencer um mês que ela havia ganhado o menino, ela pediu um purgante, porque na época a mulher, quando ganhava neném, quando ia fazer um mês, tomava um purgante composto. Tinha esse dizer, né? Então disseram: “É, mas aqui ninguém usa isso não.” Então ela disse: “Mas eu queria tomar um purgante.” Aí foram até a farmácia, puseram um punhado de sal amargo na garrafa, botaram água, trouxeram e deram a ela. E disseram: “Amanhã você levanta cedo e toma esse purgante.” Aí de manhã cedo ela tomou o purgante, e quando deu 7:00h, eu fui caçar um cafezinho pra tomar, e quando cheguei lá eles estavam tirando ela de dentro do quarto e levaram lá pro cemitério. Ela morreu umas três horas mais ou menos depois que tomou o purgante.

Quando o meu sobrinho nasceu o diretor do Hospital, Dr. Arnaldo Zel, ele me chamou “Ô Cominotti, espera aí! Olha aqui o seu sobrinho. Como se chama o pai dele?” Eu disse “José Maciel” “Ah, não vamos dar o nome de José Maciel nada, vamos botar é Cominotti.” E assim o menino passou a se chamar Luiz Cominotti. O nome de Luiz veio do bispo, D. Luiz [Scortegagna] que visitou o Educandário e se tornou o padrinho dele. O menino tinha poucos dias de nascido quando isso aconteceu. O bispo disse “Vou colocar no menino o nome de Luiz, que é igual ao meu.” E assim ficou: Luiz Cominotti.

Quando ela morreu, meu pai já estava passando mal. E continuou passando mal, passando mal, e morreu no dia 19 de novembro.

O menino, meu sobrinho, [que ao nascer foi levado para o Preventório “Alzira Bley”] está vivo e mora pro lado de Vila Betânia.

Naquela mesma época morreram muitas outras pessoas. Morreu gente igual formiga. O pessoal batia aqui, não saía mais daqui não. Morria aí, ó.

Se nós tivéssemos algum dinheiro, eles tomavam da gente e davam umas fichas de papelão. Aqui não tinha dinheiro não. Se alguém tivesse algum dinheirinho no bolso, eles tomavam todo. Eles davam umas fichas de papelão pra gente usar aqui. Se a gente quisesse comprar qualquer coisa, era com aquele cartãozinho.

Aí meu pai morreu. Aí quando foi de manhã cedo, 6:00h, o diretor chegou lá em casa. Ele chegou lá, entrou dentro de casa, foi lá e espiou, meu pai estava deitado na cama. Aí ele voltou na sala e ficou conversando com a gente.

Quando morriam as pessoas aqui, eles pegavam, e botavam dentro daquele caixão, sem forrar, sem nada, […] e botavam ele lá na igreja. […]

Aí eu falei assim com ele: “Doutor, a gente queria que o senhor deixasse a gente enterrar meu pai do jeito que eles fazem enterro lá fora.” E ele falou assim: “Como é que se faz o enterro lá fora?” “Não tem esse negócio de levar a pessoa no carro assim, e largar lá não. É pra deixar ele aqui, pra gente forrar o caixão, enfeitar ele, e levar assim, carregado na mão.” Ele disse: “É, mas eu nunca vi isso. Como é que é?” Aí eu expliquei a ele. Aí ele falou assim: “E quem é que vai fazer isso aqui?” Tinha um velhinho lá, Antônio Farge [?], que era vizinho nosso aqui. Ele era lá de Alegre. Aí esse velhinho disse: “Se o senhor consentir, eu faço isso, que já fiz muito disso lá fora.” Aí ele [o diretor] ficou pensando, e disse para o administrador que estava junto com ele: “Vai, toma nota das coisas que precisa, ele fala o que precisa aí, e você pega o caminhão e vai lá em Cariacica buscar as coisas que precisa.” Aí o João Henrique, que era o administrador, pegou uma caderneta do bolso e escreveu lá, tomou nota dos metros de pano que precisava, tachinha, porque forrava por dentro e por fora, aí ele tomou nota ali, saiu, e o diretor ficou lá em casa, conversando com a gente.

Pouco depois João Henrique voltou de Cariacica com o material, entregou pro que ia forrar o caixão, trouxe o caixão e deixou na casa dele, e num instantinho ele pregou aquele trem tudo, aí levou o caixão lá em casa. Aí ele falou assim: “E que hora que vai ser o enterro?” Aí eu falei assim com ele [o diretor]: “Ó, o enterro quem vai marcar a hora é o senhor, quem manda, né?” Aí ele disse assim: “Então vamos marcar a hora do enterro pras 4:00h, que eu quero vir cá acompanhar, pra ver como é que é isso, que eu nunca vi.”

Aí, quando o homem deixou o caixão lá em casa, nós apanhamos meu pai, colocamos dentro do caixão, e deixamos na sala, o pessoal aqui do pavilhão todo mundo ia lá pra visitar ele, aí quando deu 4:00h o doutor chegou lá. Veio o doutor, veio o administrador, veio o outro doutor que tinha aí, vieram tudo.

Aí apanharam aquele caixão na mão, pegaram as alças do caixão, o pessoal juntou tudo lá, e saíram carregando, né? Aí chegou na igreja — onde já havia outro defunto — um cadinho e depois levaram no cemitério, e ele ficou espiando.

Aí quando foi na outra semana, morreu outro vizinho nosso, pertinho assim. Ele tinha um casal de filhos em casa, e aí o filho dele falou com ele [o diretor]: “Doutor, eu queria que o senhor deixasse eu fazer igual aos Cominotti.” Ele falou assim: “É, eu acho que isso vai pegar agora.” Aí mandou o João Henrique buscar o pano. Aí foi acompanhar outra vez. Aí ele resolveu, conversou com mais o administrador e falou assim: “Ó, o pessoal agora está querendo fazer assim. Agora vamos fazer o seguinte, vamos arrumar uma caixa de couro pra nós comprarmos pano pra forrar todos os caixões, forrar tudo, e todo mundo ser carregado assim, ó.” Aí começaram a fazer assim, ficou uma coisa mais decente.

Depois da morte da minha irmã e do meu pai, ficamos cinco irmãos e minha mãe morando aqui. Os outros irmãos, que ficaram lá pra fora, eram o Josué, o mais velho da família, que já era casado e que ficou tomando conta das coisas que nós deixamos lá. Eu tinha também uma irmã casada, que morava no Estado de Minas, tinha outra que morava lá em Itarana mesmo. Tinha três irmãs minhas que ficaram lá. Para cá viemos eu, Francisco, Pedro, Teresinha, Maria. [Maria, a única irmã casada a ir para o Hospital, foi a que morreu um mês depois de ter dado a luz a um menino, que seria levado para o Preventório Alzira Bley.]

Nós chegamos aqui em julho, quando foi novembro meu pai morreu, e telefonaram pra lá [para o irmão Josué]. Ele [Josué] veio aqui, mas quando chegou já chegou atrasado, já tinham enterrado ele [o pai]. Pedro Fontes havia deixado ordens para o caso de algum parente aparecer, que deixassem entrar e visitar em casa. Então meu irmão veio, veio ele e um primo meu. Eles foram lá e ficaram conversando, e ele tinha os olhos bem grandes. Quando ele soube que meu pai morreu, ele sabia que nós não íamos mesmo sair daqui, ficou com aquela ânsia de comer tudo o que nós tínhamos lá. Ah, danou. Vendeu criação que nós tínhamos, vendeu mantimentos, tanto vendeu como comeu, ficou com aquilo tudo, e nós ficamos aqui. Ele já morreu.

Esse irmão nunca vinha nos visitar, só veio quando meu pai morreu, só. Minhas irmãs também não vinham. Não entrava ninguém aqui não, minha filha. Olha, tinha esse pedaço de muro lá embaixo, tinha um lugar que eles chamavam de “parlatório”, tinha um quartinho do tamanho disso aqui, ó, agora aqui no meio tinha um balcão com vidro com um metro e tanto de largura. A pessoa ficava naquele balcão, a visita ficava do outro lado, e nós doentes de cá. Ficava o porteiro ali vigiando, pra ninguém passar nada até nós, e nem falar nada. Ficavam dois guardas, pra escutar o que a gente estava falando, e pronto. Se um visitante trouxesse uma coisinha qualquer, o porteiro tinha que abrir aquilo pra ver o que é que tinha, aí então o porteiro é que entregava aquilo pra cá. Mas o doente não podia receber nada lá de fora sem que se examinasse o que era.

A sensação que tive quando cheguei aqui eu nem posso te explicar. Pra falar com a senhora a verdade: isso aqui é um lugar triste. Mas nós fomos nos acostumando com o lugar, e quando o pessoal começou a trabalhar, nós também, eu e meus dois irmãos — o que estava com a perna machucada melhorou, foi lá para casa também, aí nós ficamos todos juntos.

Daí depois veio um sobrinho meu também, apareceu doente — sobrinho mais velho que eu tinha — e que era filho do Josué. Então ele foi ficar lá em casa, junto com a gente. O nome dele era João Francisco Cominotti. Mas aí o Dr. Pedro Fontes botou o pessoal que queria trabalhar para roçar essas beiradas de mangue aí, e não tinha nada, nada, nada, nada. Foi roçando aquelas capoeiras, botando fogo, sapecando aquilo, plantando bananeira, que ele trazia muita banana, plantando muda de coco, pelas beiradas de mangue afora, plantamos foi muito caminhão mesmo de muda de coco. Hoje que acabaram com tudo.

Mas aí, lá embaixo tinha um pedaço de [várzea], eles roçaram tudo, passaram fogo, e no outro dia Pedro Fontes passou por lá, […] e ele falou assim para o prefeito: “É, aí tem muita gente que gosta de trabalhar, você veja se acha algum que já plantou arroz. Olha que lugar bom de plantar arroz!” Aí o prefeito passou lá em casa, que sabia que nós tínhamos sido criados na roça, e falou comigo assim: “Vocês gostam de trabalhar na roça? Vocês não querem plantar arroz não?” E eu falei: “Plantar arroz aonde?” “Lá embaixo, no lugar que puseram fogo ontem. […] Se vocês quiserem plantar arroz lá, o Pedro Fontes me mandou oferecer.” “E de onde nós vamos tirar as sementes de arroz?” “Ele traz.”

Aí nós fomos para lá, arranjamos umas enxadas velhas, destroncamos aquilo, ele trouxe as sementes de arroz e nós plantamos. Colhemos uns cinco sacos mais ou menos. Mas aí não tinha lugar de socar esse arroz. Mas aí arranjamos um machadinho velho, fui lá pro meio do mato, cortei um toco de pau que estava lá, pelejei e rolei ele até o meio da estrada, vim rolando ele e trouxe até em casa. Aí eu ia botando fogo por cima dele assim, ó, e ia fazendo aquele buraco, depois ia tirando aquele carvão, botava fogo outra vez, até conseguir um pilão. Aí começamos a socar aquele arroz.

Aqui tinha um cafezal velho. No mato era café puro purinho. Eles roçaram para baixo ali, ó, cataram a lenha para usar na cozinha e apanhavam só lenha de café, cada pezão de café. Esses pés davam café que fazia gosto, eu e meus irmãos íamos pra lá, naquelas capoeiras, e catávamos um galho de café, um aqui outro lá, nós catamos uns três sacos de café, secamos, guardamos e aí, depois que eu fiz o tal do pilão, nós socávamos o café. As cascas primeiro vão para baixo, aquilo era café puro. Minha mãe achou uma panela velha, jogada fora, lavou bem lavada, e começou a torrar o café naquela panela. Aí nós torrávamos o café e fazíamos o café em casa. Depois que mandaram roçar, acabou tudo.

Encheram as terras com coco, essas beiradas de caminho aí, tudo tinha carreiras de coco, […] encheram tudo de coco, com bananeiras, mandioca, cana, encheram tudo. As canas eram plantadas aqui só para dizer que tinham plantado, que aquilo tudo apodrecia no mato e não deixavam ninguém chupar uma cana. As canas secavam lá e não deixavam ninguém chupar cana. Mas aí, quando as canas estavam já madurando, o diretor foi em São Paulo visitar o pai dele e deixou um outro doutor […], o doutor Galdino, no lugar dele. Esse doutor Galdino […], foi ele que foi nos buscar lá [no interior]. Ele trabalhava aqui. Mas aí, nós pegamos uma madrugada […] e nos afundamos naquelas canas e danamos a chupar cana, aproveitando que o diretor não estava aqui. […] O Dr. Galdino mandou chamar nós todos para ir até ele, e quando chegamos aqui quase fomos todos para a cadeia.

Essa cadeia tinha quinze, vinte pessoas presas. Qualquer coisa [era motivo] para se ser preso: se a pessoa tentasse fugir, eles pegavam e botavam na cadeia, se se discutisse com outro aí, eles pegavam e botavam lá, qualquer coisa, até as moças iam para a cadeia. […]

Quando o Dr. Arnaldo Zel saiu da direção, entrou Dr. José Augusto Soares. Ele foi o primeiro doutor que trabalhou aqui. O Doutor José Soares trabalhava nessa sala aqui, na repartição das mulheres, mulheres e meninos, e lá naquele lugar em que está o Marcelino, lá trabalhava o Dr. Zel, que trabalhava na repartição dos homens. Eram os dois que trabalhavam. O Dr. José Augusto Soares já era doutor aqui desde a inauguração do hospital.

No dia em que se inaugurou o hospital, foram buscar o pessoal que estava na Ilha [da Cal], e acabaram com aquilo lá. Mas aí ficou esse tal de Dr. José Soares e quando completou os quatro anos dele, ele saiu e colocaram outro. Quando o Dr. José Soares saiu veio um tal de Dr. Manhães, e depois saiu o Dr. Manhães e veio um tal de Dr. Jair Lima e depois o Dr. Honório. O Dr. Honório era cunhado do Dr. Pedro Fontes. O nome dele era Dr. Honório Esteves Ottoni. Então ele trabalhou aqui uns tempos, todo mundo andava falando que ele era bravo, que era isso, que era aquilo, mas ele chegou aqui, ele foi naquele lugar ali, onde moram as mulheres ali agora, separado ali, tinha uma prateleira, que dava pra esse fundo de casa aí, […] e esse Dr. Manhães queria que todo mundo tomasse aqueles remédios, mas os remédios tinha mais de quatro anos que estavam vencidos. Ninguém nem sabia os nomes dos remédios, de tão velhos que estavam, as caixas pareciam tijolos na prateleira, de tanta poeira. Aí esse Dr. Honório chegou lá, espiou, pegava uma caixa de remédio na mão, espiava, balançava a cabeça, jogava pra lá, apanhava outro, aí virou pra trás, tinha uma irmã aí, irmã Ângela, que ofereceu a ele: “Ah, doutor, o senhor agora é diretor aí, se o senhor precisar de uma ajuda, eu tenho curso de Farmácia e se o senhor quiser pode me procurar que eu estou pronta pra ajudar.” Aí, ele se virou assim pra trás, tinha um guarda na porta, ele disse: “Olha, vai lá embaixo e chama a irmã Ângela aqui.” Aí, quando ele desceu, chegou lá, a irmã veio correndo, até chegar lá, no lugar em que ele estava. Ele disse: “Olha, irmã, a senhora manda chamar o carroceiro, e esses remédios que estão nessa prateleira aí, derrubem isso tudo aí no chão, manda puxar lá pra baixo (lá embaixo tinha um forno de lixo), bota no forno de lixo e bota fogo, que esses remédios aqui não servem. […] Aí a irmã começou a derrubar aquilo e o carroceiro chegou e puxaram umas três carroças lotadas daquelas caixas de remédio. Ele começou então a trazer remédios novos pra cá, que ele era um doutor muito bom. Pra falar a verdade, nós não gostávamos de nenhum médico. […] Mas a vantagem de Dr. Honório é que ele acabou com aqueles remédios velhos que tinha aí. Olha, tinha caixa de remédio que a gente abria pra ver a bula — que só conhecia na bula, por fora não se via mais nada — que tinha quatro anos de vencido, e o pessoal tomando aquilo. Aí ele mandou queimar aquele trem todo e começou a trazer remédios novatos que o pessoal nunca tinha visto […] e aí foi melhorando. Aí melhorou a comida. […]

[Ao longo do tempo os membros da família] foram morrendo por intoxicação de remédios, foram ficando velhos também. Os irmãos mais velhos que eu tinha, o Josué, a Maria (que morreu depois do parto aqui na Colônia), Rosalina (casada, só foi à Colônia em visita), Ana (também casada, com a família dela), e tinha outra, casada também, Catarina, que está lá pro Estado de Minas. Depois da Catarina venho eu e, depois de mim, vem o Pedro, Francisco, Terezinha. Minha mãe morreu agora, em 1977, e meu irmão Pedro, tem três anos que ele morreu. Morreu aqui sofrendo dos rins. Levaram ele lá em baixo, pra ele fazer hemodiálise uma porção de vezes, aí ele não agüentou não.

De primeiro, nós só tomávamos remédio aqui para fazer experiência. Não havia ainda um remédio que combatia isso, ninguém sabia de nada. Agora, o remédio que começou a dar um resultado, que melhorava a gente, eles davam o nome de “Dapsona”,[ 7 ] uns comprimidos, depois foi um tal de Promim, que vinha lá da América do Norte, mas logo no começo, só tomava aqui quem pudesse comprar. Valia dezoito cruzeiros uma ampola e os pacientes aqui não tomavam, porque não tinha. Aí começaram a dar essa Dapsona e depois dela apareceu uma porção de troço. Em 1948 começaram a dar a Dapsona.

Eu estava bom, enxergando, me casei em 1945 (dia 11 de fevereiro), com Teresa Vale. O marido dela, ele foi pescar […], chegou lá ele escorregou, bateu com a cabeça na pedra e morreu afogado lá. Ela nasceu lá em Alfredo Chaves. [Antes dela vir] para aqui era casada e morava em Castelo. Aí o marido dela estava doente e veio pra cá. Ela ficou lá, quando foi daí um ano ela resolveu vir cá em Cachoeiro de Itapemirim, e pediu o doutor para fazer o exame e ele achou que ela estava doente, porque estava com uma mancha e não sei o quê, e ela falou assim: “Se é que eu estou doente, então quero que você me mande para o lugar onde está o meu marido.” Aí o doutor mandou ela pra cá. Acho que ela não chegou a ficar aqui nem um ano e o marido dela foi pescar lá, caiu na água e morreu. E ela ficou quatro anos aí, viúva. Ela estava tomando conta da Leonora, e a Leonora casou, aí então eu me casei com ela. A Leonora está na enfermaria 10 e era cunhada dela, que casou com o irmão dela.

Com o primeiro marido dela ela teve dois filhos: um nasceu normal e o outro foi abortado. Mas aí ela ficou muito ruim, tomou um remédio com a doutora dela lá em Castelo, que tinha vindo da Itália. Ela deu um remédio a ela e disse “Olha, eu vou te dar esse remédio e você vai melhorar numa coisa, mas vai atrapalhar em outra, porque você não vai ter filhos mais.” E ela respondeu: “Não tem importância não.” Aí tomou esse remédio e nunca mais teve filho não.

Mas aí eu estava bom. Quando estava com dois anos de casado, o tal do doutor que tinha sido diretor daqui, o Dr. José [Augusto] Soares, não era diretor mais, ele cedeu umas amostras grátis de um remédio de São Paulo. Aí me chamou, isso em 1947, e mandou que eu tomasse aquela injeção. […] Aí fiquei deitado na cama o dia inteiro, tremendo, e eles foram lá e me deram as injeções, deram até injeção de “óleo de canforado”, disseram que era bom para […] o coração da gente. Aí o doutor falou comigo assim: “Amanhã cedo você vem cá para tomar outra.” Aí no outro dia amanheci melhor, né, vim cá, cheguei aqui e tomei outra injeção. Tomei três. A visão tinha melhorado um bocadinho. Mas aí, quando a pupila dos olhos foi juntando um bocadinho, deu uma mancha assim por baixo dos olhos, uma lesão branquinha. A claridade fazia doer e sair lágrima dos olhos. Quando foi daí a dois meses, cada vez ficando pior, aquilo acabou de atacar os olhos, e eu fiquei dois anos preso dentro de um quarto escuro, sem poder ver a claridade.

A gente não sabia de nada, que os doutores não explicavam. A gente era obrigado a tomar aquilo, mas não sabia o que que era. Aí fiquei dois anos (1948/49) preso no quarto escuro sem poder ver a claridade. Eu não via nada, ficava nas trevas, não podia acender a luz do quarto não. Aí amarrei um pano preto nos olhos, pus um chapéu pra sair de lá e apanhar um sol, e fui acostumando a sair, mas enxergar, nunca mais enxerguei. Nada. Pode acender dez lâmpadas encostadas em mim, eu só vou sentir o calor delas, mas ver claridade, eu nunca vejo. E pronto, acabou. […] Ainda pensei em tomar umas injeções de Promim, pra ver se melhorava. Aí mandei comprar duas caixas de Promim. Mas eram caras e eu não estava podendo trabalhar, não tinha nada. […] Mas comprei duas caixas assim mesmo, mas tomei aquilo, era muito forte, mas não adiantou nada, por causa dos olhos, mas não melhorou nada. Nunca mais enxerguei não.

Eu trabalhei na roça até 1947, porque depois que fiquei cego acabou.

E nós continuamos, eu mais a minha esposa, mesmo assim nós vivemos 28 anos juntos. Ela morreu em 1973. Ela tinha erisipela na perna.

E esse outro irmão meu [Pedro], que morreu aqui, ele não enxergava também não. No tempo que trabalhou aqui o Dr. Manhães ele estava com os olhos meio vermelhos e o doutor mandou colocar óleo de cação. Botou umas duas vezes, os olhos dele parece que cozinharam, ficaram brancos e nunca mais enxergou também.

O pessoal que brincava aí, aqueles que gostavam de dançar, dia de sábado se fazia baile aqui para dançar, mas eu, graças a Deus, nunca dancei. Faziam carnaval, […] mas era só o pessoal daqui de dentro. De fora não entrava ninguém não.

Começaram a entrar algumas pessoas, muito devagar mesmo, quando trabalhou o Dr. Honório. E trabalhou aqui também um Dr. Vitorino Batalha, não sei ele está vivo ainda, que foi diretor aqui antes do Dr. Honório.

O Dr. Vitorino não sabia a quantidade de dinheiro que tinha aqui dentro, daqueles cartões de papelão que eu te contei, né. Aí ele mandou avisar ao prefeito, ou o delegado, que era para falar com o pessoal que era para todo mundo que tivesse aquele dinheiro de papelão entregasse lá embaixo, na biblioteca, que ele queria fazer um balanço para saber quanto é que tinha. Mas ninguém quis entregar e dissemos: “Não, nós não vamos entregar não.” “Mas o trato é nós fazermos um balanço.” Aí o pessoal falou: “Não. Nós só vamos soltar esse dinheiro para fora para o senhor saber quanto é que tem se o senhor acabar com isso aí e passar o dinheiro bom pra nós.” Aí ficamos segurando, dizendo que não passaríamos e foi indo até que ele resolveu — que ele queria saber quanto é que tinha, né — e falou que se o pessoal passasse aqueles cartões de papelão todos para fora, que ele faria o balanço e passaria o dinheiro bom para dentro. Aí o pessoal passou, e foi quando se acabou com aqueles cartões de papelão e se passou o dinheiro bom para dentro.

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NOTAS

[ 1 ] Cada junta é composta de dois bois e serve para carregar madeira, puxar carro, puxar o engenho.

[ 2 ] Para ralar a mandioca.
[ 3 ] O sal grosso era para a criação, para os animais comerem.
[ 4 ] Minha mãe costurava, fazia camisas.
[ 5 ] Certamente a família foi fichada como doente pela equipe do Dr. Pedro Fontes.
[ 6 ] Aqui ele confundiu com Itaguaçu.
[ 7 ] O informante pronuncia Diasona.

[Depoimento conduzido, transcrito e editado por Maria Clara Medeiros Santos Neves. Parte desta entrevista foi publicada no livro Além das aparências: Memória da Dermatologia no Espírito Santo, da mesma autora. Reprodução autorizada pelo depoente.]

João Cominotti, nascido e criado em Matutina, hoje parte do município de Itarana, ES, a 5 de janeiro de 1915, filho de Pedro Cominotti (descendente de italianos, nascido em Cariacica, ES) e de Teresa Bressiani Cominotti (italiana), ambos lavradores. Aos 10 anos de idade contraiu a lepra e a 15 de julho de 1937, com 22 anos, foi levado para o Hospital Pedro Fontes, no Município de Cariacica. Em 1945 casou-se com Teresa Vale, casamento que durou 28 anos. Ele permaneceu internado no mesmo Hospital até sua morte.

7 Comments

  • wilfredo
    24/03/2016

    Boa noite, conforme relato do meu Tio Avô, João Cominotti, Sou neto de Catarina Cominotti, mãe de Lili Gomes dos Santos, da região de Conselheiro Pena MG, e gostaria muito de saber mais a respeito de minha família.

    Wilfredo Gomes.

    • Janderson
      17/02/2024

      Tenho um arquivo bom sobre a família. Bom Dia Primo.

  • estacaocapixaba.com.br
    03/07/2016

    Prezado Wilfrido,
    As informações que tenho são apenas as fornecidas pelo Sr. João Cominotti e que vão aqui publicadas. Esta entrevista é parte de pesquisa realizada por mim para o livro "Além das aparências: Memória da Dermatologia no Espírito Santo", que foi publicado em 2003. Talvez você encontre mais informações no Arquivo Público do Espírito Santo. Eles têm publicações relacionadas com a imigração italiana.
    Att.,
    Maria Clara Medeiros Santos Neves

  • Unknown
    20/08/2016

    Muito bacana….sou neto de uma de suas irmãs, a Ana Cominotti,…moro em vila velha e estou pesquisando mais sobre a historia de minhas origens…

  • Unknown
    24/08/2016

    Boa noite….comecei fazer buscar sobre a família. Sou Neto da Anna Cominotti, Irma do João. Meu pai ia visita-lo as vezes e contava parte da historia. Sou de Vila Velha ES

  • Unknown
    18/02/2019

    Eu sou Joana Artur Damasceno, viúva de Francisco Cominote Damasceno, filho de Francisco Cominote e de Maria Emília Damasceno. Ele faleceu no ano passado, digo 2018 no dia 8 de abril.Ele nasceu em Laranjal que pertence a Itaguaçu e ele diz a que a família era de Matutina.Ele.faleceu com 93 anos.Tenho 1 filhos dele. De.8 irmãos ele era o penúltimo dos filhos.Moro aqui em Baía da Traição na Paraiba. Ele comentava muito sobre a família. Depois que El3 voltou em 2000 para São Gabriel da Palha ele entrou em contato com alguns da família por parte de mãe.Ele era magora do exército, ficou andando no país, mais precisamente no nordeste do qual ele sentia muito orgulho.Nossa última viagem pra Espírito Santo foi em dezembro de 2016 e voltamos em janeiro de 2017.Ele tinha muita vontade de saber do irmão Vitalino Cominote e sua família e de LuZiane Cominote porque dos outros ele tinha certeza que já tinham falecidos.Ele me contava todas as histórias da família.No

  • Julio Cezar Carreiro
    15/01/2024

    Eu me chamo Júlio Cézar Carreiro , sou Filho da Dina Caminote Pego, sou sobrinho neto do João Cominotti, sou neto da sua irmã Catarina que viveu muitos anos em Conselheiro Pena,Mg . Minha avó teve 07 filhos: Aufeu ,Dina, Elizabeth, Cidalina, María das Graças ,Maria daGloria e Terezinha de Jesus . E não conheço ninguém da Famila da minha avó que mora no Estado do Espírito Santo ( Itarana,És)

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