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Digital x Pedro ou vitória memorável

“Que bosta é esta?” perguntou Digital entrando na sala de Pedro com um papel na mão.

“Bosta, que bosta?” perguntou Pedro, o escrivão, caindo na dura realidade da delegacia onde trabalhava. Estava entretido até ali com a leitura de um poema do escritor Ribeiro Couto, sobre a cidade de Vitória, recebido como presente do amigo Roberto Mazzini, que tentava decorar, quando Digital o atropelou:

Cidadezinha velha, cidadezinha morta.
As casas, trepadas nos morros da ilha,
Sorriem para o canal paradamente azul…O palácio do governo é o edifício mais bonito da cidade.Do outro lado do mar é o continente
Onde casas humildes começam também a subir pelos morros.

Cruzam o canal botes lentos.
Um magro vapor cargueiro está ancorado no meio das águas imóveis.

No pequeno cais barcos e velas descarregam açúcar.

À noite, apenas na rua principal há movimento:
Famílias que passam para o cinematógrafo
E velhotes à porta de um bar conversando política.

À guisa de pé de nota, Mazzini havia escrito: “Transcrito do número 46 da revista do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, ano de 1996. Poesias Reunidas, 1960, p. 134. Livraria José Olympio Editora. Nota: Ribeiro Couto esteve no Espírito Santo, onde inclusive localizou a ação de seu romance Cabocla, que foi publicado nos anos trinta. Então esse poemeto sobre Vitória deve ser do final dos anos vinte. Acho.”

Foi quando Digital apareceu com a bosta na mão e disse o que disse e Pedro retrucou o que retrucou, “Bosta, que bosta?”

“Esta aqui, que estava na minha mesa,” explodiu o delegado. E passou para Pedro a carta e o envelope que o escrivão examinou calmamente.

Era um envelope azul, endereçado “Ao digníssimo sr. dr. Arquibaldo Evangelino de Souza, delegado Digital, Rua Chapot Presvot, 272, Praia do Canto, Vitória”. O envelope exibia um selo com a cara de Santos Dumont e seu indefectível chapéu, o que levou Pedro a pensar que um sujeito que usava um chapéu daqueles tinha mesmo que acabar dando um tiro no próprio (entenda-se este próprio como chapéu) ou se enforcando com a gravata (mas não de gravata, entenda-se a particularidade). No verso do envelope lia-se o nome da remetente, Ana Leopoldina da Silva.

“Você conhece alguma Ana Leopoldina?” perguntou Pedro.

“Se eu conhecesse alguma Ana Leopoldina não estava querendo saber o motivo da carta, concorda?” brutalizou Digital.

Pedro viu que fizera uma pergunta idiota e que perdera ali um ponto para o delegado. “Posso ler o conteúdo?” indagou.

“Foi para isso que lhe dei a carta, Pedro Bó,” brutalizou o delegado pela segunda vez.

“Lá se foi mais um ponto,” pensou Pedro, lembrando-se da frase de Orson Welles, no filme A Dama de Shangai: “Quando começo a fazer papel de tolo nada me detém.” “Preciso me controlar para não dar outras mancadas. Já estou perdendo de 2 a 0.” E passou à leitura da missiva.

“Corrente de Santa Edwiges ‐ Pensamento positivo faz milagre.

Ao receber esta carta você acaba de ser escolhido para participar da corrente de Santa Edwiges. Não fique chateado, mas sinta-se feliz com a oportunidade que ganhou!

É muito simples participar da corrente e ela só lhe trará benefícios. Comece beijando alguém que você ama muito. Depois procure quem você não estime e faça as pazes com esta pessoa. Pode ser por correspondência mesmo, desde que seja um desejo sincero de reconciliação (NÃO PODE TER FINGIMENTO). Só com isso você vai ver que sua sorte vai melhorar nos próximos dias, sob a proteção de Santa Edwiges.

Depois, você deve distribuir 30 cópias desta carta para as pessoas que escolher. As cópias têm de ser escritas à mão e é importante que você escreva no envelope, com sua letra, o nome e o endereço da pessoa para quem você vai mandar a carta.

Escreva sem parar, uma carta depois da outra. Se por algum motivo tiver de interromper a escrita, comece tudo de novo, logo que puder. Você também deve botar a carta no correio, pessoalmente. NÃO MANDE OUTRA PESSOA, PORQUE TEM QUE SER SELADA POR VOCÊ MESMO, PASSANDO O SELO NA LÍNGUA, PARA PREGAR NA CARTA. (ATENÇÃO: A FUNCIONÁRIA DOS CORREIOS NÃO PODE CARIMBAR NO LUGAR DO SELO).

ALÉM DISSO, VOCÊ NÃO PRECISA MANDAR DINHEIRO, SÓ A CARTA, PORQUE A FELICIDADE NÃO TEM PREÇO E A SORTE VEM PARA QUEM PRECISA DELA SOB AS GRAÇAS DE SANTA EDWIGES. O QUE VOCÊ ESTÁ ENVIANDO É UM VOTO DE PAZ, SAÚDE, AMOR E DE SORTE, MUITA SORTE. MAS VOCÊ DEVE FAZER ISSO LOGO, EM 96 HORAS.

Carlos Mancini, funcionário do INSS, mandou a carta mas não pregou o selo com saliva, e ficou com a boca torta. Anaju Soares, da Paraíba, recebeu a carta e jogou fora: perdeu tudo que tinha. Philip Cohen, da Inglaterra (ele era judeu), recebeu a carta e não ligou para ela: sua sogra, que já estava à morte, saiu do CTI e voltou para morar com ele.

Já um oficial do exército americano recebeu 90 mil dólares inesperadamente porque fez com a carta o que tinha de fazer. Norma Elliot, de Massachusetts, recebeu 249 mil dólares porque também cumpriu as regras. No Brasil, Alberto Cerqueira Dias escreveu as cartas de madrugada, remeteu-as pelo correio e ganhou 2 milhões na Mega Sena.

Envie as suas 30 cópias e observe o que lhe acontecerá nos próximos 7 dias. Esta corrente tem bons pensamentos e desejos positivos que tornam a vida mais fácil. Não é uma superstição, é verdade. Aguarde, tenha fé e se surpreenda, porque Santa Edwiges não decepciona ninguém.

Foi na Venezuela que a corrente começou para circular pelo mundo todo, mas o original da carta está no mosteiro de Arrábida, na Espanha. Agora a CARTA CHEGOU A VOCÊ! Não a perca, não a rasgue, nem ignore o seu conteúdo para o seu próprio bem, acredite!

PENSAMENTO POSITIVO FAZ MILAGRE. Lembre-se sempre: esta carta forma uma corrente energética extremamente forte e seus efeitos são fantásticos, acontecem mesmo. SALVE SANTA EDWIGES, em seu dia 16 de outubro!”

Terminada a leitura, o escrivão disse, com intencional cara de Pedro Bó: “É a corrente de Santa Edwiges, Digital! Você foi premiado com ela.”

“Que é a corrente dessa santa eu estou vendo. Mas por que me mandaram esta merda?” sibilou o delegado.

“Não faço a menor idéia. Certamente veio de alguém que lhe quer bem. Aí não está dizendo que a corrente dá sorte e traz felicidade?” E Pedro achou que tinha marcado o seu primeiro ponto na querela dialógica em que se enfronhara.

“E eu quero lá saber de corrente da sorte? Você acha que tenho cara de palhaço?” grunhiu o delegado furioso.

Pedro pegou o papel com o poemeto de Ribeiro Couto que tinha colocado sobre sua mesa e que o vento soprara para o chão, guardou-o cuidadosamente no bolso, e preparou-se para o longo entrevero que tinha pela frente.

“Pera aí, chefe, não fui eu que lhe mandei a carta e, q’eu saiba, aqui na delegacia somente o digníssimo senhor delegado é que recebeu uma.”

“Lá vem você aproveitando a oportunidade para me chamar de chefe. Chefe é a puta-que-pariu que inventou esta expressão. Aqui eu sou doutor, delegado, até simplesmente Digital, mas nada de chefe. E menos ainda devoto dessa santa que eu nem sabia como se escrevia o nome dela até receber esta carta idiota.”

A irritação do delegado foi o ponto do empate de Pedro que se apressou em impor à conversa o rumo que lhe convinha.

“E agora você já sabe escrever o nome da santa?”

“Você está querendo me testar?” replicou Digital.

“Até que estou,” disse um Pedro pronto para puxar o anzol encravado nas amídalas do delegado. Em seguida, releu a carta dinamicamente, como fazia Renato Pacheco, e disse: “Sabe quantas vezes o nome da santa está escrito neste papel? Exatamente seis vezes! Quer dizer que você leu seis vezes o nome Edwiges. No entanto, aposto que não consegue escrevê-lo corretamente.”

“Aposta o quê?” arvorou-se um Digital desafiado em sua escolaridade de ensino fundamental.

“O que você quiser, desde que caiba no meu modesto salário de escrivão de polícia,” ressalvou Pedro.

“Um engradado de cerveja?”

“Fechado, mas tem que ser de garrafas de cerveja, nada de latinhas,” exigiu Pedro, estendendo para o delegado a carta que conservara em seu poder. “Pode escrever o nome da santa aí no verso mesmo, mas sem olhar do outro lado…”

“Olhar pra quê?” cantou de galo Digital, pegando a caneta bic que Pedro lhe passara e rodando-a alguns instantes entre o polegar e o indicador. Em seguida, balbuciou para si mesmo o nome que ia escrever e caligrafou, em grandes letras de forma: SANTA EDVIRGEM.

“Erradinho da silva,” disse Pedro, com um sorriso perverso que ia do seu molar da direita ao molar da esquerda.

“Como erradinho?” surpreendeu-se Digital.

“Está errado, delegado. Mas vou lhe dar uma segunda chance… Aceita?”

“Aceito,” respondeu Digital carrancudo. E novamente escreveu, mas desta vez em letras não tão agigantadas: Santa Edvirge.

“Errado novamente!” proclamou o escrivão, o indicador levantado como se repreendesse um mau aluno. “Quer uma terceira chance?”

Digital inspirou fundo, olhou possesso para Pedro e rabiscou rapidamente, em letras cursivas e de garrancho, Santa Edvigem.

“Reprovado mais uma vez,” gloriou-se um Pedro que espiralava para o céu filigranas sorridentes de fumaça do seu cigarro Carlton.

“Quer sair para a quarta tentativa ou prefere me pagar as cervejotas?”

Digital cravou em Pedro os olhos dourados de ódio, como diria José Carlos Oliveira, e já ia partindo para a quarta tentativa quando o escrivão o interrompeu:

“Vou lhe facilitar a vida, delegado. Não precisa escrever santa, basta o nome dela.”

A observação teve o dom de provocar um estalo na cuca do delegado e sua reação se fez estrambótica ou qualquer coisa que seja parecida com uma reação estrambótica da parte de um descontrolado delegado de polícia. Dando uma porrada em cima da mesinha da máquina de datilografia, Digital agigantou-se sobre Pedro:

“Você está querendo me desmoralizar?”

“Estou apenas disputando uma aposta que acho que já ganhei,” defendeu-se Pedro, com cara de sonso (ou seja, sua cara de sempre).

“Olha aqui que você ganhou,” disse Digital, esticando para o escrivão o dedo médio em gesto fálico, enquanto com a outra mão atirava na cesta de lixo a carta de Santa Edwiges, transformada em bolota de papel. “E aqui também para a santa, para a corrente da santa, para quem me mandou esta merda de corrente, que eu desconfio que foi você mesmo,” berrava Digital, no auge de um derrame de gestos obscenos.

Impassível, Pedro fez um balanço do diálogo que acabara de travar e concluiu, como um contador que avalia a contabilidade das perdas e ganhos, que tinha vencido de goleada o entrevero com Digital, graças a Santa Edwiges, “minha santinha querida,” ainda cantou baixinho o escrivão.

[Este texto integra a série intitulada CHAPOT PRESVOT 272, de Luiz Guilherme Santos Neves]

Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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