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Discurso proferido pelo Prof. Ceciliano Abel de Almeida, Magnífico Reitor da Universidade do Espírito Santo

Aquiesci no convite do Excelentíssimo Senhor Governador do Estado e aceitei profundamente reconhecido o cargo de Reitor da Universidade do Espírito Santo depois de muito pensar na recusa à convocação de Sua Excelência. E por que haveria de recusar o instante e honroso chamamento?

Dois foram os motivos de minhas relutâncias. O temor de não desempenhar de modo plenamente satisfatório a incumbência que bem poderia ser confiada a outrem de maiores aptidões, e a maturidade de meus pobres conhecimentos, tão delongada já no tempo que se esvai, e tão somenos na esconsa obscuridade de minha vida humilde…

Ora, no dizer de Amoroso Lima, “uma Universidade é, antes de tudo, uma disciplinadora da Inteligência. O que o Estado faz com a ordem jurídica deve a Universidade fazer com a ordem intelectual, isto é, operar como tanto gostam de dizer os pensadores alemães, a passagem do Caos ao Cosmos”.

E, Seletíssimo Auditório, o varão que, de há muito, transpôs o solais da montanha da vida e está resvalando na ladeira que, dia a dia, se encurta, sente, como eu, que o esforço despendido para retardar a marcha penosa, no declive fatal, debilita-lhe o físico, e a parte intelectual também se vai enfraquecendo, e arriscando-se ele a reger uma Universidade revela-se homem de pouca circunspeção. E, por isso, quanto me custou atender os desejos do excelentíssimo senhor Governador, só Deus o sabe.

O excelentíssimo senhor Governador do Estado e eu somos terranteses. Muito mais moço do que eu, teve ele o seu berço num sobrado, sito na margem direita do rio de S. Mateus, na Fazenda do Palmito; e numa palhoça nasci, no Sítio da Liberdade, na banda esquerda do Santana, distante cerca de três milhas da Casa Grande do Palmito.

Os nossos genitores eram amigos, e tive a honra de ser amigo íntimo do Dr. Jones dos Santos Neves, cidadão probo e clínico humanitário que, quando partiu para a Mansão dos Justos, nos deixou saudades infindas e o exemplo de uma vida modelar. A amizade que tinha eu ao Dr. Jones dos Santos Neves transferiu-se integral ao seu filho, ao espírito-santense digno e incansável que dirige os destinos de nossa terra.

Estão justificadas, meus senhores, a temeridade ou a precipitação, a falta de prudência ou de madureza, que me alçaram em Reitor desta Universidade. Sirvo ao filho de meu Amigo. Sirvo ao meu Amigo, o excelentíssimo senhor Governador do Estado. E, mais uma vez, vou servir à Terra Querida do Espírito Santo, com a dedicação que permitirem minhas possibilidades.

Quando atentamos nas linhas de povoamento trilhadas pela Metrópole Portuguesa para intensificar a colonização do Brasil, desde logo nos depara destacadamente a atividade operante dos governadores gerais, alguns licenciados pela Universidade de Coimbra, e, à medida que o desbravamento se amplia, aqui aportam vultos ilustres despachados pelo Rei para os cargos de justiça e administração. Não tarda, e também seguem do Brasil para o reino, a fim de frequentarem a Universidade, brasileiros que voltam aptos para ocupar encargos de relevo e interferir nos negócios da colônia.

E se a história regista que o ensino primário no Brasil era escasso e apenas ministrado, por largo tempo, pelos jesuítas, não se deve obscurecer que os estadistas que chegavam de Lisboa eram, em geral, dotados de sólidos conhecimentos hauridos naquela Universidade que passou por odisseia notável.

Criada em Lisboa, em 1290, por D. Diniz, é por ele transferida para Coimbra. Mais tarde é removida por D. Fernando para Lisboa. E, ainda uma vez, voltou por ordem de D. João III, e agora, definitivamente, para Coimbra. O marquês de Pombal reformou-a. A República, em 1910, suprimiu-lhe a Faculdade de Teologia e fundou as Universidades do Porto e de Lisboa.

Desde o fim do século XIII que Portugal demonstrou pendor pelo ensino universitário. Instituídas antes da de Coimbra só foram as de Salamanca, de Oxford, de Bolonha e de Paris.

Segundo Fernando de Azevedo, na Grécia antiga ensinavam os filósofos passeando e conversando nos jardins com os seus discípulos, como Platão; ou sobre as margens do Ilissos, como Aristóteles. Nesses tempos recuados, Platão, como depois Ronsard, na renascença, “um jardim parecia ser o vestíbulo florido do pensamento puro e da especulação, para uma pequena elite de homens curiosos de poesia e de verdade e onde, ao abrigo dos prazeres e das paixões, sábios, sem ódios e sem desejos, consagravam toda sua existência à meditação”.

E na Idade Média, esclarece Álvaro Magalhães, foi nos conventos onde os estudos se desdobraram e aprofundaram-se, criticando e investigando “as ideias vindas da antiguidade”. A essas lucubrações outras se agregaram às matérias componentes do trivium que gozavam de primazia. E quando surgem as universidades são elas constituídas por quatro faculdades clássicas: teologia, artes, direito (civil e canônico) e medicina.

A Universidade clássica vai, pouco a pouco, se engrandecendo à medida que os conhecimentos humanos se ampliam, até que se alcançou, como diz Ortega y Gasset — o clima histórico, moral e político, em que elas floresceram e em que predominaram certos valores sociais, certas preferências e certos entusiasmos.[ 1 ]

Nessa quadra favorável em que a preferência e o entusiasmo pela inteligência atraíram os homens para viver de idéias e para idéias, a ciência e o pensamento atingiram o seu apogeu e é ainda Ortega y Gasset, que observa: “era natural que a Universidade prosperasse e chegasse à sua culminância nos séculos que representam o império quase indiviso da inteligência, na época moderna e sobretudo no século XIX”.

Essa época de clima histórico, “de entusiasmo pela inteligência, pelo pensamento e pela razão”, muda-se em outra “em que ao intelectualismo sucede o voluntarismo, à liberdade a uniformização e ao pensamento a ação[ 2 ] e sobre a qual o professor Fernando de Azevedo salienta haver sucedido à discussão livre a época atual, em que o regime político vermelho ou reacionário tende sempre a decretar: “Senhores, acabou-se a discussão.”

O decreto que criou a Universidade do Espírito Santo deixa bem claro o pensamento do legislador espírito-santense quando estatui: — art. 2) São fins da Universidade:

a) promover condições propícias ao desenvolvimento da reflexão filosófica, da pesquisa científica e da produção literária e artística;
b) assegurar pelo ensino, a comunicação dos conhecimentos que concorrem para o bem-estar generalizado e para a elevação dos padrões de vida, de atividade e de pensamento;
c) formar especialistas nos diversos ramos da cultura e técnicos altamente habilitados ao exercício das atividades profissionais de base científica ou artística;
d) incentivar e prover os meios de progresso da cooperação nas atividades intelectuais;
e) realizar a obra social da vulgarização da cultura.

Da leitura dos itens b, c, d, e e verifica-se imediatamente que os verbos empregados — promover, assegurar, formar, incentivar, prover e realizar — todos transitivos, têm complementos que esclarecem os trabalhos e as atividades que cada qual explana e os quais só podem ser executados na base de auxílio mútuo. Se não houver colaboração ordenada, consciente por parte de todos os professores e alunos, não será realizada a finalidade da Universidade, a que se refere a lei. E, ainda, se houver a cooperação em cada faculdade ou escola componentes da Universidade, porém, insuladamente, também o dispositivo da lei não é cumprido e, portanto, a Universidade só existe abstratamente, mesmo que funcionem em um só edifício.

A Universidade que hoje se instala conta com a boa vontade de professores e alunos que se empenham em realizar pesquisas científicas e com o propósito inabalável de “colaboração entre os diversos especialistas e faculdades na base do auxílio mútuo e desinteressado na conquista de novas verdades”.[ 3 ] Assim se terá chegado ao espírito universitário que Amoroso Lima define “como sendo uma modalidade desse espírito cooperativo, tão falado hoje em dia, e que corresponde a uma justa reação contra o individualismo por muito tempo reinante. É o espírito corporativo na ordem cultural e entre aqueles que preparam o seu curso superior de estudos”.

Nesse espírito universitário podem-se considerar duas partes: uma social e outra cultural. É um binômio em que a primeira parte faz da Universidade um grupo social autônomo. Daí se conclui que a Universidade é grupo social, voluntário e natural às sociedades humanas. Essa parte é a primeira condição para a existência de um espírito universitário.

A parte cultural distingue a Universidade dos outros grupos sociais. Ela forma um conjunto de estudos de caráter superior, destinado à pesquisa da verdade e ao alto preparo cultural das elites de uma nacionalidade.

O binômio, a que me refiro, trata da formação das elites dirigentes de um determinado povo. É o ideal da Universidade e, portanto, é a existência de um espírito universitário.

Estas ligeiras referências que acabo de fazer, arrimadas na autoridade de Amoroso Lima,[ 4 ] estão contidas nos artigos 18 e 19 da lei já citada:

Art. 18) Com o fim de prover ambiente propício à formação do espírito universitário, serão adotadas medidas susceptíveis de assegurarem as condições necessárias e suficientes ao trabalho, à iniciativa e à pesquisa bem como à união, solidariedade e cooperação de professores, assistentes, auxiliares de ensino, alunos e ex-alunos de todos os institutos universitários.
Art. 19) A aproximação e o convívio dos professores, assistentes, auxiliares de ensino, alunos e ex-alunos e funcionários dos diversos institutos universitários serão, desde a instalação da universidade e na medida das possibilidades, assegurados: pela aproximação dos edifícios […]; pela unidade de direção e administração da Universidade […]; pela organização de grupos de disciplinas comuns […]; pela instituição do regime de trabalho […]; pela prática em comum de atividades sociais dos alunos dos diversos institutos; e pela organização de associações e grêmios universitários de estudo, recreação ou desportos.

Seletíssimo Auditório, Senhores Diretores e Professores dos institutos universitários, na lei da criação da Universidade do Espírito Santo, cuja sigla é U. E. S., está indicado que a sua direção e administração caberão a um Reitor, assistido por um Conselho Universitário, que é constituído dos diretores dos diversos institutos integrantes da Universidade, de um representante da Congregação de Professores de cada um dos institutos universitários, de um representante dos ex-alunos diplomados dos vários institutos e de um representante dos atuais alunos. Tenho a honra de conhecer todos os diretores e, no meu modo de julgar, tendo em conta os seus altos e inconfundíveis méritos, poderei vantajosamente ser amanhã substituído na Reitoria por qualquer desses luminares, pois não lhes faltam ilustração superior à minha, idoneidade profissional e atividade para desempenhar tão elevado cargo.

Neste instante, senhores Diretores e Professores, em que, com a maior sinceridade, vos transmito, no pórtico desta Universidade, esse juízo, acompanhado de meu preito de veneração à nobre classe de professores a que, como figura apagada, tenho a insigne honra de pertencer, permitam-me meus colegas e amigos, que lhes rogue me ajudem com suas luzes, a fim de que possa a U. E. S. ombrear galhardamente com as outras universidades do país.

Tenho fé no futuro radiante desta Universidade, sobretudo porque confio nos Diretores e Professores dos institutos. O que se vai realizar não será obra do Reitor que, para ela, pouco ou quase nada contribuirá, mas sim uma obra esplendorosa, um edifício rutilante, que será construído pelo colendo Conselho Universitário.

Excelentíssimo Senhor Secretário da Educação e Cultura, Professor Rafael Grisi, sei que a alma de Vossa Excelência transborda hoje de alegria. Cumpriu Vossa Excelência conscienciosamente o seu dever, correspondendo aos ardentes desejos do senhor Governador de, antes do término do seu governo, deixar instalada a Universidade do Espírito Santo. A U. E. S. já não é um projeto, é obra realizada e, como velho docente dos cursos secundários desta minha terra querida, peço vênia a Vossa Excelência para o cumprimentar respeitosamente.

Excelentíssimo Senhor Governador do Estado, Dr. Jones dos Santos Neves, o eminente professor Dr. Fernando Azevedo em seu livro intitulado A Universidade do Mundo de Amanhã, depois de uma série de considerações referentes à capital paulistana, requintou em elogio ao Chefe do Executivo e opinou: “o Governador de S. Paulo, criando a Universidade, foi o libertador desse destino encantado. Acordou as vocações; iluminou as sombras; as atividades desinteressadas do espírito multiplicaram-se, e houve festas nas almas”. O Governador do Espírito Santo, Doutor Jones dos Santos Neves, criando a Universidade do Espírito Santo, fez tudo isso, e não só houve festas nas almas, como também provou que o Espírito Santo pode, pelo seu elevado índice cultural, possuir uma Universidade. Excelentíssimo Senhor Governador, o Reitor da Universidade do Espírito Santo e os seus professores agradecem-lhe a magnífica dádiva que Vossa Excelência lhes deu. Esta dádiva, estou certo, produzirá frutos que exaltarão o Estado e o nome de Vossa Excelência.

Seletíssimo Auditório, há precisamente 419 anos que Vasco Fernandes Coutinho deu início ao povoamento do solo do Espírito Santo, depois de haver pelas armas rechaçado os indígenas, os donos da terra. Lançou os fundamentos da civilização cristã e marcou-a de modo indelével, quando batizou a capitania com o nome de Espírito Santo.

Deixou ele aos seus pósteros o exemplo de sua tenacidade, de seus sofrimentos, de sua resignação e de seu valor. O Reitor e os professores da U. E. S. seguirão, por certo, esses tão nobres predicados e de grande fortaleza de ânimo. E no que tange particularmente ao Reitor, declaro que ele, humilde, pedirá a Deus que, por misericórdia, lhe indique o caminho do Senhor, tão magnificamente expresso naquela frase eterna: Eu Sou o Caminho e a Verdade e a Vida.

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NOTAS

[ 1 ] Fernando de Azevedo, A Universidade do Mundo de Amanhã, p. 119.
[ 2 ] Idem, p. 120.
[ 3 ] Álvaro Magalhães, Dicionário.
[ 4 ] Amoroso Lima, Humanismo Pedagógico, p. 192, 193 e 194.

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Ceciliano Abel de Almeida (autor) foi engenheiro da Estrada de Ferro Vitória a Minas, tendo trabalhado nos primórdios de sua construção, sendo também responsável por importantes obras de infraestrutura no Estado. Foi o primeiro prefeito de Vitória, ES, professor de ensino secundário no Ginásio Espírito Santo e primeiro reitor da Universidade do Espírito Santo, quando de sua fundação como instituição estadual.

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