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Dois cachorros

O Alemão teve de correr muito até sua casa porque senão o Danúbio ferrava-lhe os dentes.

Nome-rio. Um rio maior que o Jucu, segundo soube. Mas pelo menos diferente do nome Kiss que ele sempre achou que era Quis e não sabia por quê. Quis o quê? Tinha uma certa vergonha quando alguém lhe fazia a pergunta. Ele respondia meio assim.

Chateação.

“Não sei, mas dizem que é um nome bonito para cachorro.”

“Nome bobo”, disse uma vez o Gustavo.

Embora não tenha gostado do que ele falou, também achava.

Isso foi coisa do Agostinho, o técnico em agricultura, amigo de seu pai e que devia mesmo era dar um jeito no pé de pêssego que estava morre não morre no quintal e não inventar nome bobo para botar em cachorro. Mas seu pai achou bonito e então ficou mesmo sendo Kiss.

Nada disso, porém, diminuiu nem um pouco sua amizade com o dito-cujo.

“Quis, o quê?” (E eu sei?)

“Nome bobo.”

Nem se importava mais.

Um dia o Kiss foi atropelado por um caminhão e morreu.

Chorou tanto que o pai ficou preocupado e ele também. Por um cachorro? Como tem gente que não sabe o que é um cachorro. Mas nem ele sabia que era tanto. A morte do Kiss ensinou a ele.

Verdade que os dias foram amortecendo a pedra em cima de seu peito embora esquecer, até pelo contrário. Lembrava mais, como daquela vez que.

O pai, preocupado, comprou para ele outro cachorro. Pensou que nem ia ligar mais para cachorro nenhum.

Veio outra vez o Agostinho e falou para seu pai:

“Bota o nome Kiss, o mesmo do outro e aí parece que o outro nem morreu.”

“Ô Agostinho, vai cuidar do pêssego. Kiss foi só aquele.”

Pediu ao pai para o cachorro ficar sem nome e o pai disse que sim.

Mas lá pelo início de dezembro, o rádio estava tocando uma música bonita.

Ouviu a conversa de duas vizinhas.

“Sempre gostei dessa valsa. Você sabia que a música de carnaval de mais sucesso do ano também foi inspirada nesse mesmo compositor?” disse Berta Dietrich.

“A valsa dos patinadores?” falou Hulda Schuster.

“Essa: vem meu amor, vem meu amor, o passinho de valsa que vem e que vai, mamãe quer dançar com papai, ” disse Berta.

“Essa mesmo.”

“Strauss.”

“Mas você sabe qual a valsa dele de que mais gosto? É Danúbio Azul, inspirada num rio do centro da Europa, maior umas dez vezes que o Jucu.”

Danúbio Azul? Ele pensou: tira o azul. Taí um bom nome para seu novo cachorro, que ia se chamar Danúbio e se chamou.

Foi então, depois de um tempo, como estava dizendo, que pediu ao Alemão para fingir que estava lhe batendo. O Alemão teve de correr muito até sua casa porque senão o Danúbio lhe ferrava os dentes.

Dois cachorros misturados em sua cabeça mas agora como se fossem um.

[Crônicas transcritas do livro Crônicas de Roberto Mazzini, SPDC/Ufes, 1995.]

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© 1995 Texto com direitos autorais em vigor. A utilização / divulgação sem prévia autorização expressa dos detentores configura violação à lei de direitos autorais e desrespeito aos serviços de preparação para publicação.
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Ivan Anacleto Lorenzoni Borgo é cronista e nasceu em Castelo, ES, em 21 de fevereiro de 1929. Formado em Direito pela Faculdade de Direito do Espírito Santo (Ufes), com especialização em Economia pelo Conselho Nacional de Economia em convênio com o MEC. Foi professor da Ufes de 1961 a 1989 e diretor regional do Senai/ES de 1969 a 1990. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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