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Dois graus a estibordo, três a bombordo ou dois pra lá, três pra cá

“Você, aqui?!” estarreceu-se Pedro, soltando um bafo de fumante excomungado por bula publicada no Osservatore Romano. “Mal creio no que meus olhos vêem!”

“Qual a razão do espanto?” Me fiz de besta, sabendo não só a razão como o motivo, que é um jeito de dizer a mesma coisa mas com ênfase, sobre o estarrecimento de Pedro. Rápido, porém, tranqüilizei-o: “Não é nada contra você o que me traz a esta delegacia.”

“Ainda bem,” relaxou o escrivão. “Cheguei a pensar que estava condenado a desaparecer do mundo das Letras.”

“Não atingi ainda o ponto desse haraquiri intelectual. Ademais (gostou do ademais?), se você é o protagonista oficial da nossa delegacia, cabe-me cuidar da sua integridade literária enquanto estivermos ativos,” expus-lhe, psicodidata, o meu ponto de vista com um piscar de olho vivaldino.

Numa piscadela-resposta, Pedro indicou que havia entendido a profundidade da minha observação autoral. Recomposto, então, em sua base psicológica, ofereceu-me a melhor cadeira da sala para sentar, tirou do bolso um lenço que mais parecia uma bandeira desfraldada, porém sem monograma, e com ele limpou o estofado estufado e perrengue da cadeira que me dera. Nem por isso o assento preto pareceu menos perrengue e mais aceitável.

Vendo a inutilidade do seu gesto, abriu os braços como se dissesse que havia atingido o limite da gentileza em ambiente tão desfavorável, nada mais podendo fazer para acomodar condignamente meus provectos traseiros de autor em visita a seu personagem, no local de trabalho do personagem. Decepcionado, manteve-se auto-múmia parado diante de mim como um Cristo Redentor à espera de que eu ditasse os passos seguintes da narrativa.

“À vontade, personagem!” brinquei, para quebrar-lhe a rigidez e dar seguimento ao conto, sentando-me no perrengoso assento.

Aliviado, Pedro postou-se atrás da sua Olivetti e perguntou, oficioso: “Você veio aqui para apresentar alguma queixa?” E já ia dizer que tinha o hábito de colher uma panorâmica do assunto, antes de datilografar as reclamações que ouvia, quando se lembrou de que disso sabia eu por lhe ter dado esse traço de estilo. Meio sem graça, mudou o script: “Se é para isso, pode falar, chefe!”

“Não me chame de chefe! Chefe é de índio…” retruquei…

“…e nesta delegacia não tem índio!”, completou Pedro uma das tiradas do delegado Digital.

Rimos juntos.

Risadas a sotavento, expliquei o porquê da minha ida ou da minha vinda. “Trata-se de um caso que envolve tanto um problema de família, quanto uma questão de ficção, que costuma ser mais complicada do que um qüiprocu entre parentes. E ambas têm que ser tratadas com KY*, senão viram merda à potência máxima.”

“O que estiver a meu alcance…” prontificou-se Pedro.

“Eu sei. Por isso vim procurá-lo pessoalmente ao invés de simplesmente por escrito.”

“Quer que feche a porta?” perguntou Pedro.

“Sabe que eu não tinha pensado nisso? Mas não é necessário.” E aproximando a cadeira para o seu lado, confidenciei-lhe em FM: “O problema é entre mim, Luís de Almeida e Reinaldo.”

“Entre você, Luís de Almeida e Reinaldo?!” Percebi, com a minha onisciência de autor, que meu personagem começava a se sentir entrando numa esparrela. “Mas não foi você quem inventou Luís de Almeida?” indagou Pedro, depois que conseguiu boquifechar a boquiaberta boca.

“Mas não inventei Reinaldo. E Reinaldo, ladinamente, furtou um personagem que diz ser de Luís de Almeida, quando na verdade não é, porque é meu, razão pela qual Luís de Almeida veio se queixar a mim, como alguém que se queixa ao senhor bispo, pela qual mesmíssima razão também eu, que fui o legítimo surrupiado, venho me queixar a você para você resolver com Reinaldo, que é seu amigo particular, esse intrincado furto do meu personagem.”

“E por acaso eu conheço o figurante?” interrogou Pedro.

“O nome dele é Teodomiro Reis.”

“O detetive com escritório no Edifício Pongal?”

“Quer dizer que você ouviu falar no tipo?”

“Falar, não. Encontrei-o nos escritos de Reinaldo, Dois Graus a Leste, Três Graus a Oeste.”

“É ele mesmo…”

“Mas Teodomiro não passa de uma figura colateral, naqueles textos sem pés nem cabeça. Nada além de um inexpressivo coadjuvante…”

“Ora essa, Pedro, você está a meu favor ou a favor de Reinaldo? Se estiver a favor dele eu sou capaz de…”

Aqui é preciso que se diga, abrindo colchetes, que diante desse começo de ameaça, disparada ao peito de Pedro que não é preto, o Anjo Custódio desceu das nuvens e acendeu o pisca-pisca de alerta na mente do alertado. [Cuidado, rapaz! Veja para que lado você está bandeando…]

“Não se trata de ser a favor de um ou de outro,” escorregou Pedro de dois graus a estibordo para três a bombordo. [Bravo, bravo, saudou Custódio, embora a escorregadela de Pedro não revelasse tanta bravura assim.]

“É com este seu espírito de imparcialidade que quero contar,” disse-lhe eu, segurando-o pela camisa de força das palavras.

Pedro foi mais longe: “Asseguro-lhe que terei neste caso a imparcialidade de um magistrado.” [Custódio bateu palmas.]

“Prefiro a de um bandeirinha de futebol. Me inspira mais confiança,” respondi.

“Então serei bandeirinha, ou bandeirola, ou até árbitro de linha lateral. [Custódio bateu palmas com as asas.] Mas me fale um pouco sobre Teodomiro Reis.”

“Ele aparece num conto meu, intitulado O Penúltimo Caso de Teodomiro Reis, que Reinaldo leu no original porque nunca foi publicado. Sabe que o cronista Roberto Mazzini chama de galinhas a esses textos que vegetam no nimbo das gavetas?”

“Galinhas?” ciscou Pedro.

“Deve ser porque ficam largadas como se estivessem num galinheiro, até que um belo dia, zás, pega-se uma delas e faz-se um molho-pardo,” esclareci.

“E foi desse galináceo de gaveta que Reinaldo surrupiou Teodomiro Reis?”

“Sem nem sequer pedir licença. Quando eu entrei por acaso no site da Estação Capixaba e perambulei pelos sombrios corredores de Dois Graus a Leste, Três Graus a Oeste, dei de cara com a cara, o sobretudo, o chapéu de aba caída sobre a fronte do meu Teodomiro Reis. Era o meu figurante, como você disse, em carne e prosa, com o jeitão entediado de Humphrey Bogart que comeu Lauren Bacall e não gozou, que eu imaginei para Teodomiro Reis.”

“Um símile do Bogart, no Falcão Maltês?”

“Similíssimo. Mas para dar uma disfarçada na apropriação indébita, Reinaldo deu-lhe uns retoques e o tornou detetive da Agência Falcão Negro.”

“Seria mais adequado se fosse da Agência Falcão Maltês…”

“Ulalá, Pedro, a piada é tão boa que devia ter sido minha, por prerrogativa de autor.”

“Se o senhor quiser, eu lhe transfiro os direitos autorais…”

“Não me chame de senhor! Senhor é tratamento ultrabombástico, acima do brasão d’armas do pobre marquês que eu sou. Quanto aos direitos da frase, enfiai-os no viés da bunda.”

“Dispenso a gentileza. E onde Luís de Almeida entra nessa história?” inquiriu Pedro.

“É outra sacanagem de Reinaldo. Para confundir os leitores, ou as pistas, ou sei lá o quê, ele atribuiu falsamente a criação de Teodomiro Reis a Luís de Almeida.”

“E Luís de Almeida reclamou…”

“Oui, oui. Luís de Almeida é um sujeito bacanérrimo, basta dizer que é neto do velho Ceciliano.”

“O Ceciliano da Fundação da UFES?”

“Que foi também o primeiro prefeito de Vitória.”

“É verdade que ele era gago?”

“Tropeçava nos ques e gues, porque nunca encheu a boca de pedrinhas para corrigir seus que-gue-ques diante do mar de Manguinhos. Foi um estóico da gaguice. Fora esse defeito, era um homem de atitudes exemplares. Uma vez, escalou um fiscal da prefeitura para autuar a dona de uma residência, no Parque Moscoso, que descumpria a lei que proibia pendurar roupas na varanda para secar. O fiscal foi lá num pé, voltou em quatro. Todo ressabiado, chegou para o prefeito e disse: ‘Doutor, a dona da casa é a senhora sua esposa.’ E Ceciliano, gaguejando: ‘E eu mandei o senhor saber quem era a dona da casa? Volte lá e cumpra a sua obrigação!’

“Então Luís de Almeida tem a quem puxar,” reconheceu Pedro.

“E o resultado disso é que ele está puto-fulo com o envolvimento do seu nome nessa reinação criada por Reinaldo. E antes que a vaca gagueje, quer tirar o dele da reta, ou o reto da reta (de quem estou afanando esta conspícua imagem?), deixando as coisas em pratos limpos.”

“Mas qual é o leit-motiv ou, como se diz nos cursos de mestrado em literatura, qual é a fábula do conto onde Teodomiro aparece pela primeira vez?” perguntou Pedro.

“Trata-se de uma narrativa surrealista. Teodomiro foi contratado por um ricaço auri-verde-peidão de nossa terra, pai de uma patricinha, para descobrir o narrador do romance As Chamas na Missa. O livro havia entrado na lista do vestibular da UFES e maltratava os vestibulandos (putz!), lembra-se?”

“E Teodomiro deu conta do recado?”

“Fez um trabalho digno de Ellery Queen. Começou me procurando para decifrar o caso…”

“Então não foi vantagem nenhuma, já que você era o autor do romance.”

“Autor, Pedro, não é narrador. Você sabe disso. Há um romance na praça chamado Menino. Escrute-o/perscrute-o, e me diga se o autor do romance é o narrador do Menino.”

“E quem foi o narrador de As Chamas?”

“Ai é que mora o m do mistério, meu caro Pedro. Se você estiver interessado em saber mando-lhe um exemplar da obra para sua investigação particular.”

“Sejamos mais práticos. Como ando muito ocupado com as encrencas que você me apronta aqui na delegacia, poupe-me o tempo mandando uma cópia do conto O penúltimo caso de Teodomiro Reis,” disse Pedro, fitando-me por cima dos óculos com seus olhos de cabra-cabreiro.

“Bela saída… Mas enquanto meu conto não vem, eu e Luís de Almeida queremos que você fale com Reinaldo — porque o assunto é meio delicado para eu tratar com ele diretamente — pra deixar Teodomiro Reis no canto ou conto em que nasceu. E olhe que eu ainda não estou pensando em nenhuma queixa formal, ok?”

“Deixa comigo, chefe!”

“Chefe é…”

“O puto que me pariu?”

“Vejo que você continua brilhante,” rendi-lhe a homenagem, ignorando a ofensa.

“Não fosse assim, não seria personagem seu.”

“Ulalá! Touché novamente, seu pu,pu,tão,pão!”

“Pu,pu,tão,pão ou não, mande-me o conto!”

“Fique tranqüilo. Mandarei por Sedex.”

[Este texto integra a série intitulada CHAPOT PRESVOT 272, de Luiz Guilherme Santos Neves]

Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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