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Dois graus a leste, três graus a oeste – Segunda parte: A história inconfessável, ou Garibaldi para adultos – III. Capítulo que vem

1. Em que o presidente preside

Este é o capítulo que vem, mas só é “que vem” em relação ao capítulo anterior, capítulo que, por sua vez, em relação a este, é o capítulo que foi. Posso estender ainda um pouco mais a estéril especulação e dizer que este capítulo, o “capítulo que vem”, só é realmente “que vem” enquanto não vem. Assim que vem, deixa de ser “que vem” pra ser, na melhor das hipóteses, o “capítulo que é” ou “que flui” ou, então, o “capítulo que vai”. (Algo me diz que estou me afastando do meu estilo narrativo próprio e deixando-me influenciar não sei bem por quem, talvez (será?), por Nuno Castanheira.) E quem vem neste capítulo que vai é o personagem esdrúxulo de per si, o narrador original do livro Dois graus a leste, três graus a oeste, projeto literário produzido pela Agência Ajax de Produções Literárias, sob a regência do Sr. Porfírio Eylau. O narrador original, não, o Narrador Original. Com todas as restrições que faço a ele (inclusive e sobretudo o fato de ter prejudicado o antigo testamento deste livro com sua abordagem pedante e labiríntica), serei elegante a ponto de lhe prestar a homenagem das iniciais maiúsculas. Mas isso, bem entendido, só de rara vez em quando. As mais das vezes, por conta de todas as restrições que faço a esse indivíduo (inclusive e sobretudo o fato de ter desviado o curso da história em função de sentimentos pessoais), darei a ele o tratamento que acho que merece (e que lhe dão, na sua ausência, os demais sócios do Clube das Terças-Feiras) e o chamarei expressamente de Velho.

E é o Velho quem aí vem, e é pra dar uma olhada nele que me reviro todo na cadeira. A figura é patética. Chama a atenção logo de tampa a barba esbranquiçada que toma conta do seu rosto esquálido, dando-lhe o aspecto de escritor russo epiléptico do século XIX. Sim, o cara é feio e esquisito, e se não é tão feio quanto o Sr. Eylau é mais esquisito do que o qual. Aí vem ele então com sua barba alvacenta, seus óculos aposto que achados perdidos no banco de um parque (no mesmo banco ou no mesmo parque em que Tio Patinhas encontra os jornais que lê), com sua camisa insípida, comprada em camelô da praça Costa Pereira, e suas calças de linho folgadonas, herdadas de pai morto há vinte anos: o defunto maior da parlenda. Aí vem ele e traz ainda, como uma segunda pele, a prepotência própria dos narradores; ou ainda não se sabe destituído e substituído, ou já se sabe mas ainda mantém a arrogância do déspota destronado. Cara, é isso aí: não vou com os cornes dele. Já vinha nutrindo alguma antipatia pelo sujeitinho só de ler a primeira parte do livro, mas juro que estava me esforçando pra ser visceralmente neutro na hora de vê-lo em carne e osso, rebaixado à condição de mero personagem do projeto. Mas como ser neutro com um sujeito desses? Um sujeito que além do mais ainda ousa se apaixonar por uma personagem da história narrada por ele próprio, sem contar que certamente pretendia usar de abuso de poder pra, mais capítulo, menos capítulo, fazer a pobre Maria da Penha ceder aos seus desejos espúrios. (Sem qualquer intenção louvaminheira, congratulo os gerentes do projeto pela atitude político-literariamente correta de lhe puxarem o tapete de sob os pés e transferir a outro mais probo e honesto a tarefa de narrar a história do jeito que deve ser narrada.) Como manter neutralidade, então, com um sujeito desses? Quero mais é que ele se foda, e aqui empenho minha palavra, palavra de narrador, que no que depender de mim ele vai é se foder mesmo.

O Velho passa junto à nossa mesa e roça um olho de soslaio pela figura conspícua da irmã de caridade aqui sentada. Intriga-o ver uma religiosa em lugar tão mundano, ainda mais com as belas mãos brancas enlaçando maternalmente um copo de uísque. Roça o olho também por mim, na certa se indagando quem será esse sujeito de palito na boca e que grau de parentesco ou envolvimento terá com a religiosa. Na certa, menos esperto e menos malicioso do que Deus e o Mundo, conclui que eu seja apenas o irmão da irmã. É, esse cara não sabe nada do complô em curso contra ele. Nem sonha que aqui tão junto se trama a nova ordem que fará cessar tudo que sua antiga musa canta, pois outro valor maior se alevanta. Os sócios do clube já o avistaram de longe e trocam entre si murmurações que não consigo ouvir, mas que só podem ser de caráter maledicente. Ele se aproxima, se chega, e diz:

— Boa noite, senhores. É aqui que está havendo uma reunião do Conselho Central Anarquista?

Cara, que babaca! Reunião do Conselho Central Anarquista! Não resisto e sopro no ouvido tapado da irmã de caridade:

— Dona Mônica, esse cara é muito indigesto. Não é porque eu vou ocupar o lugar dele não, mas o projeto estava muito mal escorado com esse cara.

— Discordo, — diz ela. — Acho que ele tem qualidades, tanto como narrador como pessoa.

— Como como, — corrijo-a, sem dó.

— Como?

— Como, não. Como como. Já esqueceu a lição? Tanto como narrador como como pessoa.

Em resposta ela bebe um gole acintoso de uísque. Assim vai acabar ficando alta. Que fique. Volto os olhos pro cenário do clube. Preciso acompanhar com atenção o diálogo entre os sócios do clube e o seu distinto presidente.

— Está atrasado, presidente… — diz Embratel. Rogério enche os dedos de pipoca e deixa pingar tudo na boca. Parece João Bafo-de-Onça comendo. Depois toma um gole de cerveja. Parece João Bafo-de-Onça bebendo.

— Senhores, em primeiro lugar, — diz o Velho, — presidente é Lester Young. Em segundo lugar, estou chegando mais do que em boa hora. Estive aqui terça passada, cheguei aqui às 6:05, esperei até 7:00, não apareceu nem um só outro sócio pra remédio. Garibaldi eu ainda perdôo, que nunca sabe nem que dia é, quanto mais que horas são. Mas vocês têm relógio pra quê? Esperei por vocês até 7:00 e aí fui embora. E saí tão desiludido que pensei em nunca mais botar o pé aqui. Pensei até em fechar as portas do clube e jogar a chave na baía lá do alto da Terceira Ponte. Mas depois em casa pensei melhor e aí resolvi: já que é assim, vou entrar no ritmo da maioria. Se é pra chegar atrasado, eu vou chegar às 7:15, vou chegar às 7:30, vou chegar às quinze pras oito. Até que um belo dia eu vou chegar às 8:00 e sair às dez pras oito. Ou então vou fazer igual a Marco Antonio Grijó: vou vir só pra dizer que não vou vir.

Senta-se o Velho entre seus pares. Pedro Nunes está tratando de devorar o seu quibe, que mais parece um cagalhão de dez centímetros. Antes de cada mordida ele borrifa sobre o topo do cagalhão algumas gotas de pimenta, que a moça trouxe pra ele num frasco. Depois de cada mordida ele toma um gole refrigerante de Coca-Cola.

— Está havendo muita dispersão, muita negligência, muito desleixo neste clube, — diz ele, não sei se com intenção de ironia ou de apoio moral ao presidente. — Este clube está precisando rever os estatutos.

— Este clube não tem estatutos, — diz o Velho. Ah, a intenção de Pedro Nunes, ainda bem, era de ironia.

— Este clube está em crise, — diz João Luiz.

— E o senhor é um dos principais responsáveis por essa crise, — diz o Velho. — Quantas vezes eu telefonei pra você, você combinou chegar aqui às 6:30 no máximo e só chegou às 7:30? E é quem mora mais perto daqui. E nem tem chovido nem nada.

— Se chover eu não venho nem por decreto, — diz João Luiz, peremptório. Lembro que li, no meio do cipoal produzido pelo antigo narrador, que a fobia de João Luiz à chuva é tão entranhada que atinge até seu gosto musical. Ele, que não gosta de balada, adora uma balada de John Coltrane chamada “After the Rain”.

— Eu sei, — diz o Velho. — Você devia é ter vergonha nessa cara. Tem medo de pisar no molhado e pegar freira?

A expressão me causa estranheza: pegar freira. Nunca ouvi nada parecido. Por sorte tem uma freira ao meu lado e, sendo freira, talvez conheça a expressão. É a ela que recorro:

— Que que ele quer dizer com pegar freira?

— Pegar frieira, — esclarece Dona Mônica.

Fui mal. Me fiz passar por surdo e por burro diante da musa da Agência Ajax.

— Se chover eu não venho nem amarrado, — reitera João Luiz, peremptório.

— Mas eu quero lhe pedir uma coisa, — diz o Velho, ainda no pé de João Luiz. — Quando você botar a mão do lado de fora da janela pra ver se está chovendo e cair um pingo na palma da sua mão, pelo menos lembre de verificar se o pingo não é do ar condicionado do vizinho de cima.

Chico interfere pra mudar de assunto:

— Você viu a freira linda que está ali, presidente?

— Se vi, — diz ele. — Olha, já vi muitas freiras bonitas no cinema, mas essa aí põe todas elas no chinelo.

— A mais bonita que eu vi foi Madre Joana dos Anjos, — diz Rogério.

— Muito especial, Madre Joana, — diz o Velho. Contemporâneo de Rogério, diferente de Embratel, ele sabe de quem se trata. Talvez Rogério e ele tenham visto o filme na mesma sessão, talvez sentados na mesma fila de cadeiras, sem nem se conhecerem nem preverem que um dia seriam consócios de um mesmo clube, convivas de uma mesma mesa.

— Muito safada, você quer dizer, — diz Rogério. — Freira quando quer dar inventa logo que está possuída. O diabo é sempre o bode expiatório de freira safada.

Tento ler no rosto de Dona Mônica, na estreita folha de seu rosto, o efeito de insinuação tão pesada. Será que é assim que ela age, igual a Madre Joana, quando quer dar? Será que é capaz de acusar um inocente, de botar a culpa de seu furor uterino no pobre diabo do diabo? Mas o rosto dela é uma folha em branco. O que Rogério disse parece que não é com ela.

— Essa Madre Joana que vocês estão falando, — diz Chico, — é daquela família de Barra de São Francisco?

A menção a Barra de São Francisco faz Dona Mônica erguer um sobrolho. O que é natural, já que o seu honorável patrão, o Sr. Eylau, está recolhido naqueles pagos a negócios.

— Chico, — diz Rogério, — muito me admira que você, um polonês, não tenha visto esse filme.

— Madre Joana dos Anjos, — explica o Velho, — é um filme polonês dos anos 60 sobre um episódio de possessão demoníaca em massa num convento de freiras do século XVII.

— Esse convento, — diz Embratel, — era a própria casa de Madre Joana…

— Era o próprio cu de Madre Joana, — corrige Rogério.

— Mas a freira mais bonita que eu vi não foi Madre Joana, — diz o Velho. — Foi Genevieve Bujold no filme Monsenhor, com Christopher Reeve fazendo papel de padre.

Confesso que a opinião do Velho me surpreende. Eu vi esse filme. Genevieve Bujold não faz exatamente uma freira, mas uma noviça. Muito mais rebelde que a casta noviça rebelde vivida por Julie Andrews, ela tem um caso com um padre e aparece sem hábito nem nada numa cena, mostrando pele jalne, peitos sem graça e uma moita de buço florindo no canteiro à volta da, à volta da, à volta da — Cara, que nome dar a esse sagrado objeto sem ofender olhos ou ouvidos femininos? À volta da, à volta da —

— Permite-me uma sugestão? — diz uma voz não sei de quem que ouço vindo não sei donde.

— Pois não, — respondo, com polidez. Afinal sou novato no projeto e não conheço direito ainda os macetes, os artifícios.

— Só que pra dar essa sugestão, — diz a voz, — vai ser preciso contar uma história.

— Fique à vontade, — replico. É até bom, que enquanto isso eu descanso. A voz limpa o pigarro da garganta e dá início à sua história:

— Era num dos anos dos anos 60, e o momento político era de eleição de Miss Espírito Santo. Nessa época o povo ainda acompanhava com o maior interesse cada etapa do concurso de Miss Brasil, desde a eleição das misses municipais e, em subseqüência, da Miss Estado, até a grande festa, transmitida pela televisão, da escolha da ilustre representante da beleza nacional. Garibaldi nessa ocasião namorava uma moça da Vila Rubim. Uma noite ele estava na casa da namorada, sentado no sofá da sala, com a namorada ao lado e a família em peso ao redor: pai, mãe, irmã, gato, cachorro, papagaio. O assunto, como em todos os lares e em todas as rodas, eram os dotes das candidatas ao título de Miss Espírito Santo. Falou-se de uma, falou-se de outra, e Garibaldi calado, mãos dadas às da namorada, sem coisa contribuir de efetivo pra conversação. Até que veio à baila uma candidata de quem ele tinha ouvido dizer que chegara ao extremo de ir ao Rio fazer o curso da Socila. Socila era um instituto, uma companhia, uma empresa, uma seja lá o que for, que amestrava as moças da época pra transformá-las em misses ou modelos.

— Ou em esposas pra marido rico, — acrescento eu, que ainda peguei essa época.

— Também, — diz a voz. — Mas então Garibaldi resolveu dar a informação como subsídio ao debate. Abriu a boca e disse: Eu ouvi dizer que essa moça fez o curso da Socila. Ou melhor, foi isso que ele pretendeu dizer, mas o que ele disse na verdade foi: Eu ouvi dizer que essa moça fez o curso da Xoxota. A palavra teve o dom de instaurar um silêncio berrante sobre a sala. Garibaldi ficou rubro que nem ferro em brasa, e a namorada, em moção de repúdio, retirou a mão do enlace da dele. Aí a irmã da namorada riu alto e disse a Garibaldi: É só isso que você tem na cabeça?

— E? — pergunto, já meio arrependido de ter dado trela pra essa voz misteriosa.

— E? — diz a voz. — E é isto que eu sugiro: que você aproveite o ato falho do jovem Garibaldi pra concluir assim a frase do parágrafo que ficou lá em cima: uma moita de buço florindo no canteiro à volta da socila.

A voz se cala e eu fico sem saber a quem devo a honra da sugestão bisonha. Ao visitante extraterrestre (reduzido por uma explosão a uma voz sem corpo) com quem se defrontam Mickey e Pateta na história A cidade dos autômatos? Mas ao extraterrestre como, se na seqüência da história, conforme li com meus próprios olhos, até sua voz sem corpo foi destruída numa colisão de espaçonave com meteorito desgovernado? Ou ao Narrador Original? Mas ao Narrador Original como, se ele está ali, à frente dos meus olhos, no meio de seus pares e ímpares, saboreando a lembrança de Genevieve Bujold no filme Monsenhor?

— Nunca comi uma freira, — diz Rogério, tristonho diante desse ligeiro senão em seu rico currículo de vida.

A moça do Work Chop está de novo ali a serviço do clube. Sem dizer água vai, estende ao Velho um saquinho plástico com alguma coisa dentro.

— Ah, muito bem… — diz Embratel. — Uma sessão deste clube só está aberta formalmente depois que chega o pé-de-moleque do presidente…

Não acredito e não acredito. Não acredito, primeiro, que o cara tenha pedido um pé-de-moleque como merenda; não acredito, segundo, que tenha obrigado a moça a fazer todo o percurso da lanchonete até a sede do clube só pra lhe trazer um pé-de-moleque. É muita folga e muita babaquice. Me dá engulhos vê-lo abrir o saquinho, botar pra fora uma unha do pé-de-moleque, dar uma dentada, mastigar com prazer senil aquele troço e até catar migalhas de amendoim que pingam sobre a mesa.

— Presidente, quais são os itens da pauta? — pergunta Pedro Nunes.

— Começando pelas informações gerais, — diz o Velho, — tenho a informar que virei fornecedor de droga.

— Sério, presidente? — pergunta Chico.

— Sério, — confirma ele. — Nego telefona pra mim altas horas da noite, pedindo droga pelo amor de Deus, senão vai morrer, aí eu vou e entrego a droga pelo telefone mesmo. Meu primeiro cliente foi Rogério Coimbra.

— Eu? — diz Rogério. Terminou de comer toda a pipoca que havia no saco de pipoca, amassou o saco de pipoca sem pipoca, enfiou na lixeira mais próxima.

— Você mesmo, — diz o Velho. Aí volta a falar pra mesa toda: — Esse cara me telefonou ontem, onze horas da noite, pra me perguntar se eu tinha alguma versão da balada “Smoke Gets in Your Eyes”. Aí eu disse, Rogério, pelo amor de Deus, pra essas coisas você devia telefonar pra Garibaldi.

— Eu já tinha telefonado pra Garibaldi, — explica Rogério. — Não estava em casa. Devia estar na casa lá da namorada dele. E eu precisava ouvir com urgência uma versão de “Smoke Gets in Your Eyes”. Qualquer versão. Estava agoniado. Quando me bate essa necessidade de ouvir uma música, eu não consigo sossegar. Tenho que ouvir a música de qualquer jeito.

— Eu não disse? — diz o Velho. — Igual viciado com síndrome de abstinência. O problema é que os músicos de jazz não deram muita pelota pra “Smoke Gets in Your Eyes”. Tive de puxar pela memória até lembrar de uma versão com Dodo Marmarosa ao piano. Botei a droga pra Rogério ouvir pelo telefone, e aí ele suspirou aliviado. Não precisava mais dar um tiro no coco.

— Gostei da versão, — diz Rogério. — Dodo toca a melodia toda certinha, depois no final consegue, com umas poucas variações, estilhaçar a melodia sem quebrá-la. Gostei.

— Thelonious Monk gravou essa música, — informa João Luiz. — Me lembro que ouvi num velho lp lançado no Brasil com o título The Prophet. — Aí volta-se pro Velho: — E tem uma versão também naquele cd de Charlie Mariano que você tem, com o grande pianista John Williams.

— Ah, é? — diz o Velho. — Nem lembrei.

João Luiz Mazzi conhece os cds dos amigos melhor do que os conhecem os próprios donos.

— Que história é essa de grande pianista John Williams, cara? — se queixa Rogério. — Grande pianista é Bill Evans.

— Grande pianista é John Williams, — reincide João Luiz. — E digo mais —

— Já sei, — diz Rogério. — Vai dizer que é melhor do que Bill.

— Pra mim, é, — diz João Luiz. — E aposto que pra Garibaldi também.

— Ouvido de um, — diz Rogério, — orelha de outro.

— Nem tanto, — diz João Luiz. — Ele gosta de Charles Mingus e de Eric Dolphy e eu não gosto. Eu gosto do disco de John Coltrane com Duke Ellington e ele não. E mais uma meia dúzia de onze ou doze coisas mais. Entre nossas convergências principais eu citaria gostar de Art Pepper, desgostar de Miles Davis, dar nota acima de dez ao jazz da West Coast e nota abaixo de zero aos ritmos latinos no jazz.

— Miles Davis, — diz Chico, fazendo careta de quem sentiu cheiro de mijo. — Não gosto desse cara.

— Chico, — diz Rogério, — você gosta até de harpa paraguaia, você gosta até de Rodolfo e seu acordeom. Como é que não gosta de Miles Davis? Você está sendo solidário com João Luiz e Garibaldi, é isso. Réu solidário, porque não gostar de Miles Davis é crime.

— Pode me prender, — diz Chico, firme, — mas eu não gosto. — Dito isso, põe a bolsa no colo, abre o zíper, retira de dentro uma garrafa de plástico, enorme, que caber não sei como coube ali dentro. Retira a tampa, leva a garrafa à boca e bebe. Enfio em Dona Mônica um olho interrogativo.

— É água, — diz ela. — Ele bebe água o dia inteiro, e quando sai pra rua leva um litro de água na bolsa. Se fosse comprar toda a água que bebe, ia gastar uma fortuna.

— Mutatis mutandis, — diz o Velho, dando uma de latinista, — quero informar aos confrades que acabo de juntar-me aos bons. Aproveitei que hoje é dia de São Valentim e finalmente fui ao Valentim.

— Ao Valentim Zás-trás? — pergunta Rogério, admirado. E, como ilustração, põe o dedo médio em posição fálica e faz um gesto rápido de vaivém no ar.

— A ele mesmo, — diz o Velho. — E você tinha razão: ele é zás-trás.

— Eu não falei? — diz Rogério. — Dedo fino e rápido.

— Dedo de moça, — diz Chico.

— Dedo de santo, — diz o Velho.

Preciso de intérprete pra esclarecer essa linguagem codificada:

— A quem eles estão se referindo, Dona Mônica? Ao Valentim da cantiga de roda?

— Que cantiga de roda, menino, — diz ela. — Eles estão se referindo ao Dr. Valentim, um urologista. Quase todos os sócios já consultaram esse médico pra fazer o toque retal.

Senti um arrepio no rabo. Vade retro do meu reto, Valentim.

— Quer dizer que perdeu o cabaço, presidente? — diz Pedro Nunes.

— Com muita honra, — diz o Velho. — E acho que você devia fazer o mesmo.

— Eu não, — diz Pedro Nunes. — Meu cu é uma fortaleza indevassável, que tão cedo esse Valentim não terá ocasião de violar com dedo duro.

— O meu também não, — dizem, em coro, João Luiz Mazzi e Paulinho da Embratel.

— Tudo veado, — diz Rogério. — É preciso ser macho pra enfrentar a dedada retal.

— Sim, — concorda o Velho. — É preciso ser macho pra deixar fazer do cu dedal.

Nisso Dona Mônica anuncia ao meu ouvido:

— Garibaldi está chegando.

2. De sapatos e travestis

Confesso que me batem no peito um tique e um taque de pura emoção diante da perspectiva de enfim conhecer pessoalmente, ainda que a distância, o meu personagem principal. José Garibaldi Magalhães aponta à esquina da alameda do sudeste. Tenho de convir que ele é exatamente como o Narrador Original o descreveu: é alto, é desengonçado, e tem longas pernas trôpegas com as quais parece caminhar por linhas tortas. Quero crer também que pareça um Dexter Gordon branco, mas esse tipo de analogia está longe, pelo menos por ora, de ser minha especialidade. Tem olhar de facínora e boca de solha ou, pra usar o termo do Narrador Original, boca de maraçapeba. Numa das mãos traz uma sacola dessas de loja metida a chique de shopping rés-do-chão. É nesses termos que ele chega à orla da mesa do clube.

— Presente pra Maria da Penha, Garibaldi? — pergunta João Luiz, apontando pra sacola que Garibaldi traz na mão. Vejo, ou penso que vejo, o Velho contrair o rosto, deve ter sentido uma pontada aguda de ciúme.

— Que pra Maria da Penha o quê, — diz Garibaldi. — Eu sou lá de dar presente pra namorada. Isso aqui eu comprei pra mim mesmo. Três cuecas, que as minhas já estão em petição de miséria. Saio de casa, ando cem metros, a cueca já está abaixo da linha da bunda, ando mais cem metros, já está quase no joelho. Aí fui ali nessa loja e pedi três cuecas no meu número. Depois que eu escolhi, a moça teve o desplante de perguntar se era pra embrulhar pra presente. Olhei pra ela assim de banda e perguntei, Tá pensando que eu sou veado, moça? Tá pensando que essas cuecas são presente pra namorado? Eu gosto de jazz, moça, sou veado não. Ela ficou troncha, pediu desculpa, disse que foi a força do hábito que fez ela perguntar se era pra presente. Pra cima de um macho histórico que nem eu! Tá pensando o quê!

— Por falar nisso, — diz Pedro Nunes, — você viu a força do hábito que está sentado ali naquela mesa?

Garibaldi despacha um olhar infra-vermelho na direção de Dona Mônica, que baixa a cabeça, pudica. O semblante de Garibaldi se ilumina. O beiço se desdobra numa reverência antes de falar:

— Meus amigos, temos que entrar com um mandado de segurança pra tirar essa freira do convento. É anticonstitucional uma mulher como essa guardar castidade. E se a Igreja exigir uma troca de prisioneiras, a gente faz uma vaquinha das nossas mulheres, cada um dá a que tem, e eu até me comprometo a dar de lambuja, além de Maria da Penha, a mãe de Maria da Penha. Aí a gente troca essa freira por todas elas, que duvido que a Igreja recuse uma barganha dessas. A Igreja gosta de quantidade.

— E nós vamos ficar sem mulher? — diz Pedro Nunes.

— Como sem mulher, Lady Nunes? — rebate Garibaldi. — Pra essa mulher que está aí um homem só é pouco. Tem de pedir pau emprestado, como diz Francisco Grijó. Ela dá e sobra pro clube inteiro, pode confiar.

Confesso que faltou pouco pra eu avançar como um tanque contra aquele clube de filhos da puta, derrubar a pontapés umas três cadeiras com os respectivos sacripantas e achatar o nariz do sem-vergonha do Garibaldi com um soco bem dirigido. Dona Mônica, apesar de um pouco alta, é quem me contém.

— Deixa pra lá, que nós estamos em pesquisa de campo, — murmura ela ao meu ouvido.

Me atenho à cadeira, ainda arfante de fúria represada. Acendo um cigarro pra amainar os nervos. Definitivamente, disfarçar Dona Mônica em vestes de freira não foi a melhor das idéias que jamais passaram pelo cabeção do Sr. Eylau. Aí, de uma das lojas à roda da praça vejo sair uma moça que vejo chamar a atenção dos sócios do clube. Ela carrega, pendente de uma das mãos, um saco plástico com a barriga cheia d’água e um peixe enferrujado nadando dentro. Pelo menos um namorado, neste dia dos namorados, vai ganhar de presente outra coisa que não cuecas.

— Maria da Penha, — diz Garibaldi, — tem um peixe igualzinho a esse em casa.

— Garibaldi, por falar em Maria da Penha, — diz João Luiz, — estou vendo que se você não deu presente a Maria da Penha, Maria da Penha bem que deu presente a você.

— Como é que você sabe, Lady Mazzi? — pergunta Garibaldi.

— João Luiz Holmes? — diz Rogério.

— Eu sei porque sei, — diz João Luiz. — Sei que você ganhou presente, sei que o presente foi um sapato, e sei que o sapato é esse que você está usando. Sei tudo isso porque você esqueceu de tirar a etiqueta do sapato.

Garibaldi levanta o pé e vê-se que esse pé está calçado num sapato novo em folha, cor de rato quando foge. Vê-se também, confirmando os dotes observatórios de João Luiz, que tem uma etiqueta de papelão de todo tamanho pendendo por um fio do sapato novo. (Com que então temos aqui outro namorado que mereceu da namorada um sapato e não cuecas de presente no dia dos namorados.) Garibaldi ergue o pé, desamarra o cadarço e retira do pé o sapato. Que ele deposita com carinho sobre a mesa do clube.

— Parece até uma das lanchas da empresa de Paulinho, — diz Rogério.

Garibaldi, depois de algum esforço, consegue desvencilhar do sapato a etiqueta, que deixa cair sobre a mesa. O Velho, de enxerido, pega a etiqueta entre os dedos e aí solta uma exclamação:

— Garibaldi, esse sapato foi feito de encomenda pra você! Olha só a marca: West Coast!

— Que coincidência, não é? — diz Garibaldi. — Maria da Penha comprou sem nem notar a marca. Quanto a mim, gostei mais da marca que do sapato. O sapato parece que tem uns ovos de pau, tipo aqueles de costureira, embutidos no solado. Quando eu ando parece até que estou pisando em ovos.

— João Luiz, — diz o Velho, — você que, como Garibaldi, gosta tanto do jazz da West Coast, devia pedir à sua mulher pra comprar um sapato dessa marca pra você também.

— Deixa ver se vale a pena, — diz João Luiz.

O sapato de Garibaldi ainda está em descanso sobre a mesa. João Luiz pega o sapato na mão e o leva ao ouvido como se fosse um rádio de pilha.

— Não quero, — diz João Luiz. — Não estou ouvindo jazz nenhum, quanto mais da West Coast.

E entrega o sapato a Garibaldi. Que dobra sobre o joelho uma das suas pernas de Dexter Gordon e enfia o sapato no pé. Nesse momento, brota ao lado da mesa do clube a figura de um Intruso. Brota ali todo vestido de azul, com um avental de couro negro amarrado ao pescoço e à cintura, e, braços em riste pra baixo, bate palmas pra chamar a atenção. Parece um ferreiro, mas é, aposto, o engraxate que, pelo que sei da leitura dos capítulos pregressos, costuma circular por entre as mesas do Centro da Praia à caça de freguês.

— Quer que engraxa? — pergunta o Engraxate, apontando pro sapato West Coast de Garibaldi.

— Quero não, — diz Garibaldi. — Este sapato é novo.

— Eu tenho graxa dessa cor, — insiste o Engraxate. — Tenho graxa de toda cor.

— Não precisa, — diz Garibaldi. — Ganhei o sapato hoje. Estou usando pela primeira vez.

— Quer eu levo, levo e trago, em confiança, — diz o Engraxate, que ou é ou se faz de surdo. — Eu fico ali na entrada do shopping. Vinte minutos tá de volta no pé.

— Não, não, não, — diz Garibaldi. Estou vendo o momento em que Garibaldi vai tirar o sapato do pé e dar com ele na bunda do Engraxate.

— Tá bom, — diz o Engraxate. — Então leva o senhor mesmo. Eu fico lá na entrada até 20:00 horas. Tô esperando.

Vai-se o Engraxate e, no que se vai, cruza ao largo da praça com uma mulher gostosa, gostosa só?, pra lá de gostosa, quase tão gostosa, Deus que me perdoe, quanto Dona Mônica. Ela tem longos, largos cabelos pretos, negros, que lhe caem cacheados sobre as costas brancas, e feições de mulher fatal, incluindo lábios pintados na mais fatal das cores, vermelho-sangue-derramado. O corpo é curvilíneo, e o vestido cai tão justo sobre o corpo que parece a ponto de rasgar de cima a baixo, num strip-tease geofísico. Os sócios do clube todos com olhos fúlgidos acompanham a passagem da gostosa. Todos? Não, menos Garibaldi, que raspou na moça uma olhadela e agora se curva todo pra amarrar o cadarço do sapato. Quem disse que Garibaldi é doido por mulher? A atitude dele à passagem daquele mulherão contém um alto teor de indiferença que não se espera, em circunstâncias análogas, nem de um veado, quanto mais de um mulherengo contumaz. Embratel toma um gole de chope e diz:

— Eu conheço essa mulher… Essa mulher é casada, de vez em quando passa aqui com o marido, mas eu acho que ela é mulher casada de programa… E eu acho também que ela bate no marido, que é um tampinha deste tamaninho…

— Isso porque ele reclama que ela está chegando tarde do trabalho, — diz Rogério.

Pedro Nunes cai em si que Garibaldi não se deixou encantar nem um pouco pelo mulherão.

— Garibaldi, estou te estranhando, cara, — diz ele. — Como é que você pode olhar e desolhar uma mulher dessas?

Embratel é quem responde:

— Garibaldi acha que essa mulher é um travesti…

— Ele acha? — diz Pedro Nunes. — Então Garibaldi está provando que não entende nem de mulher, nem de travesti.

— E não entende mesmo, — diz Rogério. — Lembra daquele travesti que ele levou pra um quarto de hotel pensando que fosse uma mulher?

— Aquilo foi um equívoco compreensível, — se defende Garibaldi. — Vocês precisavam ver que travesti! Quanto a esse troço aí, o futuro ainda me dará razão. Isso não é mulher, é travesti.

— Você está é doido, Garibaldi… — diz Embratel. — É uma mulher casada de programa…

— Nada, — diz Garibaldi, convicto. — É um travesti de programa.

— Isso me lembra, — diz o Velho, — aquela história que aconteceu com Evelyn Waugh.

— Evelyn U. O.? Quem é essa? — pergunta Rogério.

— Não é essa, é esse, — corrige o Velho. — Evelyn Waugh é homem.

— Pensei que fosse alguma líder feminista, — diz Rogério.

— É um famoso escritor inglês, — informa o Velho. — Autor de Furo.

— Se chamava Evelyn e escreveu um livro chamado Furo, — diz Rogério, já malicioso. — Não era uma drag-queen não?

— Não, que é isso, o cara era um escritor católico, — informa o Velho. — E esse Furo, aí, é furo de reportagem, Scoop em inglês.

— Já pensou, — diz Embratel, — se esse Evelyn fosse casado com uma mulher que também se chamasse Evelyn?…

— Pois, por incrível que pareça, — diz o Velho, — a primeira mulher dele também se chamava Evelyn.

— Não brinca, — diz Rogério. — A primeira mulher dele? E se separaram porque nenhum dos dois sabia quem era quem?

— Não, — diz o Velho. — Se separaram porque a Evelyn andou botando uns chifres no Evelyn.

— Fez ela de muito bem, — diz Rogério. — Não é possível que um sujeito desses fosse bom de cama. Mas o que que você ia contar sobre ele?

— Durante a segunda guerra, — diz o Velho, reassumindo com gosto sua condição de narrador, — Evelyn Waugh serviu nos Bálcãs, e entrou em contato com a guerrilha sérvia. O chefe dos guerrilheiros era Tito, que depois se tornou presidente da Iugoslávia, e Evelyn Waugh, que era meio doido, sei lá o que deu na cabeça dele que ele começou a espalhar que Tito era mulher.

— Que doideira, — diz Rogério. — O cara tem nome de mulher, escreve um livro chamado Furo, e bota na cabeça que os outros é que são mulheres.

— Até que um dia, — continua o Velho, — Evelyn Waugh se encontrou cara a cara com Tito, e Tito perguntou a ele: É você o inglês que vive dizendo por aí que eu sou mulher? Aí Evelyn Waugh ficou todo sem graça e parou com aquela história.

— Tito deve ter botado o pau pra fora e mostrado pra ele, — diz Rogério.

— Devia ser um pau pra toda obra pra convencer o tal do Evelyn… — diz Embratel.

— Mesma coisa Garibaldi… — diz Pedro Nunes. — Só vai se convencer que aquela mulher não é travesti se ela tirar a roupa na frente dele e mostrar a identidade…

— Se ela fizer isso, — diz Rogério, — eu também vou duvidar que ela é mulher.

— É travesti, — diz Garibaldi, teimoso que nem uma mula.

— O problema deste clube de jazz, — diz João Luiz, — é que aqui não se fala de jazz. Por isso é que está em crise.

— O problema deste clube de jazz, — diz Rogério, — é que aqui não se ouve jazz. Por isso é que está em crise.

— Pois então eu vou falar de jazz, — diz o Velho. — Nosso amigo Luiz Romero, aliás Salsa —

Embratel interrompe pra perguntar:

— Cadê Salsa, afinal?… Por que não vem mais?… Será que trancou matrícula?…

— Está dando aulas no curso de Letras da Ufes, — diz o Velho, — como professor substituto.

Por que será que me bate mal nos ouvidos essa expressão, professor substituto?

— Eu soube disso, — diz Rogério, que tudo sabe e muito informa. — Soube que ele dá aula pra uma turma de quarenta mulheres. Logo no primeiro dia a mulherada foi querendo se engraçar pra cima dele, ele fez questão de deixar bem claro: sou professor exigente e fiel à minha esposa.

— Que babaca, — diz Garibaldi. — Lady Babaca e os quarenta mulherões…

— Perguntaram a Salsa, quando ele era criança, — diz Rogério, — que que ele queria ser quando crescesse. Aí Salsa respondeu, sem hesitar: Eu quero é casar!…

— Senhores, — diz o Velho. — Vocês não querem que se fale de jazz neste clube? Pois então deixem-me falar de jazz.

— Fala, presidente, — diz Chico.

— Nosso amigo Salsa está vendendo todos os cds dele de jazz, — diz o Velho. — Aliás, todos os cds dele, todos, de jazz, de rock, de mpb, sem exceção.

— Está precisando tanto de dinheiro assim? — pergunta Chico.

— Salsa parece personagem de Chesterton, — diz o Velho. — Já esteve muito mais precisado de dinheiro do que agora e não vendeu cd nenhum. Agora, justamente porque não está mais tão precisado assim é que pôs à venda todos os cds, sem exceção.

Houve um silêncio geral de homenagem ao incrível bom senso do sócio ausente.

— Minha sala na universidade, — diz o Velho, — virou um bazar de mercador persa. O armário está abarrotado de sacolas com a mercadoria de Salsa, e de vez em quando ele me entra portas adentro com um cliente a tiracolo.

— A quanto ele está vendendo a muamba, Lady Prez? — pergunta Garibaldi.

— Preço de feira, — diz o Velho: — dez paus a unidade.

Garibaldi ameaça se interessar.

— Que que tem lá de coisa boa? — quer saber.

— Na maior parte, cds de guitarristas, — diz o Velho, — que Salsa, embora saxofonista, sempre quis é tocar guitarra.

— Se fosse guitarrista, ia querer tocar sax, — diz Rogério.

— Tem cds de Mike Stern, — informa o Velho, — de Mike Whitfield, de Earl Klugh, de Joe Pass, de Philipe Catherine, de Larry Coryell —

— Você quer dizer, eu presumo, de Lady Embratel, aqui presente? — diz Garibaldi.

— Ah, sim, — diz o Velho. — Dele tem dois, e um é justamente aquele que Coryell gravou com Emily Remler.

— Lady Embratel, tem notícias de Emily Remler? — diz Garibaldi.

— Não morreu? — diz Embratel.

— Sabe tudo sobre Emily Remler, — diz Garibaldi. Pelo que já li antes e pelo que estou vendo agora, brincar com a semelhança entre Larry Coryell e Paulinho da Embratel é o único exercício de ironia que Garibaldi jamais foi capaz de conceber e executar em toda sua vida. Logo depois diz ele pro Velho: — Pois nenhum desses músicos que você mencionou aí, nada disso me interessa, — porque nada disso é da minha época. Que que tem pra mim? Que que tem da minha época?

— Da sua época? — diz o Velho. — Da sua época tem Relaxin’, de Miles Davis —

— Me respeita, cara, — diz Garibaldi. — Eu sou o inimigo público n. 1 de Miles Davis, já esqueceu?

— Tem Blues Walk, de Lou Donaldson.

— Esse disco, — diz Garibaldi, — tem aquele parente de Lima Barreto, Ray Barretto, tocando conga. Esse disco eu pago pra não ganhar nem de presente.

— Tem The Bridge, de Sonny Rollins com Jim Hall.

— Eu vi Sonny Rollins no Rio… — diz Embratel. — Ele imitou o apito de um navio. Ele segurou a nota um tempão, assim, ó…

Embratel segura nas mãos um sax-tenor imaginário, compõe os lábios num círculo e começa a soprar ali uma nota grave que extrai do fundo do fole de suas entranhas: Tó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó… Dá pra notar, pela expressão do seu rosto, que ele está quase em êxtase produzindo aquele som de apito de navio. O que não é de estranhar em pessoa que trabalha no ramo de lanchas: esse é o som da baía de Vitória.

— Sonny Rollins, — diz Garibaldi, — nunca se dignou a pensar em mim na hora de escolher os temas do repertório dele. Só toca merda.

— Sonny Rollins, — diz Rogério, — já disse que não dá importância ao tema, mas ao desenvolvimento do tema. Pra ele tanto faz tocar “Now’s the Time” como “Mary tinha um carneirinho”.

— Até posso concordar, — diz Garibaldi. — A merda é que Sonny Rollins sempre foi o rei do calipso, e ouvir “Mary tinha um carneirinho” em ritmo de calipso é mais do que meus ouvidos delicados podem suportar.

O Velho insiste em anunciar a mercadoria posta à venda por Luiz Romero:

— Tem Natural Rhythm, com Al Cohn e Freddie Green.

— Freddie Green? — diz Garibaldi, torcendo ao mesmo tempo boca e nariz. — Freddie Green é o cara mais chato da história do jazz. Tocou cinqüenta anos na orquestra de Count Basie e o que fez nesse tempo todo? Só marcou ritmo na guitarra. Cinqüenta anos e nem um solo sequer. Cinqüenta anos, ainda por cima, competindo com o som do contrabaixo da orquestra. Eu quero ouvir o contrabaixo de Eddie Jones, tenho de ouvir junto aquela guitarrinha pé-no-saco metendo o bedelho no meu ouvido.

A moça de amarelo está de volta ao recinto do clube. Traz na mão um prato no qual se espicha, como num leito de Procusto, uma baguete quilométrica; é um sanduíche de peito de frango defumado, com maionese light, queijo prato, alface e tomate. A moça pede licença pra acomodar o prato sobre a mesa. Ouvem-se exclamações de todos os lados: Quem pediu isso? Chico, foi você que pediu isso? Quem pediu isso? Fui eu não. Mas esse é o sanduíche polonês que você gosta. Não foi você não? Então quem foi? Quem pediu isso, moça?

A moça sorri, e só. A identidade da pessoa que pediu aquele sanduíche irá com ela pra cova.

— Foi alguém que mandou um torpedo pra nós?… — diz Embratel.

— Isso é que é torpedo, — diz Pedro Nunes. — E, se não tem dono, comamo-lo. Dá pra satisfazer o clube todo, assim como, segundo Garibaldi, a nossa amiga religiosa também.

— Ei! Vão tirando a mão do meu sanduíche, — diz uma voz.

— Fernando Achiamé, — diz Dona Mônica, sem nem olhar pro lado de onde vem a voz.

3. Miss Terça-Feira

Fernando Achiamé é um sujeito pesado e corpulento, e no entanto desliza sobre o piso como se tivesse rolimãs nos pés. A cabeça é redonda; seu topo, pela ausência de vegetação, lembra uma calota polar; no rosto, embora sobre testa, não falta nada: tem olhos, nariz, orelhas e boca. Na boca medra, neste instante, um sorriso de quem fez travessura. Dou uma espiada em sua ficha: “Fernando Antônio de Moraes Achiamé: Colatina, 1950. Licenciado em História. Historiador. Arquivista. Ex-diretor do Arquivo Público. Ex-professor de História da Arte na Ufes. Ex-síndico do edifício onde mora. Talvez devido à sua especialização como arquivista, é obsessivo colecionador e disseminador de papéis, e adora tirar cópia de qualquer documento. Organizou a edição das Memórias do passado, do padre Francisco Antunes de Siqueira (1832-1897), para a qual preparou uma apresentação quase tão longa quanto o texto do padre. Poeta, é autor do livro Expedição diversa, que, impresso, tomou o nome de A obra incerta, em lembrança do demorado processo de edição: os cépticos davam como incerto que o livro fosse algum dia publicado. Credita-se a ele a criação da antológica expressão ‘estar na lama por amor’, resultado de leitura equivocada do título da canção ‘I’m in the mood for love’, que ele teria lido como ‘I’m in the mud for love’. Chegou ao jazz pelo caminho do cancioneiro popular norte-americano, donde sua reverência por cantoras como Billie Holiday e Ella Fitzgerald. Luiz Romero de Oliveira cunhou para ele o cognome de Achmed; as más línguas do clube cunharam o de noivo da praça Costa Pereira, local onde foram tiradas as fotografias depois do enlace; o presidente do clube aparece nas fotos na condição de padrinho.”

— Só mesmo o comilão do clube, — diz o Velho, — seria capaz de mandar um sanduíche polonês pra anunciar sua chegada.

— Quis fazer uma brincadeira com vocês, — diz Fernando.

— Pois mais um pouco e você teria perdido seu sanduíche polonês, — diz Pedro Nunes.

— Por que é que chamam esse sanduíche de polonês? — pergunta Fernando.

— É o sanduíche que o turista polonês leva de merenda, — diz Embratel, — pra comer na Place Vendôme em Paris…

— Chico, que é polonês mas nunca foi a Paris, — diz Rogério, — come esse sanduíche ouvindo o disco Place Vendôme, dos Swingle Singers com o Modern Jazz Quartet.

— Que beleza de disco, Rogério, — diz Chico. — O presente que me deu de presidente. — Aí vê que bateu em tecla perigosa. — Esse disco também era seu, Rogério?

— Fica tranqüilo, — diz Rogério. — Esse era do presidente mesmo.

— Tá chovendo à beça lá fora, — diz Fernando, de olho em João Luiz. — Tá tudo alagado, é um verdadeiro dilúvio.

— Você tá brincando, — diz João Luiz, que já deve estar escaldado desse tipo de brincadeira.

Durante todo esse tempo Garibaldi se mantém calado, espiando as unhas.

— Fala com os pobres, Garibaldi, — diz Fernando.

— Fala com os pobres o cacete, — rosna Garibaldi. O clube faz silêncio total. A luz dos refletores, se refletores aqui houvesse, se concentraria sobre os dois súbitos antagonistas. Oba. Parece que vem duelo por aí.

— Que que foi, Garibaldi? — diz Fernando. — Brigou com Maria da Penha?

— Não quero conversa com você não, seu pulha, — diz Garibaldi. Como acha que pulha é pouco desaforo pra despejar sobre Fernando, acrescenta: — Seu joaquim silvério. Seu fernandantônio. Seu noivo da praça Costa Pereira!

— Mas o que foi que eu fiz? — diz Fernando, com um sorriso de quem sabe muito bem o que fez.

— Mas o que foi que ele fez? — diz o Velho, com um mal-estar de quem não sabe.

— O que foi que ele fez? — diz Garibaldi. — Eu vou contar. Outro dia aí, ontem, anteontem, sei lá, eu peguei o ônibus ali na avenida Isabel, lá na cidade. Entrei, a primeira coisa que eu vi foi a cabeça desse cara lá pelo meio do ônibus. Ele estava sentado num banco ao lado de outra pessoa. Aí ele disse, apontando pra um lugar vazio num banco próximo: Senta aqui, Garibaldi, pra gente conversar. Mas nesse momento, que vejo eu num banco mais atrás: o rosto radiante da deusa de Jucutuquara!

— A deusa de Jucutuquara! — o Velho quase chega a babar de emoção.

— Minha musa inalcançável, — diz Garibaldi, com beiço lírico, — bem ali ao alcance da minha mão. E ainda por cima tinha um lugar vago ao lado dela. Foi ali que eu sentei, coração batendo disparado que nem a bateria de Gene Krupa.

— E aí, Garibaldi? — diz o Velho. A atenção dos demais sócios do clube também está toda pendurada no beiço de Garibaldi.

— Gente, — diz Garibaldi. — ela estava deusa e cor-de-rosa como sempre. Vestido diáfano cor-de-rosa, pele também cor-de-rosa, joelhinho cor-de-rosa, pezinhos nus, toda cor-de-rosa, deusa, diva, divina, caída do céu pra mim bem ali naquele bendito banco de ônibus! Aí respirei fundo e me preparei pra abordar. Não podia perder aquela oportunidade cor-de-rosa. Aí virei pra ela e disse: Moça, você está lembrada de mim? Ela olhou pra mim, senhores, e eu senti o olhar dela como uma lambida de carinho. Estou lembrada não, ela disse, e cada sílaba de cada palavra pronunciada por ela caiu em meu ouvido como uma pérola de som. Aí eu expliquei: Eu sou aquele da televisão, lembra não? Podia ser, eu achei, que ela lembrasse daquela vez que ela estava pedindo carona em Maruípe, eu parei o carro, mas tinha a filha da puta da televisão em cima do banco do carona e só deu merda. Aí ela virou o corpo na minha direção, toda interessada, e os joelhinhos dela tocaram a minha perna. Aí ela disse: Da televisão? Você trabalha na televisão? Gente, eu ia mentir. Se isso era importante pra ela, eu juro por Deus que ia mentir que mandava e desmandava na televisão. Depois eu me virava pra arranjar um emprego de diretor lá, nem que tivesse de matar uns três pra conseguir. Mas na hora que eu ia responder, alguém, algum filho da puta, se inclina sobre a deusa e diz: Menina, você se importa de sentar no outro banco pra eu bater um papinho aqui com o meu amigo?

Garibaldi desfere um olhar de ódio sobre Fernando, que continua com seu sorriso ligado em ponto morto nos lábios.

— Era esse filho da puta, — diz Garibaldi. — Era esse pentelho do diabo, esse rei dos xaropes, esse pé de alface, esse perna quebrada das bengalas. A deusa levantou, esse veado sentou e começou a falar abobrinha sobre Ella Fitzgerald. Desci no primeiro ponto pra não dar uma porrada no focinho dele.

— Fernando, isso não é coisa que se faça nem com o pior inimigo, — diz Rogério.

— Com um amigo como Achiamé, — diz Garibaldi, — ninguém precisa de pior inimigo.

— Que nada, — diz Fernando, inabalável em sua consciência tranqüila. — Salvei você de mentir, salvei você de matar, e salvei você de se envolver com uma mulher interesseira, que ia trocar você depois pelo primeiro pica grossa da televisão. E mais: nem achei a moça tão divina assim como você alardeia. Falta cor e falta carne.

— Cala o bico, serolico, — diz Garibaldi. — Quer cor, vai na Bahia. Quer carne, vai num açougue. Você lá entende da mulher dos outros, seu trombeta de sete varas!

Garibaldi fala rugindo, fala espumando. Daqui a pouco mais vai sair porrada na praça. Fernando entende que é preciso contemporizar.

— Mas olha só o que eu trouxe pra você, Garibaldi, — diz ele. Diz e exibe diante dos olhos de Garibaldi, como isca apetitosa, um cd. Que num gesto instantâneo Garibaldi arrebata da mão de Fernando. Arrebata e dá um beijo de estalo na capa do cd. Foi-se a tempestade do seu rosto, que é todo bonança.

— Ah, o bom disco à casa torna! — exclama ele.

— Que disco é esse, Garibaldi? — pergunta Chico.

— É Time Further Out, de Dave Brubeck, — diz Garibaldi.

— E por que todo esse melodrama? — pergunta o Velho.

— Outro dia eu dei por falta deste disco, — diz Garibaldi. — Procurei lá em casa, procurei na casa de Maria da Penha, não achei em lugar nenhum. Aí supus que tivesse emprestado a alguém do clube, mas não lembrava a quem. Perguntei a João Luiz e a Rogério, com eles não estava. Aí liguei pra esse cara. Fernando, você por acaso está com o meu cd Time Further Out, de Dave Brubeck? Olha só o que o cara me responde: Ah, é seu? Eu vi esse cd na minha estante e não lembrava de quem era, pensei que fosse meu.

— Foi só um lapso de memória, — diz Fernando.

— Garibaldi, essas coisas acontecem… — diz Embratel. — Outro dia eu pedi a um amigo meu pra devolver um cd que eu tinha emprestado a ele, ele disse: Ué, eu pensei que você tivesse me dado o cd de presente… Aí eu disse: Então me empresta…

— Garibaldi, essas coisas acontecem, sim, — diz Rogério. — Já aconteceu coisa semelhante com você mesmo. Uma vez eu dei a você no seu aniversário um cd de presente e no meu aniversário você me deu o mesmo cd de volta. Lembra não? Digo até o nome do cd: Undercurrent, de Bill com Jim Hall.

— Também, — diz Garibaldi, — esse cd é chato pra caralho.

Aí dá outro beijo de estalo no cd de Dave Brubeck. Aí vê, presa no dorso do cd, uma pequena etiqueta adesiva. Aí exclama:

— Número J-41? Que diabo é isso aqui no meu cd?

— Ah, Garibaldi, — diz Fernando, — eu explico. Eu pensei que o cd fosse meu, aí dei logo a ele um número identificador. É o meu cacoete de arquivista, só isso. — Retira do cd a etiqueta e diz: — Pronto. É todo seu. Agora podemos fumar o cachimbo da paz?

— Podemos, Lady Achiamé, — diz Garibaldi, — embora o mais correto seria eu enfiar o cachimbo da paz no seu cu. Mas tudo bem. Você ainda está me devendo a deusa de Jucutuquara, mas pelo menos meu cd eu recuperei. Esse cd significa muito pra mim. Foi o primeiro disco de Brubeck que eu comprei, e ainda tenho o lp até hoje.

Fernando Achiamé consegue enfiar uma cadeira entre Rogério e Embratel e puxa pra seu lado o prato com o sanduíche polonês. Lambe os beiços de gula e começa a trinchar o sanduíche com garfo e faca. Põe na boca a primeira garfada e parece que entra em transe gastronômico. João Luiz se levanta e sai da mesa sem uma palavra. Garibaldi continua a cantar loas pro disco de Dave Brubeck:

— A faixa “Far More Drums” tem o solo de bateria do século. Joe Morello é o baterista de jazz do século, na minha humilde opinião. O cara é foda. Pra vocês verem, dia desses cheguei na casa de Maria da Penha, ela estava sentada no chão, com headphone no ouvido, ouvindo alguma coisa na ostra. Cara, ela se agitava toda, cabeça, corpo, braços, peitos, mãos, dedos, tudo, no ritmo da música que estava ouvindo. Estava de olho fechado e a expressão do rosto dela era de uma bacante. Fiquei duas coisas: fiquei curioso e fiquei de pau duro. Quando a música terminou, ela abriu os olhos e me viu. Tá ouvindo o quê, eu perguntei. Sabe o que era? Era o cd de Dave Brubeck daquela série holandesa, Jazz Hour. Era a gravação de um concerto do quarteto feito em 1965 em algum lugar da Europa. Ela estava ouvindo uma faixa chamada “Joe’s Blues”, que é quase que só um solo de Joe Morello, mais ou menos no estilo de “Far More Drums”, só que mais longa. Estilo tribal, como diz Maria da Penha. Resumo da ópera, meus amigos: ela uma bacante, eu de pau duro, não podia dar outra: comi Maria da Penha ali mesmo no chão em homenagem a Joe Morello.

Observo que o rosto do Velho se tingiu de verde, sinal de que ele foi acometido de mal súbito. Não deve ser fácil pra ele, coitado, ouvir da boca torta de Garibaldi um relato desses envolvendo o objeto de sua paixão. Mas eu disse coitado? Coitado por quê? Por que deveria eu ter pena? Bem feito. Quem manda se apaixonar por uma personagem de ficção?

— Fernando, — diz Chico. — Eu encontrei no sebo da rua O’Reilly um exemplar do Guia do Arquivo Público Estadual feito por você. E comprei. E trouxe pra você autografar pra mim, se me faz favor.

— Claro, Chico, — diz Fernando. — Cadê a obra?

Chico põe a bolsa no colo, abre o zíper, retira lá de dentro a garrafa d’água, que põe sobre a mesa, e depois um pequeno abajur de cabeceira, que põe também sobre a mesa, e depois um vaso de planta sem planta, que acrescenta aos outros itens sobre a mesa, e depois uns dois ou três livros grossos, que idem ibidem, e depois um guarda-chuva desses que dobram e desdobram, que deita no chão por falta de espaço na mesa, e por fim um volume largo como um caderno, que passa às mãos de Fernando.

— Você que encapou o livro com plástico? — diz Fernando.

— Eu mesmo, — diz Chico. — Eu trato meus livros com muito carinho, Fernando. Livro é uma coisa muito preciosa pra mim.

Fernando rabisca alguma coisa na folha de rosto do livro. Chico aproveita pra beber alguns goles d’água, dando um beijo demorado na boca da garrafa. Fernando devolve o livro a Chico. Chico lê a dedicatória.

— Muito obrigado, Fernando, — diz ele. — Este é um livro muito importante, que eu ainda não tinha na minha coleção. Muito obrigado.

— Chico, não tem nenhum aparelho de som aí nessa bolsa de Mary Poppins não? — diz Rogério.

— Tem não, Rogério, — diz Chico.

— E essa tralha toda aí? — pergunta Rogério.

— O abajur eu levei pra consertar, — diz Chico. — Os livros eu comprei no sebo, tudo muito bom e muito barato, Rogério, não podia deixar de comprar. E o vaso eu comprei pra plantar umas mudas de violeta que eu ganhei de presente da minha vizinha de vinte e cinco anos.

— Uma vizinha de vinte e cinco anos te deu violeta de presente? — diz Garibaldi. — Dá em cima, Chico, dá em cima, que aí tem coisa…

— É Dona Deolinda, Garibaldi, — diz Chico. — Tem vinte e cinco anos que ela é minha vizinha, mas ela já passou dos oitenta.

João Luiz retorna ao grêmio da companhia dos amigos.

— Não tá chovendo porra nenhuma, — diz ele pra Fernando.

— Já estiou? — diz Fernando, sonso. — Quem diria, parecia que ia chover a noite toda. — Seu olho resvala até a mesa de cá e pega em cheio em Dona Mônica. Diz ele: —Ou muito me engano ou aquela freira ali está tomando uma dose de uísque.

— Está ali desde que chegamos… — diz Embratel. — Parece que o cara ao lado é o namorado dela…

— Bom, se freira já pode tomar uísque num shopping, — diz Fernando, mastigando mais um naco do sanduíche polonês, — já pode ter namorado também.

— Nunca comi uma freira, — diz Rogério, tristonho.

— Come essa aí, — diz Garibaldi. — Aproveita que ela está n’água. Se ela for igual a agrião, que só dá n’água, está em tempo dela dar.

— Mas lembre-se, Rogério, — diz o Velho, metendo a colher torta, — que uma freira você tem de cantar com boas maneiras, tem de cantar à moda antiga. Talvez fosse o caso de usar a cantada com que, segundo Paulo Vellozo, as donas mafaldas eram cantadas pelos dons joões de antigamente.

— Que cantada é essa?… — pergunta Embratel.

— Na verdade é uma trova, — diz o Velho. — As cantadas eram em verso naquele tempo.

Aí recita:

Senhora Dona Mafalda,
Eu peço que permitais
Introduza o com que mijo
No por onde vós mijais.

A quadra faz sucesso, não admira. Pra porcos chauvinistas, lavagem fescenina. No que eles lá riem e gargalham, Dona Mônica aqui se levanta e pede licença pra ir ao toalete. Acho que está com a cabeça doída de tanta sacanagem que seus ouvidos de freira foram obrigados a ouvir durante esta mafaldada, digo, malfadada pesquisa de campo. Mas é ela se afastar e me bate um estalo de autocrítica. Que moralismo é esse? Não estou me reconhecendo. Releio na memória a quadra de Paulo Vellozo e rio. Rio ainda que tarde, e rio bem e com prazer. Sinto-me, ainda que a distância, enturmado com os sócios do Clube das Terças-Feiras; sinto-me, ainda que com um pé atrás, próximo do Velho, capaz de congraçar-me com ele. O que é, então, que deu antes em mim? Será que foi a presença de Dona Mônica em trajes de freira que me levou a assumir mentalidade carola e feminista? Se foi isso, em boa hora sua virtuosa bexiga a levou pro banheiro, em busca de um vaso onde verter sua urina benta. Assim, longe dela e de sua influência perniciosa, desfaz-se o encanto e volto a ser o que sempre fui e sempre serei, com a graça masculina de Deus: um bom porco chauvinista filho da puta e militante.

Rogério, que acompanhou a saída de Dona Mônica com os olhos, de repente começa a recitar um poema:

A mecânica dos meus olhos sobre bundas e testas
realça o prazer de estar reouvindo,
entre conversas e ruídos, o título da faixa,
o treque, a track e o craque, o som enfim.
Não existe prazer maior do que o da música
e, claro, o do prazer.
Tudo isso acontece em favor do jazz e da jezebel.
Terças sagradas, gravadas, reveladas.
Terças e quintas, sétimas e nonas.
All blues.

— Que coisa linda, Rogério, — aplaude Chico, emocionado. — É coisa sua?

— Bem ou mal, é coisa minha, — diz Rogério, tomando um gole de cerveja.

— Vai fazer sombra a Fernando, a Pedro e a Garibaldi, os poetas do clube, — diz o Velho. As mãos de Rogério gesticulam no ar, discordando modestas do elogio.

— Sou poeta porra nenhuma, — contesta Garibaldi.

Ressurge na paisagem o Engraxate, que vem trazendo nas mãos, cheio de orgulho profissional, um par de sapatos marrons. Pára junto a uma mesa da praça onde está sentado um sujeito de pé de meia. É dele o par de sapatos levados em confiança pra engraxar e agora devolvidos cintilantes aos pés do dono.

— Gostei do nome Jezebel, — diz o Velho. — É nome ideal pra mulher que gosta de jazz. A bela do jazz.

— Mulher que gosta de jazz, — interpõe Garibaldi, — ou se chama Amy Merrill ou se chama Maria da Penha. Jezebel é nome de mulher que dá pra homem que gosta de jazz.

Nesse exato momento, os sócios do clube, o Velho inclusive, se mesmerizam a olhar quem passa, uma morena gostosa até dizer chega, que, ainda que me doa admiti-lo, é a mulher mais gostosa que apareceu no Centro da Praia esta noite, mais gostosa até do que Dona Mônica. Esta gostosa tem a vantagem, além do mais, de poder usar e estar usando um vestido curto e estampado, mais curto do que estampado, preso aos ombros morenos por alças finas como barbante. Vestido curto e estampado que passa a certeza de que, ali embaixo, se há calcinha, sutiã não há. Os peitos são duros, os mamilos aguçados. E como se não bastasse tanta gostosura, ela ainda exibe, no alto da omoplata direita, uma aranha tatuada. Passa a morena e as observações dos sócios do clube pululam no ar:

— Essa mulher tem o tipo de peito que nosso amigo Beto Freire chama de peito de Quero Beto, Quero Beto, — diz João Luiz.

— Coisa boa é mulher, — diz Chico.

— Se eu tivesse uma mulher dessas em casa, eu não viria à reunião deste clube nem pelo capeta… — diz Embratel.

— Se cada um de nós tivesse uma mulher dessas em casa, — diz Rogério, — o clube ia ter que fechar.

— Só que ela tem um andar meio esquisito, — diz o Velho.

— Andar meio esquisito? Quem foi o pederasta que falou isso? — diz Pedro.

— Foi o presidente, — diz Fernando.

— E eu que achei que aquela freira fosse gostosa, — diz Garibaldi. — Gostosa é essa mulher da caranguejeira.

— Eu sempre gostei de aranha caranguejeira, — diz Rogério.

A morena entra numa loja de antigüidades ali perto da praça. Os sócios do clube continuam azarando-a mesmo de longe. Na loja a moça olha uma ou duas peças antigas, faz uma ou duas perguntas, ouve uma ou duas respostas, o tempo todo consciente da admiração que crepita no grupo de estetas ali fora reunidos. Quando sai da loja, sai com as mãos vazias mas a cabeça cheia de bons pensamentos, do tipo “gostosa sou eu, quando eu passo a homarada aplaude de olho em pé e a mulherada morre dura de inveja”. Sai da loja, vira à direita e dá de cara com uma loura do caralho que vem vindo na contramão desta história. A loura está vestindo também vestido leve e folgado, tem joelhos e pernas gloriosas, e os peitos em ponta devem ser a quintessência do estilo de peito Quero Beto, Quero Beto. Por alguns segundos as duas gostosas se encaram de alto a baixo. Está em jogo entre as duas o título de Miss Terça-Feira. A morena, por fim, desvia pro lado e se afasta. Se afasta ainda cheia de si, mas um narrador astuto percebe que ela se afasta como quem engoliu em seco. Seu andar, inclusive, nota o narrador astuto, é um pouco esquisito. Parece que ela tem de agitar, a cada passo, uns guizos invisíveis presos ao calcanhar. Já a loura vem na direção da praça com uma expressão de puro alheamento no rosto, que não é suficiente pra esconder, do narrador astuto, que sua cabeça está cheia de bons pensamentos, do tipo “botei essa sirigaita no lugar dela”. A loura vem, senta-se à mesa ao meu lado, cruza as pernas suntuosas.

— Larguei o hábito, — diz Dona Mônica.

O clube está em peso de olho nela.

— Quem é essa mulher? — pergunta Garibaldi. — É a irmã da irmã?

— Bem que eu desconfiava, — diz Fernando, — que essa freira não era freira coisíssima nenhuma. Aposto que é uma atriz fazendo uma performance no shopping.

— Cara, — diz Embratel, — se essa mulher vier aqui toda terça, eu nunca mais falto a uma sessão do clube…

— Meu amigo, — diz Garibaldi a Rogério, — você é que perdeu sua oportunidade de comer uma freira. Agora não dá mais.

Quanto a mim, mato as saudades de ver o rosto como um todo da secretária da Agência Ajax, de ver-lhe os cabelos (se de louro legítimo ou folheados a louro, tanto faz), de ver-lhe pescoço, ombros, braços, tudo que dê pra ver. Resisto, com a ajuda de Santo Antão, à tentação de pegar a patinha macia de Dona Mônica e cobri-la de beijos alucinados. Pelo menos olho-a no olho e me declaro:

— Dona Mônica, foi um prazer fazer pesquisa de campo com a senhora. Mas devo admitir que o prazer teria sido bem maior se não fosse essa cambada de imbecis aí se fazendo notar o tempo todo.

— Mas eles são o objeto da pesquisa, — diz ela. — É sobre eles que você vai escrever. É pra isso que você está sendo pago.

— Estou sendo não é o tempo verbal adequado, — contesto. — Você deve dizer: É pra isso que um dia quem sabe pode ser que você seja pago. E por falar em finanças, antes que eu me esqueça, queria que você levasse isto aqui pro Sr. Eylau como prova da alta consideração que dedico à pessoa dele.

Tiro do bolso da camisa um papel dobrado e ponho nas mãos de Dona Mônica. Ela abre o papel e se surpreende com o que lê:

— Oração de Santa Edwirges para os endividados? Que diabo é isso? Que utilidade isso teria pro Sr. Eylau?

— Respeito a sua fidelidade pelo patrão, Dona Mônica, — é o que digo, — mas ambos sabemos que o Sr. Eylau está devendo até as cuecas. Sei ler muito bem nas entrelinhas telefônicas e em saídas de emergência como essa viagem a Barra de São Francisco. Não pense que nasci ontem.

— Hum, — diz ela, devolvendo-me a oração com uma sílaba nasal de desdém. — Pois reze o senhor. O meu patrão está em dificuldades, sim, mas não de ordem financeira. Está em dificuldades, digamos assim, de ordem passional. Se envolveu com uma mulher casada e o marido dela está atrás dele pra tirar satisfação.

— O Sr. Eylau? — me admiro.

— O Sr. Eylau tem muitas qualidades, — diz Dona Mônica, — mas infelizmente é um casanova incorrigível.

4. Coda

Assim foi a pesquisa de campo da Agência Ajax de Produções Literárias pra fins do projeto Dois graus a leste, três graus a oeste, segunda parte. Resta apenas acrescentar uma rápida coda. A moça de amarelo vem cobrar a despesa, que a Agência Ajax não tem crédito na casa. Deu catorze paus. Não consigo segurar uma exclamação: Catorze paus! Afinal quanto é que vocês cobram por um palito nessa lanchonete? O palito é de graça, diz a moça. Só cobramos o uísque. Me contorço todo dentro de mim, só de pensar que lá se vai meu rico dinheirinho. Mas Dona Mônica, não mais irmã, ainda é capaz de fazer caridade. Bota quinze paus na mão da moça e diz: Pode ficar com o troco. E pra mim: Eu sou uma mulher moderna. Gosto de pagar eu mesma aquilo que consumo. Penso em cobrar o café aziago que paguei pra ela, mas deixo pra lá. Antes morrer num café aziago do que numa dose dupla de uísque Johnnie Walker de doze anos. A conta paga sem dor, a cantora do dia dos namorados aparece na praça do Canto com seu violão peripatético e pergunta aos sócios do clube se querem pedir uma música. Garibaldi vai logo dizendo que se pedirem “My Funny Valentine” ele se retira em protesto. Os outros hesitam. Bate um branco coletivo. Ninguém tem presença de espírito pra pedir música alguma. Da outra mesa, uma loura gostosa levanta o dedo. A cantora diz: Sim? A loura gostosa diz: “Carinhoso”. Quer dedicar a alguém, pergunta a cantora. A loura gostosa diz: Quero dedicar a Teodomiro Reis, meu namorado, com um grande beijo de amor. A cantora começa a cantar “Carinhoso”. Os sócios do clube ficam todos enciumados de Teodomiro Reis, e eu, que sócio não sou, fico mais enciumado do que todos eles juntos.

Reinaldo Santos Neves é escritor com vários livros publicados e foi responsável pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas da Literatura do Espírito Santo, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

1 Comment

  • Samy Morgan
    09/09/2017

    Eu queria muito reler o livro My funny Valentine de Amylton de Almeida

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