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Dois graus a leste, três graus a oeste – Segunda parte: A história inconfessável, ou Garibaldi para adultos – V. Entretenimento — Estudo em ébano

Quando ela entrou no escritório a segunda impressão que tive dela foi que era uma mulher muito bonita, e nada mais que isso, e a terceira, que era uma mulher entre quarenta e quarenta e cinco anos, e nada menos que isso. Mas a primeira impressão que tive foi que ali estava, no meu escritório, uma mulher distinta.
Distinção a marcava como um halo. Era uma mulher distinta no modo de vestir, no modo de andar, no modo de sentar, de cruzar as pernas, de ajeitar a barra da saia sobre o joelho, no modo de olhar para você — no caso, para mim — e, eu bem sabia, antes mesmo dela abrir a boca, no modo de falar.

O penteado, que tinha um toque sutil de desleixo, o batom, que era de um rosa discreto, os brincos de pérola, que lhe timbravam os lóbulos das orelhas, a delgada aliança de casamento, que lhe cingia o dedo, tudo delatava a mulher distinta por natureza. A presença dela em meu escritório era nociva: realçava ainda mais a vulgaridade da sala, dos móveis, do proprietário da espelunca, no caso, eu mesmo.

— Senhor Reis? — disse ela, com voz que não direi distinta para não desgastar o adjetivo.

— Pois não? — respondi.

E esperei. Os dedos da mão direita correram todos até à outra mão para bulir com a aliança de casamento, que jazia quieta no seu canto. Quatro, cinco vezes, agindo todos em concerto, arrastaram a aliança até a ponta do dedo para depois arrastá-la de volta ao seu devido lugar. Longe da visitante imaginá-lo, mas eu, que sou rude e safado, logo vi naquele movimento de vaivém a representação digital e anelar, se não de uma trepada, certamente de uma relação sexual. Ela, distinta e inocente, nem se tocou; eu, rude e safado, não só me toquei mas comecei a enrubescer por ela; sua voz salvou-me antes que o rubor se tornasse embaraçoso:

— O senhor entenderá que não tenho o hábito de freqüentar lugares como este.

Acenei com a cabeça. Concordava plenamente: meu escritório combinava tão pouco com ela como um bordel. Ela se deu conta, porém, de que sua observação continha um elemento de repúdio ao meu ofício.

— Não quero ofendê-lo, Senhor Reis. Não tenho nada contra sua profissão, desde, é claro, que seja exercida com a honestidade com que, estou certa, o senhor a exerce. Acho que detetives particulares são…

Aí ela hesitou.

— Somos um mal necessário, — ajudei-a.

— Uma necessidade social, — corrigiu ela, equiparando a minha profissão ao meretrício. — Há situações em que só um detetive particular pode resolver um problema com lisura e propriedade. O que eu quis dizer foi que nunca esperei me encontrar um dia numa dessas situações.

— Entendo, — eu disse. — Espero sinceramente poder ajudá-la.

— Também espero, Senhor Reis, — ela disse.

Aí calou-se. Ficou alguns segundos olhando para minha cara como se esperasse que a minha ajuda incluísse adivinhar o motivo que a levara até o meu escritório, poupando-a assim de relatar, ela mesma, o seu drama pessoal. Calei-me também. Nesse ponto não havia como ajudá-la. Cabia a ela pôr tudo para fora.

— O senhor fuma, Senhor Reis? — ela disse.

Pelo sim, pelo não, menti:

— Parei recentemente, minha senhora.

Podia ter acrescentado, como costuma fazer certo amigo meu: Depois de amanhã faz dois dias. Mas já dera para sentir que, com essa mulher distinta, era essencial ater-me apenas ao essencial.

— Fez bem, — ela disse. — Mas importa-se se eu fumar?

— Absolutamente, — eu disse. Uma mulher como ela eu não me importaria nem que vomitasse sobre a minha mesa. E levantei-me, solícito, já com isqueiro na mão pronto para deitar fogo pelas ventas.

Ela abriu a bolsa e extraiu dali um maço de Charm. Retirou um cigarro, bateu com ele duas vezes sobre o tampo da mesa, meteu-o entre os lábios e ofereceu-me a boca — tudo isso com gestos esmerados. Acendi-lhe o cigarro. Ela deu uma longa tragada e soprou a fumaça para o lado, respeitando a minha condição de não mais fumante. A palavra tragada, porém, não condiz com a classe daquela mulher. É preciso inventar uma nova palavra só para descrever essa ação se executada por ela. Seja como for, o cigarro soltou-lhe a língua:

— Senhor Reis, receio que meu marido esteja cometendo adultério, — ela disse.

O motivo de sua visita era exatamente o que eu esperava que fosse. A frase, não. Há mulheres que chegam na minha sala e dizem, sem rodeios, que os maridos estão botando chifres nelas ou que estão pulando a cerca ou, até mesmo, que estão mijando fora do penico, sem perceber, neste caso, como a expressão denigre a imagem de sua própria genitália. Dessa senhora eu esperava ouvir: Meu marido está me traindo. Ou: Meu marido está sendo infiel. Mas da forma como expôs o problema, reunindo o verbo cometer e o substantivo adultério, ela ao mesmo tempo reduziu o problema a uma questão legal e mitigou a leviandade do marido, fazendo-a parecer tão grave como sentar-se à mesa do jantar em camisa de malha.

— O que a leva a recear isso, minha senhora?

— Sonhei com isso, — ela disse.

— Pois não, — eu disse.

— Três vezes, — ela disse. — Sonhei com isso três vezes.

Achei que não convinha repetir minha frase anterior.

— Senhor Reis, — ela disse. — Sinto que, no íntimo, o senhor deve estar julgando que eu sou uma tola. Espero sinceramente que eu seja mesmo. Mas não julgue nada antes de ouvir tudo que tenho a dizer.

— Estou aqui pra ouvi-la, — eu disse.

— Chamo-me Maristela Lelevel, — começou ela, — e sou casada há quinze anos com Manfredo Lelevel.

Arregalei o olho em sinal de respeito. A família Lelevel é uma das famílias mais imaculadas de Vitória, em especial no que tange à origem de sua fortuna, toda ela construída com base em vidas inteiras de trabalho honesto. Ela fingiu não notar o meu tique de respeito e prosseguiu:

— Não temos filhos. Não se trata de esterilidade de nenhuma das partes, mas de uma opção existencial. Trabalho como executiva de uma empresa de exportação de Vitória, e meu marido é um dos diretores da firma Bernardes & Lelevel. Talvez o senhor tenha ouvido falar.

— Sim, — eu disse. Era uma conhecida firma de auditoria contábil e ocupava uma mansão na Praia do Canto que antes pertencera a um milionário judeu. Só o aluguel da mansão devia andar por volta de quatro mil reais.

— Nossa vida particular, — continuou ela, — sempre foi tranqüila e reservada. Temos poucos amigos, que visitamos de vez em quando e recebemos em casa também de vez em quando. Uma vez por ano fazemos uma viagem ao exterior, mas a lugares fora da praxe turística, como a Finlândia, a Bulgária, as ilhas Faroé. Em casa gostamos de ver um filme juntos, e de ler juntos um mesmo livro.

Fez uma pausa para tirar do lábio um farelo de fumo.

— Uma vez, Senhor Reis, — ela disse, — Manfredo traduziu do alemão um poema que achava que descrevia com precisão o nosso casamento. Dizia assim: “A faca reparte o pão nosso / em partes iguais. / Onde teus lábios tocaram no copo / eu bebo o segundo gole. / Anda com meus sapatos! / Quando vem o inverno / teu casaco me aquece. / Choramos a mesma lágrima / e à noite fechamos a porta / para ficarmos sozinhos. E dormindo / meus sonhos se abraçam nos teus.”

Imagine-se uma mulher distinta recitando um poema traduzido do alemão por Manfredo Lelevel.

— Pelo quinto verso, — eu disse, — só pode ter sido escrito da perspectiva do homem. Não consigo visualizar uma mulher dizendo ao marido: Anda com meus sapatos! De quem é o poema, Dona Maristela?

— De um sujeito chamado Hans Bender, — ela disse.

— Hans Bender? — eu disse. Fingi um esforço de memória. — Acho que nunca li nada dele.

— O que eu quero que o senhor entenda, Senhor Reis, — ela disse, — é que meu marido e eu, como o casal do poema, sempre desfrutamos intensamente a companhia um do outro, até porque foi com essa finalidade que optamos por uma vida sem filhos. Em quinze anos de casamento, nunca me interessei por outro homem e, até o mês passado, podia jurar que meu marido nunca tinha se interessado por outra mulher.

— Conte-me os sonhos que teve, Dona Maristela, — pediu o detetive entrando na seara do psicanalista.

— O primeiro sonho foi há três semanas, — disse ela. — Sonhei que tinha ido ao Shopping Sahara fazer umas compras, e que depois me sentei na praça pra tomar um suco de maçã. Havia duas mulheres numa mesa próxima, tomando caldo de cana e comendo pastel. Uma delas era uma moça negra e tinha formas, como se diz, esculturais. Ouvi a outra chamá-la várias vezes pelo nome: Renée. O nome martelava em minha mente: Renée, Renée, Renée. De repente a outra virou-se pra ela e perguntou: Renée, há quanto tempo você é amante de Manfredo? A moça negra respondeu: Há mais de dez anos. Encontramo-nos toda quarta-feira, há mais de dez anos. E a amiga exclamou: Como é que você agüenta, Renée? Aquele diálogo me incomodou, Senhor Reis. Deixei o suco pela metade e tive pressa de sair da praça. Quando ia saindo, vi, chegando pelo outro lado, o meu marido. Fiquei aturdida e não pude mover-me. Vi então que ele entrou na praça e foi direto à mesa onde estava a moça negra com a amiga.

Dona Maristela deu, com perdão da má palavra, uma tragada no cigarro e largou a mão no ar, em lânguido abandono, palma para cima e cigarro entre os dedos.

— Aí eu acordei, — disse ela. — Confesso que achei estranho o sonho, confesso até que me perturbou um pouco, mas em momento algum a ponto de suspeitar de meu marido. Pensei até em contar-lhe o sonho, pra rirmos juntos, mas alguma coisa me impediu de fazê-lo. Os dias passaram, e o sonho perdeu importância. Uma semana depois, sonhei de novo com a moça negra. Com Renée. Sonhei que estava sozinha em casa e que o telefone começou a tocar. Tocava insistentemente, mas eu não queria atender, porque tinha certeza de que era Renée que estava ligando. Mas chegou um momento em que não suportei mais tanta insistência e atendi. Aí ouvi a voz do meu marido do outro lado da linha: É você, Renée? Fiquei surpresa e não consegui dizer palavra. Meu marido insistiu: Responde, Renée, meu amor. É você? É você? É você? Aí eu acordei.

Dona Maristela calou-se, arfante de aflição. Durante algum tempo não me encarou. Prendeu entre os dentes o flanco de um dedo e mordeu-o até quase sangrar. Quando retirou o dedo, vi nele, bem nítido, o sinete de seus incisivos.

— Isso foi na noite de terça pra quarta, — ela disse. — Na quarta à tarde telefonei pro escritório de meu marido. Ele não estava. Liguei pro celular. Estava fora da área de cobertura. Lembrei-me do que disse a moça negra no primeiro sonho: Toda quarta-feira, há mais de dez anos. Comecei a ficar angustiada.

— Conversou com seu marido quando ele chegou?

— Não tive coragem, — ela disse. — Ele parecia tão normal, tão carinhoso, parecia, na verdade, tão inocente, que não tive coragem. Só disse que tinha telefonado à tarde, e ele respondeu que tinha ido a uma reunião com um cliente. Isso é comum. Já me aconteceu muitas vezes ligar pro escritório e a secretária dizer exatamente isso. Só que, nessa tarde, ela não disse nada. Só disse que ele tinha saído.

— A senhora mencionou que tentou falar com ele no celular?

— Sim, — ela disse. — Ele limitou-se a dizer: Esses celulares! Nem sempre se pode confiar neles.

Dediquei trinta segundos a tomar algumas notas sobre o caso em minha caderneta personalizada. A caderneta, que tem a marca da Agência Falcão Negro na capa, costuma encantar as mulheres que me procuram para se queixar de maridos que botam chifres, ou pulam cercas, ou mijam fora de penicos. Que gracinha, dizem, e pegam para olhar. Dona Maristela não deu a mínima.

— E o terceiro sonho? — perguntei.

— Foi anteontem, — ela disse.

Dona Maristela deu uma última tragada no cigarro, soprou a fumaça para longe e espremeu o toco do cigarro no cinzeiro de vidro.

— Terça, — eu disse, e fiz uma anotação na caderneta.

— Sim, — disse ela. — Sonhei que estava no centro da cidade, andando pela calçada do Parque Moscoso. Não costumo ir ao centro, Senhor Reis, a não ser por motivos profissionais. Mas as minhas raízes estão ali. Nasci numa casa na Ladeira do Bispo. Freqüentei o Parque Moscoso quando criança. Estudei no Colégio Americano. Apesar daquela região estar um tanto aviltada hoje, no sonho eu me sentia à vontade andando por ali. Feliz, até. Só que, quando eu ia caminhando pela calçada da Rua 23, de repente vi meu marido vindo em minha direção. Paramos um diante do outro. Eu perguntei: Manfredo, que que você está fazendo aqui? Ele ficou meio sem graça e disse: Vim ver Renée. Eu perguntei: Quem é Renée? Ele respondeu: Renée? Ora, você sabe quem é Renée. Aí olhou pro relógio e disse: Estou em cima da hora. E lá se foi pela calçada. Acompanhei-o com os olhos. Vi que atravessou a rua e entrou num edifício quase na esquina da Rua Azevedo. Aí acordei.

Dona Maristela calou-se e notei que estava fazendo um esforço para conter um esboço de lágrima.

— Telefonei pra Manfredo ontem à tarde, — disse ela, — e me disseram que ele não estava no escritório. Só isso: não estava no escritório.

— A senhora ligou pro celular?

— Não, — ela disse. — Já tinha tomado a decisão de contratar um detetive.

Aí fiz a pergunta que, se médicos fazem, por que não detetives?

— Quem indicou meu nome pra senhora?

— O senhor resolveu um caso pra uma amiga minha. O caso de seqüestro de um poodle. Telefonei pra ela com um pretexto qualquer, ela me deu seu nome e o telefone de sua agência.

Triste caso, o seqüestro do poodle. Os filhos da amiga de Dona Maristela estavam por trás do seqüestro, para comprar droga com o dinheiro do resgate.

— Muito bem, — eu disse. — A senhora tem mais alguma coisa a acrescentar sobre o possível adultério de seu marido?

— Não, — ela disse.

— De modo que o que temos, — eu disse, — são os seus sonhos e as ausências de seu marido do escritório nas tardes de quarta-feira.

— Temos o nome do edifício onde ele se encontra com Renée, — ela disse.

— Como assim?

— Antes de vir ao seu escritório, — ela disse, — estive na Rua Azevedo e passei diante do edifício em que, no sonho, vi meu marido entrar. O edifício chama-se Prócyon.

— Prócyon? — estranhei.

— É o nome de uma estrela, — ela esclareceu.

— De que constelação?

— Canis Minor, — ela disse.

Tomei o lápis para anotar o nome na caderneta.

— P-r-o-c-y-o-n, — soletrou ela. — Acento no primeiro o.

Fechei a caderneta.

— Bom, Dona Maristela, — eu disse, — o que posso fazer em primeiro lugar é o seguinte: vou tentar obter alguma informação com os porteiros do edifício sobre a possível presença de seu marido ali. Dependendo do resultado dessa primeira investigação, saberei o que fazer na próxima quarta-feira à tarde.

— Está bem, — ela disse.

— Vou precisar de uma foto de seu marido, — eu disse.

— Eu sei, — ela disse.

Abriu a bolsa e retirou lá de dentro um envelope. Abri o envelope e dei de cara com a foto colorida, tamanho passaporte, de um homem de cinqüenta anos, de feições graves e inteligentes. A cabeça grande e rotunda traía sua ascendência polonesa, e a testa invadia, feito um mar, o alto do crânio, deixando no centro apenas um promontório de cabelos. Filho da puta, insultei-o. Como pode fazer uma sacanagem dessas com uma mulher como Dona Maristela?

— Quanto a seus honorários, — ela disse, — quer que eu pague o valor total ou só um adiantamento?

— Um adiantamento seria conveniente, — eu disse, — pra gratificar os porteiros.

Dona Maristela retirou da bolsa o talão de cheques e uma caneta tinteiro — uma galante Parker 51 —, preencheu com ela um cheque e passou às minhas mãos. Vi que sua assinatura era uma obra de arte. Depois vi que seu nome completo era Maristela Lala Lelevel. Depois vi que o valor do cheque era de mil reais.

— O valor não é suficiente? — perguntou ela.

— A senhora não sabe quanto eu cobro? — perguntei eu.

— Nem quero saber, — ela disse. — Quero é uma prova de que meu marido é culpado de adultério.

— Ou de que é inocente, — eu disse, dando ao safado o beneplácito de uma dúvida que eu não tinha mais. Como negar a esmagadora evidência dos sonhos de Dona Maristela?

— O senhor acredita nessa possibilidade? — disse ela, levantando-se.

— A inocência é uma caixa de surpresas, — disse eu, levantando-me.

— O número de meu celular está no cheque, — ela disse. — Por favor ligue assim que tiver alguma informação.

Apertamos as mãos, e ela saiu. Sentei-me e fiquei ali namorando a assinatura de Dona Maristela. Então Dona Maristela era da família Lala. Uma Laura Lala, nos anos cinqüenta, em Vitória, fora o pivô de um triângulo amoroso que terminara em assassinato. Eu tinha a história documentada num dos meus álbuns de recortes. Tia de Dona Maristela? Quem sabe? Mas não seria eu que faria tal pergunta a ela.

* * *

O Edifício Prócyon fica, como no sonho de Dona Maristela, quase na esquina da Rua Azevedo com a Rua 23. A vinte e quatro passos dali, cruzando a Rua 23, fica a entrada sul do Parque Moscoso. A Rua Azevedo é a rua mais arborizada da região. Pode-se até dizer que é um distrito da reserva florestal maior que é o parque. Suas árvores, que são mais altas que os seus sobrados, esticam os galhos para a outra margem da rua e dão-se as mãos, cobrindo tudo que está embaixo com uma densa sombra de folhas.

A seu lado, na dobra mesma da esquina propriamente dita, ergue-se outro edifício, o Canopus, nome que se duvidar é nome de outra estrela. Há uma loja no térreo do Canopus: Sônia Noivas. Em suas vitrines se vêem vários manequins de noivas e noivos, empertigados a caráter, entre eles um noivo louro com a cara azeda de quem vai casar e não vai gostar. Aliás, em toda a região do parque, incluindo ramificações como as Avenidas Cleto e República e as Ruas Anchieta e Osório, pululam lojas de noivas — mas é na Rua Azevedo que se congrega o maior contingente delas, a ponto de bem poder chamar-se Rua das Noivas. Além da Sônia Noivas, no térreo do Canopus, outras cinco lojas se espalham em diferentes pontos da rua: Nazaré Noivas, Telma Noivas, Sandra Noivas, Aninha Noivas, Palácio das Noivas, e Noivas Juliette. Os nomes, suponho, servem para homenagear noivas célebres da história e da literatura. Embora tenha havido nesta mesma rua, lembro-me, uma loja chamada Carlão Noivas. Que fechou, ou então está ainda aí, só que com o nome Carlão travestido em Telma ou Juliette.

O fenômeno, seja como for, é digno de nota. Talvez um dia quem sabe algum aluno de Ciências Sociais estude o assunto numa alentada dissertação de mestrado. Gostaria muito de viver para lê-la.

O Edifício Prócyon é um edifício magro, calcado sobre magros pilotis. À direita de quem olha para ele está a entrada que conduz à garagem. No centro há um pátio com um único banco e alguns vasos de plantas, num dos quais reside um tinhorão. À esquerda, por um relance de degraus, chega-se a um altar-mor onde, a uma pequena mesa, se assenta o porteiro. Subi até a sua canônica presença. O porteiro é um nordestino de seus sessenta anos, de baixa estatura, olhar levemente desvairado e cabelo liso varrido para trás e retido ali a poder de goma arábica. Trocamos boas tardes.

— Seu nome é? — perguntei.

— Ataliba José de Alencar, — disse ele, e estendeu uma mão viscosa e frouxa. — Ao vosso dispor.

— Seu Ataliba, — perguntei, — o senhor trabalha aqui há muito tempo?

— Meu amigo, — disse ele, com a altivez de um catedrático, — eu fui vigia da obra. Vi este prédio nascer e crescer. Sinto-me como se fosse o próprio pai do Procyon.

Pronuncia o nome do filho à francesa, oxitonamente.

— Isso tem muito tempo, suponho, — eu disse.

— Vai fazer quarenta anos, — ele disse.

— Sendo assim, — eu disse, — o senhor estaria habilitado, mais do que ninguém, a escrever a biografia do prédio.

— Como é que o senhor sabe que eu sou escritor? — perguntou ele, abismado.

— Está na cara, — menti. — E no nome. Por acaso o senhor é descendente de José de Alencar?

— Sou não, — ele disse. — Meus Alencares são de boa cepa paraibana, os dele eram só do Ceará.

Pois para mim, pensei, é tudo a mesma merda.

— De qualquer modo, — eu disse, — é um sobrenome digno dos melhores escritores.

— O senhor tem razão, — ele disse. — Apesar de que não posso dizer que li José de Alencar. Também não careci. Sou um escritor autodidata. Poeta, melhor dizendo. Tenho em casa uma arca só pra guardar meus trabalhos poéticos. Minha mulher reclama da papelada, mas que que ela entende de literatura? Ela não passa de uma analfabeta, que mal sabe assinar o nome.

— Quer dizer que o seu talento não é reconhecido em casa? — eu disse.

Uma empregada do condomínio apareceu armada de vassoura para varrer as folhas de fícus do saguão do edifício.

— Nem em casa nem fora de casa, — ele disse. — Já perdi a conta dos escritores e dos professores que prestigiei com minhas poesias. Nenhum deles me ajudou a publicar nem um verso só. Inveja, eu acho. Ou falta de sensibilidade. E se dizem críticos literários. Pfff! Entendem de literatura tanto quanto minha mulher.

— E qual seria o seu estilo? — perguntei.

— Meu estilo é o clássico, — ele disse. — Não tolero essas modernices de poesia sem rima. Poesia tem de ter rima, porque senão não é poesia. Minhas poesias têm rima. Deixe-me mostrar uma delas, pro senhor ter uma idéia.

Seu Ataliba abriu a gaveta da mesinha e retirou dali algumas folhas de papel almaço cobertas de garatujas feitas a caneta esferográfica. Explicou-me:

— Trata-se de um trabalho poético de assunto elevado, honorário, brasileiro, dedicado ao Dr. Silas Martins, que foi síndico deste edifício. Permite que eu leia?

— Por favor, — eu disse.

Seu Ataliba levantou-se, limpou a garganta e danou a ler o seguinte:

Receba, Dr. Silas Martins,
A minha humilde homenagem.
Na forma deste poema
Que fiz por camaradagem.
Não reparar nas falhas
Mas sim na pura mensagem.

Me lembro quando Dr. Silas
Foi síndico legendário.
Como meu superior
De modo extraordinário,
Sabia bem dar valor
A qualquer funcionário.

Foram doze estrofes disso, que ele leu como um vereador discursando de um palanque. Quando terminou, bati palmas delicadamente. Observei que a empregada do condomínio escondia o riso na ponta do cabo da vassoura.

— Excelente, seu Ataliba. Muito bom mesmo.

— Tenho outra aqui, melhor ainda, — ele disse.

A empregada do condomínio varreu-se apressadamente do saguão do edifício e desapareceu na direção da garagem. Eu já ia inventar uma desculpa para poupar meus ouvidos de nova prosopopéia, mas seu Ataliba disse uma frase mágica:

— Fiz esta poesia em homenagem ao Dr. Manfredo Lelevel. É um dos inquilinos do Procyon.

— Quero ouvir, — eu disse.

— A verdade me obriga a dizer, — ele disse, — que o Dr. Manfredo não recebeu a homenagem como um cavalheiro, mas a poesia está acima de mesquinharias pessoais.

Aí limpou novamente a garganta e deitou o verbo:

Em nome de um grande Deus
Que em segredo ele está
Planejando um Novo Mundo
Para o seu povo habitar,
Fiz esta poesia para um nobre
Amigo particular.

Por Dr. Manfredo Lelevel
É o amigo chamado;
Respeita os seres humanos
Sim, desde alguém humilhado
Até o homem de fama
Politicamente exaltado.

Compreendi que Dr. Manfredo
É muito sentimental
E sabe que o presente
Tem aparência legal
De que tudo é eterno.
No fim: ilusão real.

Amigo Dr. Manfredo:
Eis a prova especial
Da família Lelevel,
Na economia estadual
Do Espírito Santo, que brilha
Até o nível federal.

Queira aceitar meu trabalho.
É uma prova também
Que, em minha vida, não
Esquecerei de alguém
Que sempre me deu valor
Em tudo que me convém.

Ao Dr. Manfredo Lelevel
E sua família honrada,
Desejo felicidades!
Em toda hora sagrada.
Só quero vê-lo em riqueza
Sendo por Deus alcançada.

Pras altas personalidades
Eu sempre vivo escrevendo.
Se um dia conseguir
Algo que quase estou vendo,
Me lembrarei do Dr. Manfredo
Que bom amigo vem sendo.

— Este é, realmente, ainda melhor que o outro, — concordei.

— Eu disse e repito, por ser de verdade, — seu Ataliba disse, — que os elogios poéticos não conferem muito bem com a pessoa do homenageado, mas na época eu não sabia disso. Enviei a poesia pro Dr. Manfredo, lá pra firma dele, junto com um requerimento onde, de justiça, fazia um pequeno pedido que, mas porém, ele me negou sem qualquer justificativa.

— O que foi que o senhor requereu, seu Ataliba?

— Requeri, — ele disse, — que me providenciasse um veículo com motorista pra me trazer do trabalho e levar pra casa todos os dias. Aleguei que moro longe, lá em Itanhenga, e que minha dignidade de poeta não combina com os coletivos superlotados do Transcol. Não é razão suficiente pra me atender o pedido? Veja bem, meu amigo, não pedi o veículo pra passear nos fins-de-semana, como fazem os políticos, não, senhor. Só pra me conduzir de casa pro trabalho e do trabalho pra casa. E o senhor não gostou da poesia?

— Muito, — respondi.

— Pois então, — ele disse. — A poesia dá bem uma idéia dos meus méritos poéticos sertanejos. Se ele fosse um homem sensível, teria considerado muito justo poupar-me de me misturar a essa ralé que usa e abusa dos coletivos do Transcol. Mas quem disse? Nem quis saber. Disse que o que eu pedia era um absurdo e pronto.

— Essas pessoas não têm consideração com os poetas, — eu disse.

— Pois é, — ele disse. — O homem é podre de rico. Já viu a firma que ele dirige, ali na Praia do Canto? Um palácio. E a casa onde ele mora, na ilha do Boi? Uma mansão.

— Mas ele não mora aqui? — perguntei, sonso.

— Não, — ele disse. — Ele aluga um apartamento no prédio, o 602, mas só faz uma visita uma vez por semana. Sobe, fica umas duas horas, depois desce e vai embora.

— Que estranho, — eu disse. — Tem muito tempo que ele faz isso?

— Uns dez anos, — seu Ataliba disse. — Toda quarta-feira. Anteontem mesmo ele esteve aqui.

— E o senhor conhece a moça que freqüenta o apartamento? — resolvi arriscar.

— Que moça? — ele estranhou.

— Uma moça negra, bonita, escultural, — eu disse.

— Não sei de moça nenhuma, — ele disse. — O senhor quer ouvir outro poema?

— Seu Ataliba, — eu disse. — O senhor é um poeta, e os poetas são pessoas especiais. Têm elevada consciência do que é certo e do que é errado. Por isso não tenho medo de revelar ao senhor, em estrita confidência, é claro, a razão da minha vinda ao seu edifício.

Seu Ataliba sentou-se para ouvir o que eu tinha a dizer.

— O Dr. Manfredo, — eu disse, — é um homem sem nenhuma sensibilidade, só quer saber de dinheiro e poder. Mas a esposa é uma mulher refinada. Gosta de poesia, e até escreve uns versos. E talvez o senhor não acredite, seu Ataliba, mas é tal o desprezo do Dr. Manfredo pelo gosto da esposa por poesia que ele diz que poesia é lixo, é desperdício de tempo, é coisa de veado.

— Oh! — disse seu Ataliba, horrorizado. — Será que ele acha que eu sou veado? Eu mato o filho da puta!

Percebi que me excedera. Tentei corrigir o erro tático:

— O senhor não, é claro. Toda regra tem exceção, e até o Dr. Manfredo sabe que paraibano veado nasce morto.

— Isso mesmo, — ele concordou. — E poesia de veado é bem diferente da minha. Minha poesia é poesia de cabra macho.

— Pois então, — eu disse. — Mas aqui vim em nome dessa senhora refinada que é a infeliz esposa do Dr. Manfredo. Ela tem razões pra crer que o marido esteja usando o apartamento 602 deste edifício pra se encontrar com a amante, uma moça negra chamada Renée, que o senhor afirma, porém, que nunca viu. E olha que essa moça é muito bonita. Muito bonita e, cá entre nós, muito gostosa. Dificilmente o senhor deixaria de notá-la.

— Alto lá, — ele disse. — Em primeiro lugar, não tenho nenhuma predileção por negras, que só gostam de sambar e de rebolar. Em segundo lugar, sou absolutamente fiel à poesia. Não olho duas vezes pra uma mulher, meu amigo. Por isso, se eu estou sentado aqui nesta mesa fazendo uma poesia e chega uma pessoa e pede licença pra tocar o interfone de um apartamento, e uma voz lá de cima diz que é pra subir, a pessoa sobe e eu volto à minha poesia, e um minuto depois já nem lembro mais se quem subiu era homem, mulher ou criança, nem se era negro, branco, verde ou amarelo. Se o Dr. Manfredo, por exemplo, não quer que eu repare nessa moça, basta chegar antes dela ao apartamento e mandar que suba quando ela tocar o interfone.

— O senhor é um verdadeiro intelectual, — eu disse. — Resolveu o enigma com brilhante inteligência. Não sei o que faria sem sua ajuda. Só não sei se me poderá ajudar em outra coisa, mas lembre-se que ajudando a mim está, na verdade, ajudando à esposa do Dr. Manfredo, a quem represento aqui nesta missão.

— Que outra coisa? — ele quis saber.

— Preciso entrar no apartamento 602, — eu disse.

Seu Ataliba deitou um olhar adunco sobre mim e por um momento pensei que fosse me escorraçar dos seus domínios. Em vez disso, abriu de novo a gaveta da mesinha. Temi que tirasse dali outro poema. Não: tirou dali uma chave, que depôs sobre a mesa, e aí sorriu para mim um sorriso de triunfo.

— Sirva-se, — ele disse.

— É a chave do 602? — perguntei.

— Claro que é, — ele respondeu. — De quinze em quinze dias minha mulher faz a faxina do apartamento.

— Seu Ataliba, — eu disse, — o senhor é um homem de expediente e de caráter. A esposa do Dr. Manfredo ficará eternamente grata ao senhor.

— Trata-se de uma alma gêmea, — ele disse, — e bem posso imaginar o que ela sofre nas mãos de um homem como o Dr. Manfredo.

— Então posso subir? — perguntei.

— Deve de subir, — ele disse.

Aí ergueu-se da cadeira e me escoltou até o elevador. Abriu a porta para mim e, metendo dentro metade do corpo, apertou o botão do sexto andar. Mantive a porta entreaberta para dizer-lhe:

— Seu Ataliba, hoje é sexta-feira, por isso não tem chance do Dr. Manfredo aparecer. Mas sejamos previdentes. Se ele aparecer, ou alguém por ele, o senhor faça o favor de me interfonar imediatamente pra não me pegarem de calças curtas.

Ele acenou com a cabeça. Percebi pelo brilho de seus olhinhos que estava saboreando todo o fel de sua vingança contra o Dr. Manfredo. Bem feito. Quem manda o safado do auditor não entender de poesia sertaneja.

* * *

O piso do corredor era revestido de cerâmica vermelha. Havia apenas dois apartamentos por andar. O 602 ficava à esquerda; era, portanto, o apartamento de frente e dava para a Rua Azevedo.

Enfiei a chave na fechadura e girei duas vezes. A porta se abriu com um estalo agudo e seco. Entrei. Pelo sim, pelo não, retirei a chave e guardei-a no bolso da capa. Dois metros de corredor conduziam a uma sala extensa, tanto mais extensa porque não havia ali móvel nenhum: nem uma cadeira para remédio. O piso era de tacos de madeira; alguns deles jaziam frouxos em seu leito. Cheguei até à janela, afastei as cortinas e olhei para fora. Na esquina, um sobrado antigo, dos anos trinta ou quarenta, se tanto, pintado de cor de rosa, renegara todo seu passado residencial para alojar as instalações comerciais de Aninha Noivas. Olhando para baixo, enchi os olhos com a folhagem verdoenga das árvores da rua. Olhando para a esquerda, enchi os olhos com a luxuriante paisagem vegetal do parque. No fundo, em frente, por entre os edifícios da Rua 23 e por cima dos armazéns do cais do porto, pude discernir um retalho de mar, composto por água da baía de Vitória.

Confesso que estava decepcionado com o Dr. Manfredo. Cadê os confortáveis sofás e as opulentas almofadas? Cadê os felpudos tapetes persas? Cadê a porra da longa mesa de refeições, mais a sua ninhada de cadeiras? Cadê a porra do bar com toda espécie de bebida e apetrechos para preparar um drinque? Cadê, sim, cadê, nas paredes, as telas de artistas pelo menos medianamente celebrados, capazes de angariar no mínimo dois mil reais por tela no mercado de arte de Vitória? Cadê as porras da televisão e do vídeo, onde assistir a umas fitas pornô para esquentar as turbinas da libido? Cadê, por que não, o cd-player e os cds de música erudita — Vivaldi —, de jazz — Miles Davis —, de rock — Rick Wakeman —, de mpb — Elis Regina? Aquela sala me parecia mais estéril do que uma tenda de beduíno, mas confiei, quem sabe, que encontraria tudo isso no aconchego de um dos cômodos mais de dentro.

Voltei sobre os meus passos e abri a porta à direita. Vi-me num corredor estreito, com três portas à esquerda e duas à direita, todas fechadas. Abri a primeira à esquerda. Era a cozinha. A bancada da pia estava lá, e o interfone, mas não havia fogão, nem geladeira, nem tampouco um filtro de água. Passei a uma diminuta área de serviço. À direita ficavam um tanque e um banheiro. À esquerda, o quarto de empregada, um cubículo totalmente vazio. Embaixo do tanque é que vi sinais de vida e habitação: alguns frascos de detergente e pacotes de sabão em pó, que a digna esposa de seu Ataliba devia usar em suas faxinas quinzenais.

Voltei ao corredor e abri a segunda porta à esquerda. Era o banheiro, todo ele preservado do jeito que fora construído na década de sessenta: lavatório, banheira, vaso, bidê, e um chuveiro protegido por uma cortina de plástico num tom verde aguado com motivos de praia de crianças: baldinhos, pazinhas, estrelas do mar, conchas e peixinhos. Abri o armário sobre o lavatório. Abri e sorri meu sorriso detetivesco para situações de descobertas especiais. Pois havia ali, além de algumas côdeas inocentes de sabonete Dove, uma nada inocente bisnaga de K-Y*: gel lubrificante da Johnson & Johnson: para lubrificação íntima: solúvel em água, transparente, não gorduroso: peso líq. 50g. A validade expirava em abril de 2003, mas a bisnaga já estava pedindo outra. Olhei meu rosto no espelho e gostei do que vi: estava iluminado não só pelo sorriso mas pelo sentimento de que o caso começava a se encaminhar para o melhor dos desfechos: a culpa conjugal. Aquilo era insofismável evidência contra o canalha. E evidência que, cá entre nós, contava uma história de insatisfação doméstica. O Dr. Manfredo, vedado o acesso ao distinto ânus de Dona Maristela, recorria ao cu da amante para dar vazão à sua tara de auditor contábil.

Deixei o banheiro e abri a primeira porta à direita. Era um dormitório, e estava vazio, mas tinha um armário embutido que cobria a parede de fora a fora. O armário se dividia em dois compartimentos estanques, cada um deles com duas portas. Abri ambos os compartimentos e todas as gavetas em cada compartimento, mas não vi sinal de coisa alguma, suspeita ou insuspeita. Coisa alguma. Alto como sou, não tive dificuldade em abrir os maleiros, que não estavam trancados a chave. Bastou depois um ligeiro salto no ar para certificar-me de que tampouco ali havia coisa alguma.

A porta seguinte, à direita, deu acesso a outro dormitório. Também estava vazio, e igualmente vazio o armário embutido, de que vasculhei conscientemente todos os espaços e gavetas. Senti uma ponta de desaponto. Esvaiu-se parte da euforia propiciada pela feliz descoberta da bisnaga de KY*. Eu queria mais itens de evidência, e itens de evidência, se os havia, minha última chance de encontrá-los estava no cômodo de fundos.

Se é assim, vamos lá. Saí do segundo dormitório e, com pé direito, penetrei no terceiro e último, aquele único dos três que ficava do lado esquerdo do corredor.

* * *

Cadê os confortáveis sofás e as opulentas almofadas? Cadê os felpudos tapetes persas? Cadê a porra da longa mesa de refeições, mais a sua ninhada de cadeiras? Cadê a porra do bar com toda espécie de bebida e apetrechos para preparar um drinque? Cadê, sim, cadê, nas paredes, as telas de artistas pelo menos medianamente celebrados, capazes de angariar no mínimo dois mil reais por tela no mercado de arte de Vitória? Cadê as porras da televisão e do vídeo, onde assistir a umas fitas pornô para esquentar as turbinas da libido? Cadê, por que não, o cd-player e os cds de música erudita — Vivaldi —, de jazz — Miles Davis —, de rock — Rick Wakeman —, de mpb — Elis Regina?

Sim, cadê? Pois a alcova estava tão vazia quanto os demais cômodos do maldito apartamento, vazia, vazia, vazia, exceto — grandes merdas — por uma velha cadeira de imbuia no centro do quarto e uma estante para partituras musicais em frente a ela. Meu Deus do céu, exclamei. Será que o filho da mãe vem a este apartamento só para praticar flauta ou violino?

Senti vontade de dar um bico na cadeira e uma rasteira na estante e atirá-las longe. Mas logo me pus a mim mesmo em brios. O que é isso, Teodomiro? O que é isso, Senhor Reis? O que é isso, Falcão velho de guerra? Você está incorrendo no mesmo erro que fez perder vários de seus colegas. Você entrou neste apartamento com uma idéia preconcebida e se recusa a aceitar o fato de que os fatos não se ajustam a essa idéia; insiste em tentar meter a peça cilíndrica no orifício quadrado. Não dá, rapaz, não dá.

Avancei até a janela. Espiando por entre as cortinas descortinei os apartamentos dos fundos do edifício e, mais à direita, o velho casarão histórico que na pia batismal recebeu o nome de Vila Oscarina, hoje relegado a abrigar uma clínica de repouso e tratamento de doentes mentais.

Ali, de pé, prossegui de mim mesmo para mim mesmo meu raciocínio. Você estava certo de achar aqui um apartamento montado para sacanagem clandestina, mas encontra o quê? Um ambiente mais nu e limpo e estéril que o de um mosteiro. Mas em que que isso, pensa bem, inocenta necessariamente o Dr. Manfredo? Do avaro que se negou a ajudar a locomoção do pobre Ataliba não é de esperar avareza também quanto ao ambiente semanal em que encontra a amante? Além do mais, embora a estante de partituras não se enquadre em nenhuma teoria pertinente, pode-se muito bem comer um cu numa cadeira de imbuia. Sem esquecer a banheira, sem esquecer o chuveiro. Provavelmente era ali na cadeira que se iniciava e lá no banheiro que se desdobrava a putaria do Dr. Manfredo com a vagabunda da Renée. E, como evidência, não bastava o tubo de K-Y*? Para que suntuosos leitos de dossel cobertos com colchas de tafetá? O tubo de K-Y* continha, já e ainda, gel suficiente para lubrificar o divórcio de Dona Maristela.

Nisso, vi movimento humano na área de serviço do apartamento do quinto andar. Apareceu ali uma negra alta, de blusa de malha branca e sucinto short vermelho, que, de costas para a janela indiscreta do 602, pôs-se a fazer algum afazer diante do tanque. Era uma mulher gostosa, com uma pletora de peitos, pródiga bunda e coxas soberbas. Talvez não chegasse aos pés da tal Renée, que, vista em sonho por Dona Maristela, merecera o reparo de que tinha formas, como se diz, esculturais. Talvez não atraísse a atenção do Dr. Manfredo, mas não seria um pobre e fodido detetive particular como eu que a desprezaria. Aí, automaticamente, segui um dos meus métodos dedutivos elementares e inverti a conjetura, para ver a cara de sua antítese: ou será que atrairia, sim, a atenção do Dr. Manfredo? A hipótese pareceu-me à altura da arguta equipe da Agência Falcão Negro. Quem sabe não havia, afinal, um caso entre a gostosa do 501 e o Dr. Manfredo Lelevel? Isso explicaria à perfeição por que seu Ataliba nunca vira entrar no prédio nenhuma negra misteriosa nas quartas-feiras à tarde: ela já estava dentro do prédio: morava lá: bastava-lhe, na calada da tarde, escapulir do quinto para o sexto andar e cair nos braços sôfregos do seu amante dublê de auditor contábil.

Fiquei ali, durante algum tempo, devassando a alma da devassa o mais fundo que pude, convencendo-me cada vez mais que uma — ou a — possível solução achava-se ali bem diante dos meus olhos. Aí a suspeita deixou o tanque e começou a estender uma blusa amarela no varal da área. Lembrei-me de um verso que lera em algum velho poema: Icem bandeira amarela que a bordo há peste. Embora, para ser sincero, essa peste que o Dr. Manfredo contraíra bem que eu gostaria de contrair também.

Despeguei-me do meu posto de voyeur antes que fosse visto pela mais que provável Renée. Já podia apresentar à minha cliente uma teoria sólida. Agora era deixar o tempo correr até quarta-feira para então preparar o palco para o flagra triunfal. Já estava até propenso a ir embora quando me dei conta de que não fizera a vistoria do armário. Não deixar pedra sem virar nem armário sem abrir é uma das normas investigativas de que nunca abro mão.

Um dos dois compartimentos do armário mostrou-se vazio em todas as suas gavetas e espaços, exceto por uma pilha de toalhas de banho de variadas cores, coisa que considerei mera prova circunstancial de que os amantes tomavam banho após o enlace, por questões de higiene e, no caso do Dr. Manfredo, de precaução: já pensou chegar em casa na ilha do Boi cheirando a Renée? O outro continha um fator diferencial que recebi com boas vindas: uma escrivaninha embutida. Tive um frisson de esperança. A porta da escrivaninha abria para fora e dobradiças mantinham-na suspensa no ar. Diante de mim revelou-se uma série de escaninhos e gavetinhas. Meus olhos e minhas mãos atiraram-se a eles com avidez. Em vão. Os escaninhos estavam vazios, e nas gavetinhas encontrei dois clipes de papel.

— Seu filho da puta! — Não me contive. Minha ira não tinha nada a ver com o caso em si: afinal, a descoberta da bisnaga de K-Y* e a perspectiva do flagra na próxima quarta-feira já prenunciavam o triunfo das forças do bem. Mas custava ao Dr. Manfredo deixar ali uma carta de amor escrita e assinada por Renée? Ou então, se isso era pedir demais, custava deixar ali alguns objetos pessoais, algumas folhas de papel com anotações, alguns recibos de restaurante, alguns extratos de banco, alguma mensagem cifrada, coisas assim, que fazem a felicidade de um detetive particular? Custava, seu filho da puta? Mesmo que não levassem a lugar nenhum, seriam alimento para as minhas faculdades de detecção, e me dariam o conforto de merecer os honorários que Dona Maristela estava me pagando.

Aí, para finalizar o trabalho e ir embora daquele antro de frustração, abri as gavetas sob a escrivaninha. A primeira estava, lógico, vazia. A segunda, não.

Havia ali um exemplar da revista Playboy.

Havia ali um exemplar da revista Playboy.

Havia ali um exemplar da revista Playboy.

Tripliquei a frase para dar uma idéia do meu desmedido assombro. Pois assombrado fiquei, primeiro porque achara mais um objeto no árido deserto daquele apartamento, e segundo porque era um objeto sobremodo pertinente ao caso, devido ao seu alto teor de erotismo. Mas como se encaixaria na tese perfeita do affair entre o marido infiel e a Renée do 501? Talvez nem sempre Renée pudesse subir na hora marcada para o encontro, e o amante usasse a revista como consolo na espera e como prelúdio do prazer. De qualquer forma, achei que devia dar uma revista na revista. Talvez, quem sabe, contivesse algumas linhas manuscritas que pudessem reforçar nosso caso contra Manfredo Lelevel. Assim, não perdi tempo: estendi a mão, catei o objeto e fui sentar-me na cadeira para examinar-lhe o conteúdo.

Primeira coisa que fiz foi segurar o objeto pelo dorso e sacudi-lo, na esperança de que caísse dentre as páginas algum papel incriminador. Não caiu porra nenhuma. Pus-me, então, a revistar a revista.

Era um exemplar — por sinal bastante manuseado — da edição brasileira de outubro de 1990. Naquela época, ao que tudo indicava, o nu frontal não chegara ainda às capas das revistas. Uma loura que achei insossa e que portanto era insossa ocupava todo o centro da capa, vestida num boustier de miçangas azuis e numa canga, também azul, que a um leigo como eu pareceu feita de celofane. Letras vermelhas e pretas anunciavam-na, alternadamente, como Andréia Setter, a nova sensação da TV Manchete, nunca jamais se viu uma sereia assim. De ambos os lados da moça insossa mais uma multidão de letras pretas e vermelhas disputavam o espaço para anunciar o diversificado conteúdo da revista. Na altura do cotovelo direito da loura, num box que não media mais que 3×4, havia a foto do rosto de uma negra. Sobre o box estava escrito: Playmate do ano. Renée Cholmondeley. E embaixo: A mulata que enlouqueceu os americanos.

Não quis deter-me em mais nada. Com asas nos dedos, folheei as páginas da revista até dar com a matéria que vinha precisamente ao caso: “Estudo em ébano”. Eram seis páginas de fotos. Na primeira a tal Renée punha à mostra, ambos nus, rosto e busto, e, não só nua mas nua em pêlo, uma basta cabeleira negra e encrespada. Na segunda, ela aparecia sentada ao contrário — à la Christine Keeler — numa cadeira, com os longos braços apoiados no encosto, um dos peitos pendendo maciço de perfil, e a bunda intrépida ultrapassando os limites do assento. Na terceira usava uma outra cadeira como montaria. Fora fotografada de frente, com um longo véu vermelho transcorrendo-lhe da coxa direita ao ombro esquerdo para dali cair-lhe sobre as costas. A posição expunha-lhe, no pólo sul do torso, a fiação hirsuta do púbis. Dividiam irmãmente o espaço da quarta página duas fotos menores. Uma delas mostrava novamente rosto e busto de Renée, de perfil, e o cabelo drapejando como uma bandeira pirata colhida pelo sopro agressivo do próprio deus Éolo. Na outra Renée meio que se erguia do leito, de costas, sobre as palafitas de braços e pernas, atirando a cabeça para trás, o que fazia jorrar-lhe sobre e além dos ombros o cachoeiro crepuscular dos cabelos. Nas duas últimas páginas, Renée voltava ao seu envolvimento amoroso com a primeira cadeira, debruçando-se sobre o encosto e fincando no assento um dos joelhos, o que permitia uma visão generosa da bunda e uma entrevisão dos pêlos que lhe forravam o eixo de Vênus. Nessa foto, virando o rosto para mim e lançando-me um olhar de sedução, parecia sussurrar, entre os lábios rubros, uma única palavra: Vem.

Estava eu imerso na platônica contemplação da amante alheia quando o interfone tocou. Tomei um susto tão grande que a revista me caiu das mãos. Corri à cozinha para atender. A voz de seu Ataliba percutiu sertaneja em meu ouvido, abafada e afobada:

— Sai daí, depressa! Ele está subindo!

Deus do céu! Que teria acontecido para que o filho da puta do Manfredo Lelevel quebrasse uma rotina de dez anos e invadisse o seu apartamento numa tarde de sexta-feira? Mas não havia tempo para especulação. Saí da cozinha feito um petardo, corri à alcova, guardei a revista onde a tinha descoberto, fechei gaveta e portas do armário e ouvi o estalo agudo e seco da porta da sala que se abria. Acuado, enfiei-me no outro compartimento do armário, encolhendo-me como pude, em posição fetal, no fundo do espaço destinado à guarda de calças compridas. Ficou aberto um dedo de fresta, suficiente para ver, a meias, a cadeira em repouso, parda, no centro do quarto.

O Dr. Manfredo entrou sem demonstrar suspeita de nada. Vi-o passar diante do armário num terno cinza impecável, ouvi-o abrir as portas do outro compartimento, e puxar a gaveta onde o esperava, toda desnuda em suas formas esculturais, sua musa negra, Renée Cholmondeley. Com a revista em posse da mão, vi-o sentar-se à cadeira de imbuia. Não deu à loura insossa da capa a menor bola. Fiel, foi direto às páginas mais à frente, domicílio do seu objeto de desejo. Folheou essas páginas, detendo-se demoradamente em cada uma delas. Deu alguns suspiros. Murmurou o nome dela: Renée, Renée, Renée. Aspirou, num sibilo excitado, alguns fios de ar entre os dentes. Arfou e ofegou de êxtase.

De súbito ergueu-se, pousou a revista sobre a cadeira e desapareceu. Ouvi alguns ruídos no banheiro. Daí a pouco ele voltou. Vinha pelado de corpo inteiro e trazia na mão a bisnaga de K-Y*. Vi-o tirar a tampa da bisnaga e untar com gel ambas as mãos. Aí acomodou a revista, como uma partitura, na estante, e começou a tocar o seu instrumento. Não quis invadir tanta intimidade. Abaixei a cabeça para não ver mais nada. Não tive, porém, como não ouvir, do começo ao fim, o concerto solitário em lá maior do Dr. Manfredo Lelevel.

* * *

O Dr. Manfredo levou mais de uma hora naquilo. Quando acabou de tocar, deixou-se estar ainda algum tempo, lânguido, sentado na cadeira. Depois, por fim, ergueu-se, abriu o armário, guardou a revista e se retirou para o banheiro. Ouvi o som de água corrente correndo. Esperei chinês. Foi um banho demorado. Finalmente o Dr. Manfredo se deu por lavado a contento e fechou a torneira. Escoou-se mais algum tempo, que deduzi o Dr. Manfredo levou para vestir o seu disfarce de auditor contábil e marido de Maristela Lala. Aí saiu pelo corredor assoviando desafinado. Ouvi o som da porta fechando.

Exumei-me a fórceps do meu exíguo jazigo. Sentia o corpo todo dolorido: ossos e músculos. Fiz alguns alongamentos, estalei articulações, e pelo estado da nuca previ que só dormiria aquela noite à base de analgésico. Mas o caso estava elucidado. Era só decidir o que dizer a Dona Maristela Lelevel, ou melhor, como.

Saí do apartamento levando comigo o exemplar da revista Playboy e a bisnaga de gel lubrificante K-Y*. Já não podia predizer que o Dr. Manfredo não retornaria antes da quarta-feira, pois ele havia quebrado o padrão estabelecido por ele próprio. Mas eu queria mais é que ele se fodesse, se por acaso voltasse e não encontrasse mais nem a amante à sua espera nem a bisnaga a seu dispor. O calhorda merecia todo tipo de sofrimento físico e moral. O que ele fazia ali era manter uma pobre coitada em cárcere privado para fins da mais sórdida baixaria.

Lá embaixo seu Ataliba estava inquieto. Tranqüilizei-o:

— Não se preocupe, ele não sentiu nem o cheiro de minha presença no apartamento.

— Graças a Deus, graças a Deus, — ele exclamou. — Mas me diga uma coisa: a negra safada estava lá com ele?

— Estava, sim, — eu disse.

— Chegou antes dele ou depois?

— Já estava lá esperando por ele, — eu disse.

— E ela viu o senhor?

— Pode-se dizer que sim, — eu disse, evocando o rabo de olhar de Renée sobre mim.

— Então estou ferrado, — ele disse. — Vou perder o meu emprego.

— Não vai não, — eu disse. — Ela está do nosso lado. Ela também é uma vítima do Dr. Manfredo.

— Então esse homem é um cabra da peste vagabundo como nunca vi outro igual, — ele disse. — O que ele merece é ser capado com uma peixeira cega.

— Há muitas formas de capar um homem, — eu disse. — Por isso, volte à sua poesia e não queira tomar nenhuma atitude, seu Ataliba. Quem vai resolver o que fazer é a esposa, que é a parte ofendida. Aliás, quero agradecer-lhe mais uma vez em nome dela. E tenho certeza de que ela gostaria que o senhor aceitasse este pequeno agrado.

Tirei da carteira uma nota de cem. Ele sacudiu a cabeça, constrangido.

— Não, não, não, — ele disse. — Não fiz nada por dinheiro, fiz por justiça.

— Como é que nós poderemos recompensá-lo, então? — perguntei, reunindo Dona Maristela e a mim no seio do mesmo pronome.

— Quer mesmo recompensar-me? — ele disse.

— Sim, claro, — eu disse.

— Peça à madame que me ajude a publicar um de meus livros, — ele disse.

Pensei um segundo e disse:

— Seu Ataliba, tenho uma sugestão melhor. Procure o Senhor Porfírio Eylau na Agência Ajax de Produções Literárias, que ele resolve o seu problema.

Num pedaço de papel escrevi o endereço da Agência Ajax e o nome de Porfírio Eylau.

— Este senhor vai publicar o meu livro? — disse seu Ataliba, esperança toldando-lhe o rosto em vez de iluminá-lo.

— Seu Ataliba, se o Senhor Eylau não publicar o seu livro, ninguém mais no mundo o publicará.

— Meu amigo, o senhor ainda não me disse o seu nome, — cobrou ele. — Me diga, por obséquio, que faço questão de escrever um poema sertanejo, particular, confidencial, brasileiro, em homenagem ao senhor.

— Meu nome é Luís de Almeida, — eu disse. E desejei-lhe boa tarde e me mandei para o porto seguro da minha sala no Edifício Pongal.

* * *

Do escritório telefonei para o celular de Dona Maristela.

— Dona Maristela?

— É o senhor, Senhor Reis? Tenho uma coisa pra lhe dizer.

— A senhora sonhou de novo com Renée.

— Como é que o senhor adivinhou?

— Eu não adivinhei, minha senhora, eu deduzi. Não sou adivinho, sou detetive.

— Desculpe, — disse ela. — E o senhor tem alguma coisa pra me informar?

— Tudo, — respondi. — O caso está encerrado.

— Cedo assim? — ela disse, quase como se o lamentasse.

— Eu não tenho por costume enrolar os meus clientes, — eu disse. — A senhora tem como vir até meu escritório hoje ainda?

— Mas já são quase seis horas, — ela disse. — Daqui a pouco meu marido vai chegar em casa e vai estranhar se eu não estiver lá nem aqui.

— Dona Maristela, — eu disse, — qual o problema? Deixa seu marido estranhar.

— Tem razão, — ela disse. — Vou chamar um táxi imediatamente.

Passei o tempo de espera folheando a revista Playboy, lendo uma coisa aqui, outra ali. Coisa que envelhece cem anos em dez é revista masculina. Havia uma entrevista, por exemplo, com um certo João Santana, que parece ter sido na época um pica grossa do governo federal e que hoje o que será? Dez mulheres tiradas a formadoras de opinião davam opiniõezinhas — patéticas de tão mofadas — sobre transar por telefone. E até Machado de Assis estava presente na revista, dando pitaco num comercial de moda com a vai ver pior frase de sua carreira: “Existem pessoas elegantes e pessoas enfeitadas.” Quanto às modelos e atrizes que desfilavam por ali exibindo lugares tão comuns como mamas, bundas e bucetas, sou muito mais a minha namorada Mônica do que todas elas juntas, inclusive Renée Cholmondeley.

Não levou meia hora Dona Maristela chegou ao meu escritório. Vinha tão distinta como da primeira vez, ou mais ainda.

— E então? — ela disse, assim que se sentou à minha frente.

Notou a revista em cima de minha mesa e franziu o róseo lábio diante do que supôs fosse não uma peça de evidência criminal mas uma amostra da minha vulgaridade de detetive particular. Tirei então do bolso da capa e, com um dedo suave, empurrei na direção dela a bisnaga de K-Y*. Ela teve um estremecimento.

— Ele também usa isso com ela? — exclamou, furiosa.

— Pode-se dizer que sim, — respondi.

Aí abri a revista na primeira página do estudo em ébano, virei a revista para ela e disse:

— Esta é a amante de seu marido. Renée Cholmondeley.

Ela olhou com atenção para a moça negra e nua e exclamou:

— É a mulher que vi no meu sonho!

Aí passou com fúria as páginas da revista, da primeira à sexta, que continham o célebre estudo fotográfico da mulata que enlouqueceu os americanos. Seis segundos depois atirou de volta sobre a mesa a revista; que deslizou sobre o tampo, caiu da borda da mesa e veio tombar sobre meu baixo ventre. Pousei-a de novo sobre a mesa e abri-a de novo nas páginas 128 e 129.

— O senhor os flagrou juntos? — ela perguntou.

— Dona Maristela, — eu disse, — seu marido se encontra toda quarta-feira com esta mulher que aí está. Bem entendido: com a imagem dela nesta revista.

Ela levou dez segundos pra entender.

— O senhor quer dizer, — ela disse, empurrando a cadeira para trás e levantando-se quase fora de si, — que Manfredo alugou esse apartamento pra bater dez anos de punheta?

Escandalizou-me a falta de classe de Dona Maristela, mas perdoei, devido às circunstâncias, todas elas atenuantes.

— Exatamente, — confirmei. Ela se sentou de novo. Pediu um copo d’água. Levantei, abri o frigobar — meu escritório tem um frigobar —, havia ali um derradeiro copo de água mineral. Trouxe-lhe. Ela tentou retirar a tampa, mas tremiam-lhe a mão e as unhas. Pedi licença e retirei a tampa por ela. Ela tomou um gole, depois enfiou um comprimido na boca e tomou outro gole. A garganta saudou o comprimido com um glut.

Aí contei-lhe, o mais sucintamente que pude, a minha visita ao Edifício Prócyon e ao apartamento 602. Ela não deixava de menear a cabeça a cada ponto mais escabroso. Mas tinha reassumido, como uma segunda pele, a antiga distinção.

— Há uma coisa que falta explicar, — ela disse. — Se esse caso, digamos, de onanismo tem dez anos, por que só agora, depois de tanto tempo, é que eu vim a sonhar com essa moça?

— Como é que era, — eu disse, — o último verso daquele poema? “E dormindo meus sonhos se abraçam nos teus.” Era assim? Pois aí está a explicação. Se só agora a senhora começou a sonhar com Renée deve ser porque só agora seu marido começou a sonhar com ela também.

Ela tomou outro gole d’água. Esperei que deglutisse as implicações do que eu havia dito. Ela fez um esforço para sorrir e conseguiu. Era mesmo uma executiva.

— O senhor não quer dizer, — ela disse, mantendo o sorriso à força no lugar, — que meu marido está apaixonado por essa piranha.

— Não sei, — eu disse. — Só sei que ele não agüentou ficar mais de dois dias longe dela.

Dona Maristela puxou a revista para si e analisou criticamente as seis fotos de Renée.

— Acha bonita essa moça, Senhor Reis? — perguntou.

— Permite-me usar de sinceridade, Dona Maristela? — perguntei.

— Naturalmente, — ela disse.

— Prefiro a senhora a ela, — eu disse, usando a regência castiça do verbo preferir. — Digo isso, claro, inocuamente, porque tenho uma namorada a quem faço questão de ser fiel.

Ela me olhou fixo, sem sorrir e sem corar.

— Não sei se acredito ou não, — ela disse.

Não deixei passar incólume a ambigüidade:

— Não acredita que prefiro a senhora a Renée ou que eu seja fiel à minha namorada?

Sua resposta foi abrir a bolsa e tirar de lá o talão de cheques.

— Quanto lhe devo?

— Por um dia de trabalho? — exclamei. — Já me considero pago. Nem precisei subornar o porteiro.

— Faço questão, — ela disse, de novo executiva.

Aí preencheu, com sua galante Parker 51, outro cheque de mil reais, que deixou sobre a mesa. E levantou-se. E disse, estendendo a mão:

— Adeus, Senhor Reis.

Apertei-lhe a mão.

— Acho que não devo perguntar o que a senhora pretende fazer, — eu disse.

— Realmente, não, — ela disse. — Nem precisa. Basta adivinhar o sonho que tive a noite passada.

— Dona Maristela, — eu disse, — eu não sou adivinho, sou detetive.

Ela fez um gesto que queria dizer: Então não posso fazer nada. Girou para ir, mas girou de volta.

— Já ia esquecendo, — disse ela. E, apossando-se da revista Playboy e da bisnaga de gel lubrificante K-Y*: — Acho que estes objetos me pertencem. Manfredo e eu somos casados em comunhão de bens.

E foi embora, toda distinta, sem nem olhar para trás. Olhar para trás para quem? Para quê?

Esqueci até de perguntar se queria uma carona para a ilha do Boi.

E ainda bem que esqueci.

Dona Maristela Lala Lelevel não foi feita para circular por aí na porra de um Chevette.

Reinaldo Santos Neves é escritor com vários livros publicados e foi responsável pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas da Literatura do Espírito Santo, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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