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Educação pelo povo

O legado do século XX à humanidade inclui processos históricos interdependentes: expansão industrial e consequente urbanização em escala planetária; ascensão das massas que passam a protagonizar – inclusive nas ruas – o cenário político; extrema violência devida a guerras mundiais, depressões econômicas, ditaduras sanguinárias à esquerda e à direita. Nele também se desenvolve a ciência do folclore, justo quando boa parte de seu objeto desaparece ou é radicalmente alterada. Em muitas situações, os homens buscam conhecer o que está prestes a acabar.

A partir da Era Vargas, o Estado brasileiro incentiva o desenvolvimento industrial e, ao mesmo tempo, toma medidas para a descoberta, o registro, a valorização da nossa cultura popular. Mas sempre de cima para baixo, por meio de ações do poder público e de parcela das elites, sem iniciativas a partir da sociedade civil, então precariamente organizada.

A industrialização chega tardiamente ao Espírito Santo. Mas os atrasos na economia e na sociedade não impedem que em terras capixabas existam defensores abnegados do nosso folclore, entre os quais se distingue Guilherme Santos Neves. Sem dúvida, ele integra a elite capixaba, tanto pela origem socioeconômica quanto, e principalmente, por sua formação escolar e intelectual. Contudo, pertence à parte esclarecida da elite, que reconhece a ascensão das camadas populares e enxerga em suas manifestações culturais o imenso potencial criativo para ser colocado a serviço de melhores condições de vida. Esse professor e folclorista sabe muito bem que o verdadeiro mestre é o povo. E procura vincular as duas disciplinas do seu interesse – a educação e o folclore.

Vencer distâncias

 Mestre Guilherme nos ensina que um objeto próximo a nós, o produto de um artesanato por exemplo, tem origem distante. Quantos séculos são necessários para fazer uma boa panela de barro? Quantas gerações contribuíram para que se estabilizasse o modo de elaborar essa panela na refinada fatura que conhecemos? Nosso folclorista maior nos demonstra também que distanciamentos no tempo e no espaço, presentes em costumes medievais europeus por exemplo, são vencidos por diversões próximas a nós, de que as festas juninas são uma boa amostra. Artesanatos, folguedos, provérbios, trovas, adivinhas, parlendas, dramatizações, festas, cantigas oriundas da criatividade do povo contribuem para tornar a vida mais humana. Não é informação buscada às pressas na internet, mas sabedoria decantada por anos e anos de experiência vivida em sociedade. Nesse caso, educar é formar íntegro o caráter das pessoas. Que por meio da cultura popular têm a chance de conhecer os Outros, próximos e distantes, para aceitá-los e respeitá-los.

De modo semelhante, precisamos superar o estranhamento que existe entre a arte popular e a erudita. Não podemos ignorar a sensibilidade e a beleza presentes nas criações do povo. Estão aí mesmo as máscaras africanas apropriadas por Picasso ou a verdade construtiva dos mestres de obra portugueses reverenciada pelos arquitetos modernistas. São outros fossos a ultrapassar com a valorização e difusão do folclore, luta empreendida por Mestre Guilherme durante décadas.

As distâncias que ele deseja vencer dizem respeito, sobretudo, à sua terra. Nós capixabas, formados pelas correntes étnicas que também criaram o universo brasileiro, muito podemos contribuir para o enriquecimento cultural da nacionalidade. As manifestações populares de ampla gama que ocorrem nos estados vizinhos, e nos mais afastados, aqui existem, mesmo que possuindo variantes peculiares. Estamos muito próximos da “Europa, França e Bahia”. A educação trafega em mão dupla – educamos nossos irmãos brasileiros ao informar-lhes sobre nosso patrimônio folclórico comum, e somos por eles educados e enriquecidos ao conhecermos seus fatos folclóricos. Continuamente o saber popular oferece soluções para uma vida melhor.



Tradição e modernidade



O claro objetivo da atividade de Mestre Guilherme, vencer distâncias mentais, também subentende outras dimensões. As transformações que vive e vislumbra para os capixabas devem levar em consideração a cultura popular, ao invés de renegá-la. Quanto maior for o recuo que dermos à borracha da atiradeira, mais impulso conferimos e mais longe a pelota é lançada. O progresso não implica a perda de certos costumes tradicionais. Ao contrário, se quiser ser equilibrado, humano, não destrutivo, e manter-se por mais tempo, deve recuar até às boas tradições e delas se valer. O progresso tem que ser domado, circunscrito, e por que não dizer, “educado” pelas contingências humanas; em resumo, precisa estar a serviço do homem e não o contrário.

Para manter a mobilidade social, para que as partes dessa complexa estrutura permaneçam conectadas e vençam distâncias, nada melhor que a educação e o folclore. Somente assim superaremos o abismo ainda existente em nossa sociedade, na qual a educação, a saúde e a segurança públicas, bastante sofríveis, são oferecidas à imensa maioria da população, enquanto pouquíssimos privilegiados acessam tais serviços de forma privada. Educação pública e cultura popular – fortes elos que a todos unem. A elite deve ir até o povo – “subir” até ele, como Mestre Guilherme gostava de dizer – para aprender com seu conhecimento. Se o folclorista deseja explicar os valores populares às elites, também procura apresentar o povo ao próprio povo, aumentar sua autoestima. Como se garantisse: vocês não são simples objetos da história, mas titulares de direitos. Vocês, o “povo-povo” (expressão dele), não são súditos, mas cidadãos.

A dignidade do povo, por ele próprio conquistada a duras penas, custa a ser mantida. Para tanto, na visão de Mestre Guilherme, convém evitar toda sorte de manipulação. O movimento dos folcloristas brasileiros, que sempre interage com os governos para criar condições favoráveis à proteção da cultura popular, precisa cultivar postura vigilante. Para impedir situações negativas, oriundas dos próprios governantes, caracterizadas por paternalismos, populismos, e dirigismos de vária ordem. Assim, “quem pariu Mateus que o embale”.

Folclore para Mestre Guilherme, mais do que ciência humana a ser estudada com afastamento crítico e frieza, é matéria de vida. Pois a cultura do povo, na origem, foi criada para viver a alegria, a tristeza, momentos e situações individuais e comunitárias. Para sabermos lidar com a fartura e a escassez, até mesmo de forma enviesada – “farinha pouca, meu pirão primeiro”. Com mãos sábias e antigas receitas a população prepara a feijoada sabatina, a moqueca domingueira. E da mandioca brava, venenosa, extrai alimento. Usos e costumes, procedimentos de convivência social, harmonia com a natureza – com nossos antepassados aprendemos a tomar banho diariamente, a admitir que o “cesteiro que faz um cesto faz um cento”, a reconhecer que o Mestre Álvaro, ao colocar seu grande chapéu de nuvens, avisa que vem chuva para Serra e Vitória.

Por tudo isso, a obra de Guilherme Santos Neves, na qual se destacam as mais de mil páginas dos dois volumes da Coletânea de estudos e registros do folclore capixaba (1944-1982), permanece atual, prossegue cumprindo sua missão. Neste 14 de setembro, completam-se 107 anos do seu nascimento. A vida dele não acabou em 1989 – continua a servir como bom exemplo de dedicação à causa da educação e do folclore.

O povo educa as elites. O povo educa o povo. Por meio da simplicidade, da humildade, da sabedoria, características da cultura popular, sempre reafirmadas e praticadas por Mestre Guilherme, e que não nos deixam esquecer sua lição-síntese – a educação pelo povo.

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Fernando Achiamé nasceu em Colatina, ES, em 22/02/1950 e fixou-se em Vitória a partir de 1955. Formado em história pela Universidade Federal do Espírito Santo e em língua e literatura francesas pela Universidade de Nancy II (Pela Aliança Francesa do Brasil). Especialista em arquivos pela Ufes. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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