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Estratégias de sobrevivência em duas comunidades ítalo-capixabas.

Foto: Guilherme Santos Neves, anos 1950.
Foto: Guilherme Santos Neves, anos 1950.

Na recente literatura antropológica sobre comunidades agrárias da América Latina dá-se cada vez mais ênfase às estratégias que os agricultores, individual ou coletivamente, procuram seguir para sobreviver. [entre outros, Cancian, 1972; Ortiz, 1973] Como é lógico, são especialmente as decisões relacionadas com o processo de produção e distribuição agrária as que recebem maior atenção. Em troca, examina-se muito menos a medida em que os agricultores, neste processo de decisões, são guiados por considerações relativas ao problema da divisão da herança. Ou, em outras palavras: a preocupação dos agricultores em assegurar não só os próprios meios de subsistência, mas também os de seus filhos, no presente ou no futuro. Isto constitui um grande problema nas regiões de propriedades em geral pequenas e famílias numerosas, como é o caso da região onde se realizou a presente pesquisa. De modo que a análise deste problema ocupará posição central na argumentação.

Para a pesquisa foram escolhidas duas comunidades no Estado do Espírito Santo: a comunidade relativamente próspera de Venda Nova e a de Alto Corumbá, mais pobre. Ambas estão localizadas a uma distância de aproximadamente quinhentos quilômetros ao norte do Rio de Janeiro, o que torna possível uma comparação adequada. Desde 1967 Vencia Nova está ligada por estrada asfaltada com, de um lado, a capital do Estado do Espírito Santo, Vitória (cem quilômetros) e, do outro, com a cidade de Belo Horizonte (quatrocentos quilômetros). A cerca de trinta quilômetros ao sul de Venda Nova está situada, no alto da serra, a vila de Alto Corumbá, a uns cinco quilômetros de uma estrada que em 1971 estava ainda por asfaltar. Como em muitas outras regiões rurais do Espírito Santo, a população destas comunidades consiste principalmente de descendentes de colonos europeus, neste caso de origem italiana.


1. Chegaram a um inferno

“Em 1894 meu pai chegou ao Brasil com sua família. Olhe, aqui está no passaporte”. A família provinha de Pavia d’Udine. De acordo com um carimbo da companhia de navegação: “La Veloce. Navigazione Italiana. Linea del Brasile. Agenzia di Udine”. Para milhares de pessoas um carimbo como este era uma espécie de confirmação do destino. Saíram de suas cidadezinhas serranas perto de Treviso e Udine, ao norte de Veneza. O êxodo teve início depois de 1870.

Nossos avós deixaram sua terrinha porque ali não havia mais possibilidades de ir adiante. Embarcaram, sem saber na realidade onde iam parar. Coitados, trouxeram sementes e mudas de uvas e oliveiras. Claro que aqui isso não lhes serviu de nada. Do governo receberam um pedaço de floresta para derrubar Não tinham a menor idéia de como cultivar a terra aqui. Além disso, não tinham as ferramentas adequadas nem sabiam nada das espécies de madeira que havia. E os animais selvagens, as cobras, e sobretudo a onça. A avó nos contou uma vez que tinham tanto medo de onça que viveram algum tempo numa árvore. Sim, deve ter sido horrível.

Era um inferno. Todos contam histórias semelhantes. Muitas vezes aconteceu regressarem imediatamente à Itália os imigrantes que dispunham de dinheiro suficiente. No entanto, a maioria era demasiado pobre para fazê-lo, e em muitos casos tinham vindo sob compromisso.

Ah, meu avô também voltou para a Itália. Mas o fez para aliciar colonos a pedido do governo brasileiro. Voltou com um grupo de imigrantes. Levaram aqui o maior susto, porque ele lhes havia descrito tudo muito mais bonito. Mas ele se arrependeu, porque lhe deram uma grande surra.

No princípio, o projeto de colonização foi uma iniciativa do governo imperial com o propósito de povoar regiões virgens. Os primeiros colonos tiveram a sorte de receberem lotes razoavelmente acessíveis e, além disso, de relativamente boa qualidade. Os que chegaram depois tiveram de se conformar com muito menos, e não tardaram a desistir de seus esforços. O topônimo Engano, correntemente usado, ainda testemunha a sua decepção. Essa gente procurou encontrar trabalho nas plantações de café das proximidades. Os fazendeiros tinham muito interesse na mão-de-obra italiana, especialmente depois da abolição da escravatura, que se deu em 1888. Concederam lotes de suas terras aos colonos, aceitando-os como meeiros, e fizeram também vir outros imigrantes da Itália. Além disso, muitos colonos que tinham suas próprias pequenas propriedades costumavam trabalhar regularmente em fazendas próximas para ganhar dinheiro. Para muitos isso representou a escola da plantação de café. “Foi assim que nossos pais aprenderam a plantar e preparar o café, levando mudas, às escondidas, para seu próprio sítio”. Pouco a pouco os colonos começaram a ganhar dinheiro. Enquanto isso, as grandes plantações se faziam cada vez menos lucrativas, não só devido ao problema da mão-de-obra, como também pelas alterações de mercado e pelo deslocamento da fronteira do café do Rio de Janeiro para São Paulo. Com freqüência cada vez maior os fazendeiros subdividiam suas propriedades em lotes para vendê-los em seguida aos colonos. Por volta de 1900 acelerou-se a prosperidade destes. Foi nessa época que se estabeleceram os primeiros italianos em Venda Nova. A princípio compraram terrenos por desmatar, mas não tardaram a adquirir partes de propriedades, de modo que por volta de 1920 a região era inteiramente italiana. O desenvolvimento de Alto Corumbá foi diferente. Esta região fazia parte da fazenda mais extensa do Espírito Santo, que tinha uma superfície de mais de quatorze mil hectares. Essa propriedade foi vendida quase em sua totalidade a uma ordem religiosa. Com base nos lucros obtidos através da distribuição das terras a rneeiros, a ordem mantinha, entre outros empreendimentos, um seminário na casa grande da fazenda.[ 1 ] No entanto, com o passar dos anos os padres se foram aos poucos desfazendo dos lotes de sua propriedade até que, em 1971, só lhes restavam uns quatrocentos e trinta hectares. Alto Corumbá era um dos lugares mais afastados da fazenda, de modo que só em 1945 é que se estabeleceu ali a maior parte dos atuais moradores. Além disso, é interessante assinalar que Alto Corumbá constituía para eles o último recurso que lhes restava para sobreviver como unidade de produção agrícola. Deixaram a região em que antes viviam por causa da forte pressão sobre a terra. É esta uma das razões do seu caráter distinto em comparação com Venda Nova, que já por volta de 1920 estava constituída como uma sólida comunidade.

2. Somos todos de famílias muito numerosas

Nós abaixo assinamos e declaramos, por ter feito uma casa para Escola, no lugar de São Pedro de Venda Nova na Fazenda Lavrinha; nos terrenos da Sra. D. Perrina Caliman e filhos; que estes concede; e promete de dar o terreno…

Assim, em um português trabalhosamente escrito, dez chefes de família italianos (cinco Caliman, quatro Falchetto e um Dell’Asselino) decidiram em 1930 construir uma escola em seus terrenos de Venda Nova. Isso é apenas uma das muitas indicações que dão mostra da importância que a gente do povo atribui até hoje ao ensino. Desde o começo o ensino estava estreitamente relacionado com o lugar que ocupavam as igrejas em suas vidas. Um historiador local o expressa da seguinte maneira, referindo-se aos colonos italianos:

Chegaram ao Brasil pobres e sem meios de subsistência com um cabedal de conhecimentos no amanho da terra, associado às práticas já bem difundidas de associativismo e auxílio mútuo entre as diversas famílias [na Europa] e devido a esta união, […] em cada localidade construindo primeiro o templo… e ao lado do templo ou numa residência mais centralizada, a escola, onde, por falta de professores, o mais douto se dedicava ao ensino das primeiras letras. [In: O Cooperado. Mensal da Cooperativa, n. 5, 1971]

Tomando por base as histórias contadas pelos mais velhos, grande parte dos imigrantes sabia ler e escrever. Assim, os pais transmitiram aos filhos os conhecimentos mais elementares: “Meu pai era muito culto. Era assinante de um jornal italiano publicado em São Paulo. Lia as notícias em voz alta e me ensinou a ler. Assim, em pouco tempo aprendi a ler. Não é que ensinasse realmente, isso não, porque não sabia português. Mas havia outros três que davam aulas. À noite, depois do trabalho, os três davam aulas.” Em 1920 os agricultores conseguiram contratar uma professora. Mas as professoras se sucederam muito rapidamente, de modo que não foram de grande valia. Além disso, as aulas eram dadas na casa de um dos agricultores, o que representava um ambiente pouco tranqüilo. Daí decidiram, em 1930, construir uma escolinha. Em 1970, a comunidade de Venda Nova, contando aproximadamente quatro mil habitantes[ 2 ] dispunha de duas escolas primárias e um conjunto quase completo de escolas secundárias. Espalhados por todo o país, cerca de cento e oitenta jovens estudavam em universidades ou em outras instituições de ensino superior.

A igreja era e continua sendo o lugar de encontro mais importante para os habitantes. A freqüência à igreja é bastante alta, mesmo entre os homens. A vila não tem seu próprio pároco. Se não conseguem encontrar um pároco de outra localidade para celebrar missa, os habitantes mais velhos, seguindo a tradição, se encarregam do serviço religioso. Antigamente celebravam duas missas nos domingos e: “… os velhos controlavam quem assistia à missa e, se alguém se atrevia a entrar na igreja sem paletó e gravata, passava um mau pedaço.”

Ao diretor aposentado de uma escola secundária em Minas, que há pouco tempo veio viver em Venda Nova, a população parece muito religiosa em comparação com a da Itália, onde viveu vários anos:

No princípio dos anos 30 fui viver na Itcília. Ali trabalhei durante uns dois anos, e por causa de meu trabafto tive oportunidade de fazer várias viagens pelo país. Eu lhe posso dizer que aqui vão muito mais à igreja, mas também são menos supersticiosos. Embora isto não tenha muito a ver com a fé, a visita à igreja lhes dá oportunidade para conversar ou para ver o namorado.

Um natural de Venda Nova acha muito exagerado o que ele diz e protesta:

Sim, mas a igreja era o único lugar de encontro que a gente tinha naquela época. O resto da semana a gente passava no sítio. Para as mulheres as coisas não mudaram muito. Bom, é claro que também conversam.

Este homem acentua o lado positivo enquanto o outro descreveu de maneira negativa a função social da igreja. Além disso, podia ter alegado que a população devia ser muito religiosa, já que a contribuição do povo à igreja chegava a não menos de vinte e quatro padres e mais de oitenta freiras. Do ponto de vista nacional, Venda Nova se contava entre as comunidades que mais contribuíam, em termos relativos, para a emissora religiosa Nossa Senhora Aparecida.[ 3 ] Com efeito, isto pode ser considerado uma indicação do forte sentimento religioso da população. No entanto, o papel que a igreja desempenhava e continua a desempenhar na atualidade como instituição social é mais importante.

Foi principalmente a igreja que garantiu a coesão tão necessária num ambiente novo, desconhecido e, com freqüência, hostil. A própria insistência com que os líderes do povo impunham a freqüência à igreja e o traje apropriado contribuiu para que eles se mantivessem unidos mesmo quando ameaçados por crescente pobreza. Também graças à disciplina imposta sobre o comportamento na igreja, o centro por excelência dos valores morais, foi mantida a tendência para a ajuda mútua. Deste modo, a comunidade conseguiu resistir à epidemia de febre amarela de 1918, que vitimou precisamente grande parte dos homens. A única vez em que esteve ameaçada a harmonia e a união da comunidade[ 4 ] foi em 1924, quando se deu um conflito por questão de terra: “Naquela época não havia unidade, brigava-se até na própria igreja. Foram dias terríveis, atravessamos um período de grande inimizade.” Por influência do padre[ 5 ] e dos líderes que não estavam implicados no conflito, os antagonistas concordaram em submeter a questão à apreciação do juiz. A confraternização se deu pouco depois, durante uma festa organizada pelo colono que ganhou a causa.

Outro papel muito diferente desempenhou a igreja na comunidade. Já vimos que os agricultores atribuíam muita importância ao ensino. As crianças adquiriam os conhecimentos elementares no próprio povoado. Não existia porém outra possibilidade de continuar os estudos a não ser nos seminários (para os rapazes) ou nos conventos de freiras (para as moças). Em vista da falta de padres e de outros religiosos no Brasil, não é de estranhar que os padres locais recorressem ao espírito religioso dos agricultores (e, também, provavelmente, à sua noção de status), insistindo para que enviassem os filhos para estudar nos seminários etc. Os resultados assim obtidos pela igreja não podem ser atribuídos exclusivamente ao zelo religioso dos agricultores. Já em 1920 quase toda a região estava explorada em lotes suficientemente grandes para atender as necessidades de uma só família. No entanto, as famílias numerosas (ter oito a dez filhos era antes a regra do que a exceção) previram os efeitos da divisão da herança: a dispersão da propriedade.[ 6 ] Uma das soluções para aliviar a pressão sobre a terra foi justamente encaminhar um ou mais dos filhos a uma carreira religiosa; dedicando-se a essa carreira, deviam eles renunciar à sua parte da herança. O grande número de freiras, principalmente, deve estar relacionado com isto. Embora se possa acusar a igreja de explorar a miséria dos agricultores[ 7 ] também se poderia alegar que eles se aproveitavam da necessidade da igreja. Pois os vinte e quatro padres representam apenas uma pequena fração dos jovens que estudaram durante vários anos num seminário para depois retornar à comunidade. Retomavam o trabalho agrícola, mas aos olhos dos demais tinham agora a formação necessária para enfrentar especialmente os freqüentes roubos dos comerciantes. Um deles conta:

Os velhos se deram conta muito bem de que a comunidade estaria indefesa se os filhos não tivessem os conhecimentos necessários. Isso se tornou mais evidente em 1920. Estabeleceram uma cooperativa sem ter a menor idéia de como administrá-la. Acharam um homem da cidade que estava disposto a fazê-lo, e ele os roubou escandalosamente.

Em 1924 mandaram o primeiro rapaz para o seminário, seguido por outro um ano mais tarde. Em fins dos anos 20 há uma afluência contínua de rapazes aos seminários. Só na década de 60 é que foi diminuindo essa afluência, em parte porque, devido ao asfaltamento da estrada para Vitória, os filhos dos agricultores tiveram acesso ao ensino secundário na cidade. Em 1971 já quase ninguém do povoado estudava em seminário. Embora a religião e a formação sejam valores trazidos da Itália, no novo ambiente vêm a ter sua própria significação social que não se pode isolar dos problemas concretos enfrentados pelos colonos.

Como dissemos antes, as vocações religiosas serviram para aliviar a pressão sobre a terra. A escolha de uma carreira religiosa foi só uma das estratégias adotadas para esse efeito. Muitos homens deixaram de se casar e continuaram morando no sítio com os irmãos e, o que é mais importante, trabalhando ali. O caso das mulheres era em geral diferente. Cada mulher, com exceção das freiras, devia casar-se.[ 8 ] Havia também casamentos em que uma jovem esposava o irmão da mulher de seu irmão: trocavam, segundo a expressão local usada para esse tipo de casamentos que neutralizavam a divisão da herança. Além disso, os filhos renunciavam à sua parte da herança se, por casamento ou por alguma outra maneira, vinham a conseguir meios suficientes de subsistência. Outra alternativa estratégica importante, o controle do número de filhos, não foi aplicada:

Sim, é verdade, somos todos de famílias muito grandes. Mas é que no sítio há sempre falta de braços. E o controle da natalidade? Bem, foi assim. Uma vez ou outra, em vários meses, o médico passava pelas casas. Ficava furioso com os homens, brigava com eles porque estavam contribuindo para a morte de suas mulheres. Dava-lhes instruções, e eles logo prometiam fazer o que pudessem. Mas sempre acontecia a mesma coisa: por acaso, dias depois vinha o padre visitar a casa e os ameaçava com o inferno e a condenação eterna se ousassem seguir os conselhos sacrílegos do médico. Mas o médico tinha razão, a situação às vezes era terrível. Agora é muito melhor, com a pílula e tudo, não acha? Há pouco um homem daqui se deixou esterilizar. Sim, os tempos mudam, e tanto melhor!

A estratégia mais importante para aliviar a pressão sobre a terra foi a migração de famílias inteiras para outros lugares, estimulada em geral pelo apoio econômico dos que permaneceram em suas terras, que compensavam assim a parte da herança a que tinham direito os migrantes. Na década de 30, um reduzido número de famílias saiu para se estabelecer em um núcleo situado no estado de São Paulo, mas a grande maioria ia viver em regiões inexploradas ao norte do Espírito Santo. Essa migração, iniciada na década de 30, atingiu seu ponto máximo em 1950, interrompendo-se abruptamente ao se esgotarem as possibilidades de maior expansão. Essa transferência de uma parte da população tinha um caráter bem organizado. Em primeiro lugar, naturalmente ao nível de parentesco: as decisões sobre futuras mudanças eram tomadas em família, que enviavam na frente alguém para cuidar do que fosse preciso. Mas as providências se desenvolviam também a nível de coletividade. Quase todas as famílias foram para o distrito rural de Marilândia, no município de Colatina, onde recriaram o mesmo padrão social de Venda Nova: “é uma cópia exata deste povoado”, diz alguém. Outros repetidamente falam de “nossa filial”, “nosso anexo”.

O fim dessa possibilidade significou para Venda Nova que parte dos jovens já não poderia fazer seu futuro na agricultura. A estrada para Vitória estava concluída, e o acesso à cidade se fez através do ensino:

Meu pai sempre dizia que já não se podia dividir mais o sítio. Desde pequenos já sabíamos que o sítio era do mais velho, que não gostava muito de estudar. Nossa parte da herança já recebíamos — conforme dizia meu pai — na forma de uma boa educação. Isso era levado a sério. Ele nos dava licença para ver os filmes que passavam no cinema de Castelo (a trinta e cinco quilômetros de Venda Nova] e assinou para nós algumas revistas infantis. Para dizer a verdade, fez o que podia, e ao que parece com bom resultado. Há três anos morreu meu pai, e a divisão da herança ainda não se acertou inteiramente. É mais complicado do que se pode imaginar. O mais velho fica com o sítio e aos outros nos toca um pequeno terreno no morro para construir mais tarde uma casinha de veraneio para as férias da família.

Quase todos os agricultores optaram por soluções semelhantes. E os resultados têm sido satisfatórios, como se pode inferir dos cento e oitenta estudantes, aproximadamente, que freqüentam o ensino superior. Desses cento e oitenta os poucos que voltarão ao povoado virão, por exemplo, dar aulas em escola secundária, enquanto a maioria deles ganhará a vida nas cidades.

Por meio de todas essas estratégias, os agricultores têm conseguido, até agora, manter suas propriedades a um nível razoavelmente rentável. O tamanho das propriedades varia entre trinta e cem hectares, os vales são amplos, a terra é de boa qualidade e, além disso, Venda Nova conta com um clima muito favorável .[ 9 ] Há inclusive um número de propriedades bastante grandes para permitir a cessão de lotes a meeiros. Salvo algumas exceções, os agricultores de Venda Nova não se viram na necessidade de recorrer ao que para eles significaria uma medida pouco desejável: os irmãos preferirem não dividir a terra herdada, evitando com isso o seu fracionamento completo, e tentarem subsistir, com suas famílias, da produção da propriedade.[ 10 ] Esta tendência envolve sempre a existência de uma só casa na propriedade (onde podem morar o pai, a mãe ou os irmãos solteiros). Esta é a situação preferida. A existência de mais famílias em uma única propriedade, salvo as boas exceções, gera conflitos na divisão dos lucros da produção entre as famílias. Os meios necessários para se melhorar a situação, o que em geral só se consegue com muitos esforços, como no caso de Venda Nova, faltam à maior parte das famílias de Alto Corumbá. As estratégias de sobrevivência que adotam os agricultores daquela região pobre é o que examinaremos a seguir.


3. É um lugar muito afastado de todos os recursos

A casa de Angelo Padovani fica na parte mais baixa de um estreito vale. O caminho que passa ao lado da casa, com muitas poças de lama e profundos sulcos escorregadios, serpenteia ao longo da encosta íngreme. De uma das janelas vemos de repente uma caminhonete passar trepidando na parte alta do caminho. Na carroceria vemos dois homens amparando em enorme frigorífico. A cena deixa todos sem fala. Então digo: “Que é isso? Ainda não tem eletricidade aqui!” Imediatamente todos começam a falar muito agitados:

É para os Langoni. Eles têm um gerador tão potente quanto o que nós temos, e acham que é possível. O prefeito prometeu que teríamos eletricidade dentro de poucos anos. Puxa, é lindo esse troço.

Na parede estão penduradas flâmulas e decalcomanias de clubes de futebol do Rio, junto com flâmulas comemorativas do primeiro concurso de canto de canários do Espírito Santo. O concurso foi realizado no ano passado e o filho mais velho de Angelo participou dele. A família ouve regularmente as notícias transmitidas pelo rádio do Rio, e os homens não perdem nenhuma das transmissões esportivas. Também nesse povoado todos se interessam bastante pelo que acontece no mundo exterior. No entanto, as diferenças com Venda Nova são grandes. Em primeiro lugar, são outras as condições naturais de Alto Corumbá. Os vales são bastante estreitos e as encostas muito íngremes, terrenos difíceis para a agricultura. A qualidade da terra é inferior à de Venda Nova e o clima menos favorável:

Compramos o sítio em 1945. Por pouco mais que nada. Como éramos muito pobres, o dinheiro só deu para comprá-lo. Não é um lugar muito apropriado, pois fica muito afastado de todos os recursos. Na realidade é muito frio para o café. Mas que vamos fazer?

Devido a essas circunstâncias a região continua sendo um lugar muito afastado. Das famílias que ali vivem, somente algumas estão há muito tempo no povoado. Só a partir da década de 40, quando todas as terras do sul do Espírito Santo já estavam desmatadas, é que se povoou esta região. A maioria das famílias se estabeleceu aqui por volta de 1945. Viram-se obrigadas a migrar de outros lugares por causa da pressão sobre a terra, sem dispor de muitos recursos econômicos.

Para a maior parte dessas famílias, Alto Corurnbá representa o último recurso para se manterem como unidade de produção agrícola. A região é muito mais pobre do que Venda Nova. Além disso, pela quantidade de casas novas, não pode ser considerada uma comunidade antiga, embora os laços entre as diversas famílias sejam igualmente estreitos; tampouco há muita diferença de uma comunidade para outra no que diz respeito à religiosidade. Por outro lado, daqui não saíram padres nem freiras, nem um grande número de estudantes. O que ocorreu, isto sim, foi uma considerável migração para as cidades. Que estratégias segue esse povoado a fim de garantir, a um certo número dos seus, a base mínima de subsistência agrária, e assegurar aos outros os meios de se instalarem nas cidades? Para responder a estas perguntas daremos a seguir a história de duas famílias.

Os Padovani chegaram em 1945 a Alto Corumbá, onde tinham comprado um sítio de cerca de trinta hectares. Dos nove filhos que tinham, trouxeram oito. Uma filha casada ficou na região de origem. O filho mais velho, que os acompanhou, já estava casado, e os demais se casariam em Alto Corumbá. Dois filhos e uma filha se casaram com membros da outra família, os Faco: “Nossas famílias trocaram casamentos. Se uma delas roubava um membro da outra, esta não tardava em lhes tirar um de volta.”

Depois da morte do pai, no início da década de 50, os seis irmãos decidiram não dividir os trinta hectares, mas dirigir juntos uma só propriedade. Fundaram o que chamavam de uma firma ou sociedade de irmãos. Em 1960 compraram, a uns dez quilômetros do sítio, mais cinqüenta hectares de terra. Como esse terreno não era de muito boa qualidade, acabou sendo mais usado para pastagem. Dois irmãos se estabeleceram ali com o gado da família. Essa forma de colaboração não implicou, incidentalmente, que as famílias morassem na mesma casa. O sítio ficou para um dos irmãos mais novos, com quem foram morar a mãe e outro irmão com a esposa. Os outros irmãos tinham casa própria. De acordo com o que dizem, a firma se baseia em uma cooperação de trabalho muito estreita e, apesar de duras provas, nunca surgiram grandes problemas. O pior dos problemas foi a doença mental do irmão mais velho, que quase os levou à pobreza. Fizeram o que puderam para curá-lo. Ficou inclusive internado durante algum tempo em um hospital do Rio, mas isto também foi em vão. Um deles disse: “Felizmente tudo se ajeita com harmonia, que esta não falta. Mas se tivesse sido possível, claro que a partilha teria sido melhor.”

Também os Faco, a que nos referimos antes, procuraram uma solução semelhante para o problema da divisão da herança. Quatro dos irmãos compartilham cerca de cinqüenta hectares de terra, e falam também de uma firma ou sociedade de irmãos. As irmãs renunciaram à sua parte da herança, assim como o irmão mais velho, que fizera um bom casamento. De seu sogro recebeu recursos que lhe permitiram começar uma nova vida no norte do Espírito Santo, o que, diga-se de passagem, conseguiu com sucesso. Quanto ao sítio, foi cedido ao irmão mais novo por ter cuidado da mãe até o dia em que ela morreu. Com ele mora outro irmão solteiro, bem como um paralítico que, desde pequeno, foi criado pela família. Cada um dos outros dois irmãos tem casa própria. Também eles dizem que a firma funciona com unidade e harmonia, sem grandes problemas: “Somos muito unidos entre nós.”

Um membro de outra família se mostra muito menos confiante quanto a não dividir a propriedade paterna:

Olha, não é que não tenhamos chegado a acordo. Nós estávamos acostumados porque isso tinha que ser feito enquanto meu pai ainda era vivo. Mas, para qualquer coisa, é preciso consultar os outros. Cada um tem sua própria opinião e, sem saber como, a gente começa a brigar, até por causa da venda de uma vaca. Assim tudo demora mais tempo. Assim são as coisas em uma sociedade, não é? Graças a Deus, dividimos a terra em harmonia; agora só falta dividir o gado, e então finalmente ficaremos tranquilos.

Ele fala com base em uma experiência muito diferente da das famílias Padovani e Faco. Seus três irmãos e ele cuidavam juntos de uns trezentos e sessenta hectares de terra, o que para a região representava uma propriedade grande demais. Neste caso, a divisão em quatro não chegou a constituir uma ameaça à rentabilidade da propriedade, e menos ainda a prejudicar os meios de subsistência das famílias. A um dos irmãos couberam cento e quinze hectares, em vista da má qualidade do terreno, outros dois receberam noventa e um hectares cada um e o quarto ficou com os restantes sessenta e três hectares, recebendo além disso o caminhão. Ademais, a divisão não foi feita em um momento arbitrariamente escolhido. Os filhos maiores estavam em idade de casar e os pais queriam dar a alguns deles um lugar na propriedade:

Um de meus filhos já tem uns dois anos de casado. Tem a sua própria casa, e acabo de lhe dar uma parte da propriedade. Claro que nos ajudamos uns aos outros, principalmente dando orientação. Mas em todo caso é melhor que cada um dependa de seus próprios esforços. Com outro de meus filhos farei o mesmo, quando se casar. Os outros, que são sete, terão de estudar, porque a terra não dá mais para eles.

O homem tinha nove filhos e quatro filhas. Dois dos filhos, que não estudavam, também deviam ficar no trabalho agrícola. O filho maior, enquanto isso, concluíra o curso de economia, e comprou uma casinha para os quatro irmãos que faziam o curso secundário na cidade. A filha mais velha ficou tomando conta da casa para eles.

Esta estratégia é semelhante à que seguiam os agricultores de Venda Nova. No caso das famílias Faco e Padovani, porém, uma estratégia como esta era completamente impraticável. Cada firma só garante um futuro razoável para dois ou três dos filhos no máximo. No entanto, as cinco famílias Padovani têm em conjunto quarenta e oito filhos, e as três famílias Faco, vinte e nove.[ 11 ] Das duas famílias, os Padovani e os Faco, vários filhos já se casaram. Salvo algumas exceções, não chegam a ingressar no curso secundário. Assim, a migração para a cidade se faz de maneira diferente. Em sua maioria os rapazes vão trabalhar como operários na indústria: trabalham em fábricas de tecido e de cerveja, ou como portuários. Alguns outros se tornam artesãos: cabeleireiros, marceneiros, sapateiros. As filhas trabalham como empregadas domésticas. No entanto, esse processo de migração se faz de modo muito bem organizado. Por exemplo, a maioria dos filhos vai trabalhar no Rio e na cidade vizinha de Nova Iguaçu.[ 12 ] A mulher de um dos irmãos Faco conta como esse ponto de apoio chegou a figurar em último lugar:

Isso começou com um dos meus irmãos. No sítio de nossos pais não tinha nenhum futuro para ele, e ele decidiu ir embora faz mais ou menos vinte anos. Tinham-lhe dito que em Nova Iguaçu havia boas oportunidades de trabalho, e por isso ele foi para lá. Como no sítio ele tinha aprendido a curtir couro, conseguiu um bom emprego como sapateiro. Há dezesseis anos meus pais foram morar com ele para passar a velhice lá. Meus tios [a irmã do pai e seu marido] estavam com o sítio nas mesmas condições, e mandaram um dos filhos para meu irmão. Ele conseguiu trabalho em uma fábrica de tecidos. Agora quase toda a família mora lá: os pais e três dos filhos [casados com mulheres de sua região de origem]. Os três filhos trabalham na mesma fábrica de tecidos. Moram juntos em uma casa grande onde fizeram divisões como apartamentos. Agora três de meus filhos também moram lá. Dois deles trabalham na mesma fábrica de tecidos e o outro trabalha numa cervejaria. Eles também moram juntos na mesma casa e fazem tudo juntos. Além disso, dois filhos do irmão de meu marido, um filho dos Padovani e outro de nosso vizinho, também trabalham nessa fábrica de tecidos.

Assim as famílias conseguem enfrentar relativamente bem o impacto causado pela mudança para a cidade, embora as possibilidades de uma rápida ascensão social sejam consideravelmente menores do que para os que fazem o curso secundário. Fica a pergunta: por que, numa das famílias Padovani, dois dos filhos chegaram ao ensino superior, enquanto o resto da firma não teve essa oportunidade? O chefe da família escolheu uma estratégia toda especial. Além de trabalhar junto com os irmãos na propriedade agrícola, especializou-se como marceneiro e motorista de caminhão. A princípio foi ajudado pelo irmão que não tinha filhos, que mais tarde foi morar em Vitória, e depois por seu filho mais velho: “… que não tinha, de qualquer forma, cabeça para estudar”. Assim esse homem dispunha de um pouco mais de recursos do que os outros irmãos, pois podia aplicar o dinheiro que recebia com essas outras atividades. Além disso, investiu especificamente na formação dos filhos que lhe pareciam ter talento. No entanto, sem a ajuda do irmão que não tinha filhos e da mulher dele, que se dispunham a instalar-se na cidade para facilitar o estudo dos sobrinhos, ele não teria podido atingir sua meta.

Comparando-se Alto Corumbá com Venda Nova, não se pode deixar de ficar impressionado com os grandes contrastes entre um lugar e outro. Enquanto em Venda Nova a vida floresce, Alto Corumbá é uma região estacionária. A região não tem representante político próprio, embora tenha eleitores suficientes: “Bem, temos amigos na cidade que nos facilitam as coisas. Mas é claro que seria melhor se tivéssemos ali uma pessoa nossa”. Uma cooperativa de consumo não teve mais que a curta duração de quatro anos (1964-1968).[ 13 ] Os agricultores pobres se sentem abandonados pelo governo: “O governo não dá nenhuma importância à agricultura… Já vimos alguma vez um agrônomo por aqui? Nunca vêm aqui, nunca!” Por outro lado, o fazendeiro rico nos informa que o agrônomo do serviço de agricultura passa lá todos os meses:

Acaba de passar por aqui. Seguindo seu conselho, vou começar a plantar laranjas. Vão incentivar asfábricas de sucos de fruta para exportação, e com o cultivo defrutas posso obter uma redução de impostos. Ao mesmo tempo poderei diversificar um pouco minha produção.

Sobre a região diz:

Ora, a que se deve isso precisamente, eu nao sei. Muitas vezes disse que temos de colaborar mais. Mas aqui, nada vai para frente. Tudo aqui fica parado. A gente sempre tem de falar, e falar outra vez, e chega um momento em que a gente desiste. Claro que é pena, mas agora só me preocupo com as minhas coisas.

Em comparação com Venda Nova, Alto Corumbá é, na realidade, uma região parada. Como dissemos antes, as condições dessa região são menos favoráveis à agricultura. Continua sendo um “lugar muito afastado dos recursos”. Justamente por isso é que foi possível, ainda em 1945, estabelecerem-se aqui muitas famílias que a pressão sobre a terra fez sair de outros lugares, mas que não dispunham de recursos econômicos suficientes para solucionar em definitivo seus problemas de sobrevivência como unidades de produção agrícola. Embora também aqui se tenha mantido uma estreita vida comunal, principalmente em razão do elevado número de vínculos matrimoniais entre os seus membros, não se conseguiu seguir, durante muito tempo, determinadas estratégias. Em conseqüência, principalmente os investimentos com a educação são menores do que em Venda Nova. Ali se pode observar um claro reflexo desse investimento sobre as formas locais de organização. No entanto, esse reflexo não pode em absoluto ser considerado como um fato isolado. Aí têm muita importância as mudanças na estrutura do mercado agrícola bem como, obviamente, aos olhos da própria população, as melhorias das comunicações com o mundo exterior. Para a própria gente, a construção da estrada Vitória a Belo Horizonte, ou, como se diz ali, “a chegada do asfalto”, representa o marco que separa o passado do presente.

4. Quando a cidade chegou até aqui

Puxa, como mudaram as coisas! Imagine, eu tinha dezesseis anos quando pude acompanhar meu pai pela primeira vez a Castelo. Isso foi em 1911. Depois da colheita do café meu pai ia fazer compras para o ano inteiro. Voltamos com cinco cavalos carregados de, principalmente, querosene, sal, carne seca, bacalhau, ferramentas. Não precisávamos de mais nada porque o resto tínhamos no próprio sítio. Em comparação com agora, Castelo não era nada naquela época. Tinha três lojas apenas, mas eu fiquei muito impressionado. Foi a primeira vez que vi um trem, e também a primeira vez que dormi fora de casa. Ora, tínhamos de passar a noite lá. Nesses quarenta quilômetros você levava horas e horas de viagem. Depois, na década de 20, quando havia muito movimento aqui com a venda do café, eu ia a Castelo três vezes por mês a negócios. A estrada foi melhorada e os comerciantes estenderam uma linha telefônica até Venda Nova. Mas logo veio a crise e os cabos de cobre foram todos roubados. Na verdade, levávamos aqui uma vida de cachorro até a chegada do asfalto. Para ir a Vitória a gente levava mais de oito horas de viagem, isso se não chovesse. Agora você chega em uma horinha.

Levando em conta essas diferenças no tempo de viagem, compreende-se por que um homem se exprime assim: “Quando a cidade chegou até aqui…”

Em 1968 a estrada estava toda concluída. Três anos mais tarde Venda Nova já tinha um grande restaurante ao lado da estrada e três postos de gasolina. Mas isso não é tudo: um pequeno hospital, uma escola secundária e eletricidade. “A única coisa que falta é o telefone. Quando tivermos telefone, então teremos tudo”. Em 1967 se desenvolveu, praticamente do nada, um projeto de criação de galinhas. Em 1970, a produção de ovos de Venda Nova representou 19% da produção agrícola total do município, as aves para corte representando 6%.[ 14 ] Em 1971 a produção chegou a trinta e seis mil ovos diários. Pela primeira vez o café perde a sua posição dominante, embora ainda represente 42% da produção total. Graças às melhores comunicações com as cidades em rápido crescimento (e não apenas Vitória, os produtos são vendidos inclusive em Salvador), os agricultores tiveram pela primeira vez a possibilidade de penetrar no mercado, diversificando assim sua produção. No que se refere à colocação de seus produtos no mercado, poder-se-ia dizer, do mesmo jeito, que Venda Nova chegou à cidade, e vice-versa. Por tudo isso não é de estranhar que a população de Venda Nova considere a chegada da estrada uma espécie de ruptura com o passado. É claro que circunstâncias externas como a construção da estrada e o rápido crescimento das cidades provocaram essa ruptura. No entanto, não se podem explicar todas as mudanças sem se levar em conta a organização social local tal como se desenvolveu no decorrer dos anos.

Já examinamos a vida religiosa e os esforços para a educação em Venda Nova. A organização econômica da comunidade mostrou, pela primeira vez, na década de 20, uma pequena modificação. Um número limitado de agricultores se especializou em determinado ofício artesanal, que porém foi sempre uma atividade secundária em relação à agricultura. O que é ainda mais importante, foram os bons preços do café que, na década de 20, deram lugar ao surgimento de um comércio intermediário local. Os intermediários, embora em número reduzido, chegaram a ter muita importância. Em primeiro lugar, agiam como os principais mediadores econômicos entre Venda Nova e o mundo exterior. Como representantes dos grandes comerciantes de café, podiam oferecer facilidades de crédito aos agricultores. Além disso, parte do dinheiro canalizado para a comunidade através deles voltava às suas mãos por meio das vendas e bares que exploravam como atividades secundárias. Logo transformaram-se em mediadores políticos, quando os grandes comerciantes de café conseguiram eleger-se para cargos políticos (um deles inclusive foi eleito senador). Ainda agora todos os vereadores, mais o prefeito e o vice-prefeito, são comerciantes de café. Todavia, na década de 20 não ocupavam ainda essas posições. Então era o chefe político, o coronel da região, um dos últimos fazendeiros tradicionais, que tinha todo o poder, embora os padres locais também tivessem uma influência bastante grande. A década de 30, no entanto, deixa aparecer mudanças significativas. A crise econômica mundial atingiu duramente essa comunidade agrícola orientada para a exportação. De fato, os agricultores tiveram de voltar à agricultura de subsistência. O fascismo achou ali um ambiente propício. Uma propaganda intensiva, divulgada inclusive por padres e professores enviados da Itália, converteu a região em baluarte do Partido Integralista, que sofria grande influência das idéias do fascismo italiano. Isso lhes custou caro. Em 1938, depois do fracasso de um ataque integralista ao palácio presidencial do Rio, o povoado foi, por assim dizer, atacado pelo Exército: os dirigentes do partido no local foram detidos e, o que aos olhos dos agricultores foi mais grave do que tudo, tomaram-se-lhes os fuzis. Depois que o Brasil, em 1942, declarou guerra aos países do Eixo, esses agricultores foram considerados como uma espécie de inimigos do Estado, mas:

Que sabíamos nós de toda essa guerra? Imediatamente proibiram falar italiano, e ficamos com muito medo. No povoado não era tão grave, mas fora dele a gente tinha de ter muito cuidado. Um dia fomos um grupo a um congresso religioso em São Paulo. No trem, falávamos português o melhor que podíamos. Pois bem, claro que a gente começa a se chatear com a viagem e então aparecem o baralho e a garrafa de vinho. Sem sequer nos darmos conta, dai a pouco estávamos gritando em italiano, e de repente uns soldados nos pegaram e nos botaram Para fora do trem.

Devido a essas circunstâncias políticas e aos maus resultados econômicos, o pessoal foi desanimando. Justamente nessa época, contudo, Venda Nova começou a recolher os frutos dos esforços que se tinham feito para dar uma boa educação às crianças.

No princípio, foram principalmente os padres e, em menor grau, as freiras, que tiveram influência sobre os habitantes. Os conselhos que davam em suas visitas eram levados muito a sério pelas famílias. No entanto, o que foi ainda mais importante, o padre que, em 1924, fora o primeiro rapaz a ser encaminhado a um seminário, trabalhou ativamente pelos interesses de Venda Nova. Da sua paróquia no Rio vinha (e vem) visitar sua terra natal sempre que possível para, com o prestígio e a influência que tem, “salvar as pessoas do desânimo”. Para isso partiu da seguinte filosofia:

…sempre esforcei para proporcionar à terra onde nasci meios com que ela saísse da estagnação ou da rotina em que vivem tantas comunidades capixabas. Parti do seguinte princípio: se a gente pára num empreendimento qualquer, após conquistar certas vitórias, o resultado é o retrocesso, ou seja, o progresso em qualquer sentido não permite parada ou descanso. Ou a gente se vira ou a gente morre. [Informação direta]

Embora o padre não negue que sua influência pessoal é grande, diz que essa filosofia deriva seu sucesso principalmente da existência de “um fabuloso elemento humano unido e disposto… Venda Nova realmente é uma comunidade exemplar.” Seus maiores pontos de apoio entre a população ele encontrou junto aos velhos líderes do povo e ao grupo de jovens que, outrora, tinham estudado em seminário, alguns tendo sido seus colegas. Foram esses especialmente que puseram em execução os seus projetos. As primeiras atividades se desenvolveram no campo da recreação, embora dentro da esfera de influência da igreja.[ 15 ] Em 1944, criou-se o coral da igreja, logo depois a banda de música e, em 1945, um grupo de teatro.

O coral, principalmente, chegou a ser um sucesso. É conhecido em todo o Estado e atua em toda a região. Cantam música religiosa e Verdi. Começamos com isso porque todos tinham estudado música no seminário. A maior parte dos homens daquela época sabia música.

Enquanto isso, os líderes do povoado reexaminaram a possibilidade de se estabelecer uma cooperativa. Um deles fora roubado escandalosamente por um fabricante de sacos de juta, e isso lhes pareceu o limite. Além disso, seus filhos tinham agora conhecimento bastante para dirigir uma cooperativa ou algo no gênero. Os mais velhos procuraram especificamente:

…a colaboração de elementos jovens, na época ainda na dependência dos pais, e que já tinham uma base cultural mais elevada, […] e que poderiam com o passar do tempo ocupar cargos na direção do movimento em vias de ser fundado. [In: O Cooperado. Informativo Mensal da Cooperativa, n. 5, 1971]

Em 1947 fundou-se a cooperativa de consumo, com vinte e seis sócios. Em 1970, o número de sócios chegava a quatrocentos.

As atividades do padre tendiam cada vez mais para o terreno político e econômico. Depois de passada, em 1945, a ditadura Vargas, voltou a levantar-se o movimento integralista, agora na forma do partido de Representação Popular (PRP). As colônias italianas do Espírito Santo se transformaram em um dos baluartes mais firmes do partido. Na realidade, isso pode ser atribuído mais ao fato de que os integralistas dispunham da única organização a que tinham acesso do que por razões ideológicas. Tanto para um deputado estadual como para um deputado federal do PRP, Venda Nova era um importante reduto de votos e o padre, junto com os líderes locais, sabia se aproveitar disso. Na década de 50, porém, não podiam obter desse lado muitas vantagens, já que o PRP era um partido bastante pequeno e que, com freqüência, estava na oposição. Mas depois de 1964 a situação mudou. Em 1965 o PRP se integrou à ARENA, partido do governo, de modo que passou a desfrutar de uma influência relativamente grande e teve acesso às verbas do Estado. Os resultados para Venda Nova foram uma repartição dos correios, um agrônomo do Instituto Brasileiro do Café, verbas para a escola de 2° grau, um pequeno hospital, um convênio com o Serviço de Agricultura do Espírito Santo para o desenvolvimento da criação de galinhas. As atividades econômicas do padre se relacionavam principalmente à produção de café. Comprara para sua ordem uma plantação de café, aplicando aí técnicas mais avançadas. Os lucros se destinavam à escola de Venda Nova e à construção de uma igreja em sua paróquia no Rio. Mas seu objetivo implícito era persuadir os agricultores de que o uso de novas técnicas lhes proporcionaria maiores lucros. Da mesma forma, incentivou pequenos projetos como a instalação de uma pequena fábrica de telhas. Acreditava que, em vista do rápido crescimento do povoado, uma empresa como essa deveria ser lucrativa. Participando do capital necessário, contribuiu para que a empresa se firmasse e depois vendeu a sua parte.

À primeira vista, o desenvolvimento de Venda Nova parece uma verdadeira história de sucessos. Em geral, as propriedades agrícolas conseguiram manter uma boa margem de lucros, com base na saída do excedente da população. Isso se deu, em primeiro lugar, fazendo-se migração organizada para regiões exploradas ao norte do Espírito Santo e, a seguir, proporcionando às crianças, por meio do ensino médio e superior, condições de competirem no mercado de trabalho urbano. Além disso, graças à melhoria das comunicações com as áreas urbanas (que cresciam aceleradamente), também foi possível um aproveitamento mais intensivo da terra, como no caso da horticultura e da criação de frangos, que experimentavam um rápido desenvolvimento. Paralelamente, foi também possível a especialização artesanal à parte da vida agrícola: além da pequena fábrica de telhas, nasceram principalmente marcenarias e carpintarias. Também o setor de serviços emprega um número cada vez maior de pessoas: um crescente número de lojas, garagens, um banco, a escola etc. Graças a tudo isso, Venda Nova tem condições de reter mais gente. Nisso também tem influência a fundação da escola. Já não é preciso sair do povoado para estudar. Uma mulher, que há tempos está fora para a cidade, suspirou:

Sim, se tivéssemos previsto tudo isso há seis anos teríamos ficado em Venda Nova. Mas naquela época a escola não tinha nem uma pedra, e o asfalto estava muito longe de Venda Nova.

Neste contexto, além disso, deve-se mencionar que o número de vocações religiosas se reduzira quase a zero.

No entanto, foi justamente o sucesso de todas essas atividades, desenvolvidas aparentemente em benefício da comunidade, que provocou algumas conseqüências totalmente inesperadas. Em primeiro lugar, extinguiu a característica quase exclusivamente italiana de Venda Nova. Do médico ao agrônomo e ao gerente do banco e daí para baixo, um número cada vez maior de brasileiros vem estabelecer-se no povoado. A existência da escola e o rápido crescimento do povoado contribuíram para divulgar bastante a fama de Venda Nova como um centro dinâmico. De todas as partes chega gente pobre para tentar fortuna, de modo que a favela se transformou em algo tão familiar que já não se pode separá-la do povoado. A maior parte da população considera inevitáveis todas essas mudanças: “É que o progresso é assim.”

Ainda mais importantes são as tensões surgidas dentro da própria comunidade a partir do explosivo crescimento da avicultura. Como já observamos anteriormente, a produção de aves representava, em 1970, uma quarta parte do total da produção agrícola do município de Conceição do Castelo. Essa cifra pode ser talvez um pouco distorcida, já que o ano de 1970 foi um ano ruim para o café, mas é preciso levar em conta que essa quarta parte do total dos resultados econômicos se distribuía principalmente entre vinte e uma firmas de Venda Nova. Esse número, em relação ao total de cerca de trezentas firmas existentes dentro do próprio povoado, demonstra claramente que as diferenças nas receitas são imensas. Principalmente porque a população, em geral, era de opinião de que “aqui se acabou o café”,[ 16 ] surgiram relações muito tensas entre o grande número de plantadores de café e os avicultores. Embora não se tratasse de uma guerra aberta, o impacto que teve sobre os habitantes do povoado foi grande: “De um dia para o outro, tudo mudou: onde foi parar nossa solidariedade e a ajuda mútua de antes?” A essa pergunta, de certa forma um tanto retórica, pode-se responder melhor observando-se o desenvolvimento da cooperativa.

No primeiro número do boletim informativo O Cooperado (julho de 1970), o diretor da cooperativa escreveu:

Nós, os Dirigentes, lutaremos para que desapareça esta mentalidade errada entre os Associados, de que a Cooperativa é dos Diretores e os Associados são simples fregueses. A Cooperativa é sua, prezado associado.

No mesmo número adverte o gerente um contador proveniente da paróquia do padre no Rio que há um ano trabalhava na cooperativa:

…você, associado, que se afastou de sua Cooperativa, você que ainda não se inteira das modificações introduzidas em nosso esquema de operações, venha ver! Venha conhecer pessoalmente o Gerente da sua organização.

Aquele que interpreta esses apelos apenas como uma expressão do problema do crescimento quantitativo (de vinte e seis sócios em 1947 para quatrocentos em 1970), passa por cima dos problemas mais graves. Estes se manifestam claramente no número 11 do mesmo boletim, onde o gerente comenta as reclamações feitas por alguns membros:

Os caminhões da cooperativa são usados principalmente pelos donos de granja porque as suas cargas justificam economicamente o emprego desse transporte. Pequenas quantidades de café, ou também a produção dos galinheiros, não valem a pena. Para o transporte do café há outros meios. É verdade que os donos de granjas pagam menos pela ração [fornecida por uma pequena fábrica de mistura instalada em 1970] do que os outros sócios. Mas isso é porque os donos de granja fizeram os investimentos necessários à instalação da fábrica, embora a maquinaria tenha sido fornecida gratuitamente pela fábrica de ração [São Paulo].

Acusa por sua vez os cafeeiros de se negarem a vender seu produto à cooperativa. Se eles o fizessem, teriam uma organização poderosa. Por um lado, vemos aqui refletida a desconfiança da maioria dos membros com relação à cooperativa: “Trabalham apenas para os donos de granja”. E, por outro lado, revela-se a frustração da direção por não ter conseguido eliminar o comércio intermediário da venda do café. Como se chegou a este ponto?

É fácil responder à última pergunta. A princípio, a cooperativa era apenas uma organização de consumo que, além disso, tinha muito sucesso. Em poucos anos, a organização já contava com duzentos sócios e, em 1960, substituíram por um edifício maior o pequeno armazém construído pelos próprios fundadores. Os dirigentes, que eram agora os filhos dos fundadores, seguindo um pouco os conselhos do padre e de assessores agrícolas, consideraram a possibilidade de estabelecer um departamento de produção. Em 1961, essa seção foi instalada. A cooperativa introduziu com grande sucesso o plantio de tomates e batatas e incentivou melhorias na cafeicultura. No entanto, o objetivo mais importante, isto é, a venda coletiva do café através da cooperativa, não se concretizou de forma alguma. Os intermediários tinham nas mãos uma arma muito eficaz, da qual a cooperativa não podia dispor, que era o financiamento prévio da colheita. Além disso, os comerciantes locais representavam de fato os comerciantes de café de Vitória, que eram tão poderosos política e economicamente que de nenhuma forma poderiam ser sobrepujados. E quem dentre os agricultores não era muito amigo do comerciante-prefeito, ou do comerciante-vereador para conseguir assim que o Departamento de Obras Públicas fizesse pequenos trabalhos no sítio por pouco dinheiro? Até 1968 isso não trouxe grandes problemas para a cooperativa. A maioria dos agricultores estava associada à cooperativa através do armazém. Da mesma forma que em Alto Corumbá, a suspensão, naquele ano, da isenção dos impostos de venda para as cooperativas representou um golpe mortal precisamente para esse setor.[ 17 ] Em 1970 tiveram prejuízos e, enquanto isso, a maioria dos agricultores se dirigia aos demais comerciantes. Com efeito, esta foi a principal razão por que foi diminuindo o interesse da maior parte dos sócios.

Ao mesmo tempo, os plantadores de café tinham motivo de sobra para desconfiar das manobras dos dirigentes da cooperativa. Embora provavelmente sem más intenções, não se podia negar o fato de que foram estes que, junto com algumas famílias às quais estavam intimamente ligados, empreenderam o projeto de avicultura. Este projeto, aliás, era uma das muitas iniciativas promovidas pelo diretor da cooperativa, com o apoio do padre.

Numa colônia alemã vizinha a criação de aves tinha dado bons resultados, de modo que, em 1965, o governo concedeu subvenções para experiências nesse sentido. O relatório técnico foi muito favorável e, em 1967, a cooperativa fez um convênio com o Serviço de Agricultura do Espírito Santo. Apesar do grande apoio do governo, tornou-se necessário contrair dívidas consideráveis, e nem todos estavam em condições ou dispostos a fazê-lo. Ninguém naquela época podia prever o enorme sucesso que teria o projeto, e mesmo os participantes se deixaram levar por uma série de acontecimentos inesperados. Depois de certo tempo as galinhas poedeiras devem ser substituídas, de modo que, para garantir o fluxo de novas galinhas, os avicultores compraram e prepararam uma granja exclusivamente para a criação de pintos, Esse empreendimento se transformou numa sociedade anônima independente, sendo que os avicultores possuíam aí um total de 60% das ações, enquanto o agrônomo (designado para a plantação de café) e um investidor de Vitória possuíam 20% cada um. Para a preparação da ração necessária, tiveram de montar rapidamente uma fábrica que, embora por direito pertencesse à cooperativa, foi financiada pelos donos de granja. Cada vez com mais freqüência, os granjeiros se comprometiam em suas decisões com seus colegas de outros povoados; essas decisões se davam, inclusive, durante jantares mensais organizados alternadamente pelos diferentes povoados.[ 18 ] Assim, esses granjeiros chegaram a formar um grupo à parte dentro da comunidade, gerando certo ressentimento pelo sucesso que obtinham. Foi difícil, principalmente para o diretor da cooperativa, enfrentar as críticas. Por todos os meios, inclusive, a partir de 1944, como diretor do coral, ele se esforçara pelo desenvolvimento de Venda Nova, e agora se via cercado por sentimentos de hostilidade. Não se deu conta de que precisamente pelo sucesso do projeto é que a comunidade tinha deixado de existir. Ele e os seus constituíam um grupo com interesses próprios, embora estes ainda fossem representados através da cooperativa como interesses comuns. O desenvolvimento de Venda Nova pode ser considerado idêntico ao que se deu também, segundo Eric Wolf, na Europa:

Num mercado em rápido crescimento, a vila se divide em vários grupos de interesse, cada qual preocupado em consolidar e melhorar sua posição criando sua própria coalizão em torno de seu respectivo interesse. [1966:84]

A cooperativa, anteriormente o sonho dos mais velhos, não conseguiu resistir por muito tempo à pressão das forças do mercado. Em 1973 acabou por abrir falência. Pouco antes os granjeiros já tinham deixado a organização. O comércio de café se faz agora de acordo com o velho sistema. Atualmente, os granjeiros entregam seus produtos à mesma fábrica de ração que, em 1970, cedeu gratuitamente a maquinaria para a pequena fábrica de Venda Nova. A fábrica assegura preços mínimos, embora para consegui-los os granjeiros tenham perdido parte de sua autonomia:

Sim, claro que é bom um negócio como este. Mas nós nos vemos obrigados cada vez mais a contrair novas e maiores dívidas. Eu, por exemplo, tinha mais ou menos saldado a maior parte de minhas dívidas, quando a fábrica me avisou que eu devia substituir os galinheiros por um sistema de gaiolas, que é mais rentável. Agora tenho de investir muito nessas gaiolas. É verdade que a fábrica me ajuda na instalação e me concede crédito, mas a gente tem de fazê-lo de qualquer maneira.

Também na esfera pessoal tudo mudou. A maior parte dos parentes mora nas cidades. Em 1974, todos têm automóvel e vão com freqüência a Vitória fazer compras. “Mas, com todas essas coisas novas que há agora, nós gastamos muito dinheiro”, se queixa uma mulher, “e esse dinheiro é preciso ganhá-lo.,.” Também aqui se fecha o círculo.

Conclusões

Os italianos chegaram ao Brasil com poucos recursos. No entanto, em comparação com os lavradores autóctones brasileiros, muitos deles ex-escravos, sem terra própria e analfabetos, eles dispunham de maiores possibilidades. Eram de alguma forma alfabetizados e, além disso, contavam com uma organização social coerente que se agrupava em torno a igreja e dos grupos de parentesco. E, o que era ainda mais importante, eles tinham terras. Assim, dispondo desses recursos econômicos e humanos, aos quais se acrescentava a vantagem de serem brancos, era-lhes possível seguir determinadas estratégias válidas a longo prazo. Todavia, fazendo-se uma comparação interna entre as colônias, observa-se que havia grandes diferenças entre elas. No que se refere à disponibilidade de recursos, essas diferenças acarretam conseqüências de largo alcance e determinam, por exemplo, a medida em que os membros que deixam uma unidade de produção agrícola podem incorporar-se à sociedade urbana.

Vimos que a população de Venda Nova, baseando-se nos grupos de parentesco e na organização comunal que daí deriva, conseguiu seguir, ao longo dos anos, estratégias de sobrevivência mais ou menos eficazes para aliviar a pressão sobre a terra. Ao lado da formação de colônias em outros locais da região, medida que foi muito importante outrora, são particularmente os investimentos na educação que, ao mesmo tempo, mantêm a propriedade agrícola em um tamanho adequado e garantem para os outros membros da família um lugar relativamente próspero na sociedade urbana. Neste sentido, Alto Corumbá apresenta uma outra imagem. Para a maior parte de seus habitantes, o povoado representou o último recurso para manter-se como agricultores. Salvo algumas exceções, as famílias não conseguiram solucionar satisfatoriamente o problema da divisão da herança e, logo, a maioria de seus filhos acabou trabalhando como operários na cidade. A composição das famílias nos dois povoados e na cidade está intimamente relacionada com as condições econômicas. Quando se oferece a oportunidade, cada família mora em sua própria casa (na qual vive às vezes um dos pais ou então o irmão ou irmã solteira do marido ou da mulher). Isso pode ser observado inclusive no caso daquelas famílias de Alto Corumbá que não podem dividir a herança: as famílias vivem em casas na cidade onde se reúnem membros de várias famílias.

Focalizando-se especialmente os recursos disponíveis e as estratégias de sobrevivência baseadas neles, é possível não só chegar a uma adequada descrição da estrutura social interna de uma comunidade rural, como também desta perspectiva pode-se entender melhor por que os, migrantes vão ocupar um determinado lugar na sociedade urbana. Finalmente, essa aproximação permite também dissociar do argumento demasiado parcial da continuidade cultural o antigo debate sobre a importância da família extensa na estrutura social brasileira. Só quando nos concentrarmos sobre os problemas relacionados com os grupos de parentesco, chegaremos a compreender sua dinâmica e introduzir um elemento de medição das normas que estão ligadas ao parentesco.

[Texto publicado em 1998 no livro intitulado Dilemas e símbolos. Foi também publicado como “Estratégias de Sobrevivencia en dos Comunidades Italianos en el Estado de Espírito Santo, Brasil” Boletín de Estudios Latinoamericanos y del Caribe, 23:21-93, 1977. Copyright CEDLA, Amsterdam. Copyright da tradução em português Fundação Ceciliano Abel de Almeida, UFES, Vitória. Em 1978 foi publicado com este título em Estudos em homenagem a Ceciliano Abel de Almeida, p. 65-84, Vitória, 1978.]

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NOTAS

[ 1 ] Em 1971 a imensa casa-grande continuava ainda intacta, embora em decadência. As senzalas dos escravos, que antes formavam um quadrado com a casa-grande, tinham sido demolidas vários anos antes. O seminário estava fechado há algum tempo. Um ex-seminarista se queixou do sistema: “Era um sistema de exploração. De manhã trabalhávamos no campo e de tarde havia algumas aulas. A metade da produção era nossa, mas sempre, por coincidência, o seu valor era equivalente ao que tínhamos de pagar pelo sustento. Os padres sabiam que nossos pais não tinham alternativa”.
[ 2 ] Esta é a estimativa da população de Venda Nova feita pelos próprios habitantes. Segundo o Censo de 1970, a população do distrito de Venda Nova, que faz parte do município de Conceição do Castelo, chegava a 5.495 habitantes (Fundação IBGE, 1973: 250). Este número compreende alguns núcleos populacionais menores.
[ 3 ] Nossa Senhora Aparecida é a padroeira do Brasil. O local de peregrinação nacional é a cidade de Aparecida do Norte, situada no Estado de São Paulo. Aí está sediada essa muito popular emissora brasileira.
[ 4 ] Expressão empregada pelos informantes: “harmonia e união da comunidade”.
[ 5 ] Venda Nova raras vezes teve pároco próprio. Ainda agora ele vem de outro povoado.
[ 6 ] No direito sucessório não se faz diferença entre filhos e filhas.
[ 7 ] Vide nota 1.
[ 8 ] Isso pode explicar em parte a diferença no número de freiras e padres.
[ 9 ] De acordo com o Censo Agrário de 1970, dentre as 1.081 fazendas do município de Conceição do Castelo, há quatrocentas e vinte e seis na categoria de vinte-cinquenta hectares e duzentas e vinte e nove na categoria de cinquenta-cem hectares, enquanto trezentas e trinta e seis têm menos de vinte hectares. Estes números não se aplicam muito a Venda Nova. Grande parte das propriedades com menos de vinte hectares, por exemplo, se acha em outras regiões, mais estacionárias, do município. Aqui me baseio nas estimativas amplas, embora realistas, dos próprios camponeses. (Fundação IBGE, 1974:134 e seguintes).
[ 10 ] De acordo com o Censo de 1970, há cento e vinte e um casos de condomínio em todo o município. No entanto, entre eles há um bom número de herdades que ainda estão por dividir; além disso, aqui aparece novamente a diferença entro Venda Nova a as regiões mais estacionárias do município (Ibid. p.126).
[ 11 ] A família Padovani tem, respectivamente, doze, nove, sete e dez filhos. A família Faco, dez, dez e nove, respectivamente.
[ 12 ] Uma cidade industrial, em rápido crescimento, situada a cerca de cinquenta quilômetros do Rio.
[ 13 ] Criada, a conselho de um padre, por vinte e um agricultores (entre os fundadores não havia nenhum Faco e, dos Padovani, apenas a pessoa a que nos referimos antes). Cancelada pelo governo a isenção dos impostos para as cooperativas, em 1968, este sistema de colaboração se extinguiu.
[ 14 ] Porcentagens baseadas no Censo Agrário de 1970 (Fundação IBGE, 1974:183-223).
[ 15 ] Como eclesiástico, inclinava-se naturalmente para atividades que podiam ser organizadas pela igreja. No entanto, é do maior interesse o fato de que a igreja anteriormente era também o foco da vida recreativa de Venda Nova: o bar que funcionava depois da missa, leilões organizados durante as festas. Só a bocha, com ótimos campos cobertos, ficava fora da esfera da igreja.
[ 16 ]  Agora, em 1977, os papéis podem ter-se modificado dramaticamente. O café é outra vez “o ouro negro”.
[ 17 ] Vide nota 13.
[ 18 ] Os granjeiros eram mais ou menos obrigados a comparecer a esses jantares. Em todo caso, o pagamento era feito automaticamente pela cooperativa.

[Reprodução autorizada pelo autor.]

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Geert Banck é antropólogo holandês, professor aposentado da Universidade de Utrecht e pesquisador do Centro de Estudos e Documentação Latino-americanos (Cedla), de Amsterdam. Desde 1970-1 vem desenvolvendo diversas pesquisas no Brasil, em especial no Espírito Santo, resultando daí diversas publicações. (Para obter mais informações sobre o autor clique aqui)

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