Voltar às postagens

Excertos de Cantos de Fernão Ferreiro e outros poemas heterônimos

NOTA PRÉVIA DE RENATO PACHECO

Fernão Ferreiro é heterônimo meu, só pode ser heterônimo, tão diferente de mim que outro é. Nasceu Ferreira, mas tantas fez o moço, que exigiu chamar-se Ferreiro, “meu vulcânico nome,” ele me disse.

A ideia era recuperar 81 cantos em grupos de nove, com um medial, sinótico, a cada nona parada.

A inspiração, ai de mim, é poundiana, obviamente: “Neste lago cabem todas as poéticas,” diz-se no Canto Zero (grifei).

Mas a temática será, tanto quanto possível, nossa, desde que o leitor penetre no mistério. Se houver necessidade de chaves, um dia serão divulgadas.

Melhor, entanto, seguir o conselho de Ezra Pound: “Pule tudo aquilo que você não entende.” (Correspondência, 1934, apud Pound, Ezra, Poesia, Hucitec/Universidade de Brasília, 1983.)

Fernão Ferreiro me diz que nasceu em Colatina, ES, às margens do rio Doce, em 2 de janeiro de 1948. De sua cidade natal saiu, formado em História, em 1972. Subsiste dando esporádicas aulas de recuperação a heloísas ricas, e passa o resto de seu tempo andando pelas praias e morros da Grande Vitória (a qualquer hora do dia e da noite) e lendo poesia. Entre os clássicos, Homero, Dante e Camões. Dos modernos, Fernando Pessoa, Eliot, Manuel Bandeira e Jorge de Lima e, é claro, Pound. A leitura do Poema Graciano, de Reinaldo Santos Neves, e dos Cantares de Ezra Pound desencadeou seu processo criativo dos Cantos, cuja conclusão, inicialmente, estava prevista para de dois a nove anos, mas que, por pura compulsão interna, foram todos escritos de fevereiro a março de 1984, com aproveitamento de um que outro texto mais antigo.

Para mim, o tour de force revisitação de anima, verdadeiro curso de poética, sem diploma nem lauréis.

Vitória, 13 de março de 1984
R.P.

CANTO ZERO.

Agora tudo é novo e ao longe nos conduz.
Nesse lago cabem todas as poéticas.
Colombo ainda tarda a chegar e o Paraíso
— como tantos, mais um falso paraíso —
lá está, está lá, a oeste, no poente.
Do mar os capixabas caminham para Rondônia,
atravessar os Andes será um passo a mais.
Gilles de Rais foi o começo de tudo,
Mariscal em busca da pedra filosofal,
passou a procurar là-bas o que se achava em cima,
passou a procurar out o que se encontrava dentro.

Ê mundo mau, mundo luz, mundo louco.

Cascatas que cantam, pássaros no azul,
um pequeno verme se arrasta na pedra vermelha,
e estes cheiros esterqueiros são orgíacos:
não se abster, nem se demasiar, isto não.
Dormir com olhos abertos e sal na boca,
luzir até as raias do infinito,
alçar todos os céus em alto grito,
e correr em direção ao mar, ao nada,
em caminhada sem fim e sem começo.

Agora tudo é novo e ao longe nos conduz.
Importa pouco uma grande siderúrgica,
ou o maior porto de minério do mundo,
a busca é nova, a busca é de luz e de suor,
das idéias não pensadas, da arte minóica ou asteca,
nos livros de uma extinta biblioteca.
Ah! Se Jorge de Lima soubesse onde está sua Invenção
arrepender-se-ia de ma haver enviado.
Ninguém jamais a lerá naquele castelo antigo,
entre freiras diligentes mas avessas às letras.
— Se tudo está na Bíblia, por que poetar?

Entrei, a medo, no Castelo de Tiffauges.
Gilles de Rais recebeu-me à porta.
— Prelatti, Prelatti, este serve, é dos bons?
— Não, sire, é velho e galicoso.
Eis por que, Santa Joana, entrei nele e saí dele
sem que meu sangue servisse de pasto a mil demônios,
nem que, ao depois, virasse elixir-de-muita-vida.

Corri, à volta do profundo fosso,
buscava a mim mesmo, perdido em cismas,
e, ao chegar à ponte, encontrei-me pelas costas.

Ê mundo bom, mundo cão, mundo são.

Nesta viagem Cabral e Odisseus
esbarram na inflação e na dívida externa;
é preciso passar uma esponja em cima de tudo,
iniciando todas as cousas outra vez:
agora tudo é novo e ao longe nos conduz.

CANTO 1.

Ai de mim, Acteon, dilacerado por meus cães.
O palco está montado,
o espetáculo vai começar.
Através de meu camarote oitavado tudo vejo.
Sou espectador aqui, lá sou ator,
afrontado nas abas do pomar, tão ofendido fui,
quando os cães me dilaceravam as vísceras,
eu, Acteon, transmudado em alimária, gritava:
— Valeu a pena, pois vi a deusa nua.

O barco de vergalta se apresta,
direitamente caminhando: Austrália ou Marte?
Com mar de feição, matalotagem muita,
encontro todos os meus velhos conhecentes mortos,
pairando no espaço, sem dimensões.
Debuxo-os quanto o posso, tais os quero,
bem gasalhados e falantes, embora não lhes oiça as vozes.

A cainçalha corre pelas ruas (Bagdá, Moscou ou Nova Iorque?),
talvez Vitória ou Tóquio.
“Seu” Ernesto Cavouqueiro rebenta a pedra, tiro certeiro,
enquanto Benjamim Calceteiro a trabalha.
Giromantes, rabdomantes, quiromantes, nigromantes,
cartomantes colhem seus vinténs, tostões, cruzados.
A maçaroca é grande. Andejas filhas de Belial
aviam chás, acendem incensos, dançam nuas.

No meu camarote oitavado
mais nada vejo.

Sono, sonho, alucinações, pios e gritos,
uma cela escura e calor infernal, da caldeira
que ferve as iguarias da tropa.
Meu sangue ferve, minhas células viram água,
Vergílio e Dante aqui nunca estiveram,
neste recôndito da terra de homens bons.
Não há morte, apenas uma passagem,
e tudo começará de novo, por outra forma.
Recriemos a rosa à nossa imagem e semelhança.
Eia pois, as palmeiras do Porto jamais foram cortadas,
estão lá, altaneiras, bailando ao vento,
refeitas em sangue da toada do Arceniro:
miragem sim, mas afinal o que não é ilusão poluente?
Cem anos, mil anos, isto é nada
diante da imensidão infinita de um dia só.

Ai de mim, Acteon, dilacerado pelos cães,
em cervo transformado porque vi Diana ao banho,
os cães, os cães danados, eram meus,
e passo a passo me seguiam obedientes.

Vagarosamente o pano cai, a peça finafinda,
mas o jogo continua em minhas veias,
uma pequena chama se apaga, o fumo sobe,
ontem não é mais, o dia nasce.

CANTO 17.

Quando cheguei a Santa Rita dos Impossíveis
a vila estava em trabalho difícil de parto:
todos batiam pregos em seus barracos,
e o grande manguezal, virgem, deixava-se invadir.

Aconteceu que o futuro se abriu perante mim
e vi dragões a sair das águas, e vi faunos
correndo pelas estreitas passarelas de madeira,
e disse isso aos grandes do lugar,
e sucedeu que ninguém quis escutar;
e continuando, lembrei que o homem é bicho,
e as mulheres vestidas de tons fate-favres gargalharam,
entretidas em orgias sexuais e banhos de cheiro.

Quando, humilhado, deixei a povoação crescente,
falou-se em fatalidade, e pus meu rabo entre as pernas.
Nuvens negras cobriam a terra toda,
envolta, agora, em silêncio e oblívio.
Era o fim: os dias estavam acabados,
voltei a mim, na praia, olhando para o mar,
vibrações de ouro, energia na corcova de camelos,
a lua cheia arrasava quarteirões e corações,
o terno de Reis de Fundão ia chegar.

Procurar o covil do lobo, eu, não-caçador,
estou sempre preso ao universo verbal dos outros.
Gente, gente, ó xente, como se dizia antigamente,
poesia tatibitante de aprendiz, porém com garra.
(Anotar o nome de todas as plantas do jardim.)
Chuva de verão, cães que latem, os gritos são de gente,
os pios são de ferozes pardais importados.
Vento, eletromagnetismo, gravidade, vibrações de ouro,
estou só no mundo, mas que me importa?

Pois…

CANTO 18.

A casa, invadida por guaiús, fechou-se em copas
e mulheres sem dentes riem, descalças,
tiraram a pele, rasgaram a carne e saíram nuas.
Cortaram todos os nós cegos, abriram todas as portas,
cresceram e desapareceram, recolhendo-se a sua insignificância,
beijaram o pão, dando-lhe nova santidade:
a juba do leão se eriça, pêlo a pêlo.

Meu pai, Simão Macabeu, oito anos reinou,
e num banquete, à traição, o genro o matou.
Eu, João, cerquei Ptolomeu logo acima de Jericó,
minha mãe refém me impediu de atacá-lo,
não por ela, que me exortava à luta, mas por meu amor.
Eis-me, agora, batido por Antíoco, e a Festa dos Tabernáculos…
Esta necessidade infinita de dar nomes aos bois,
alopecia, que será? Coato estou. Não nasci aqui,
fui renato na Ilha de Santa Maria do Atlântico,
território que criei feito de pedra e luz,
onde reino soberano na imaginação.
Já capixaba não sou: santa-marino ou atlântico,
capixaba não mais, capixaba nunca mais.

Lá sou pássaro e gaiola para agradar-lhe,
sou prisão e prisioneiro, tecendo e entretecendo,
dentro de mim, estradas de sonho, caminhos de fuga,
consórcios multiindividuais de olho único
montando a fábrica do amanhã, a usina do futuro.

(O poeta pede esmolas no Banestes,
a meninada se encontra com o mar,
vamos aos locais do vestibular,
contingência, aqui-agora, não mais.)

A gaiola se extingue dentro do pássaro
e acoplo minha ilha a uma estrela,
atraído para a luz, em luz virado,
não ouço sons, nem vejo cores.
É um fantasma a casa do futuro,
cheia de cegos, surdos, mudos, aleijões,
vou fazer tudo de novo, de novo enfim,
e morrer junto a Antíoco, frente aos partas,
serei faquir, dervixe, marabute, serei pobre,
idiota-sábio, buscando o impossível, amando o oculto,
e como tal a rasgar todos os véus, eis a beleza nua,
ela esteve em minha porta, eu a matei.
Vitória: eis-me chegado, enfim, a Trapisona!

CANTO 20.

Astronauta sem nave e sem chave
viajo para dentro de mim mesmo.
E, através de milhares de anos-luz,
ingresso no cerne de cada átomo
em busca de saber feito de mim.
Nem bandeiras, nem marcos que fincar.
A terra é minha, não preciso provar.
Nenhuma tecnologia avançada, nem fotos
nem gemidos e suspiros do fundão.
Há a vida, a vida, sempre vida
que gira e dança e morre e nasce e vibra.
A viagem não finda, sem verbas nem prestação de contas.

Astronauta sem nave, viajo para dentro do universo,
e ingresso em mares interiores, mediterrâneos,
encontrando mil espelhos dentro de mim,
ultrapasso luas incandescentes, sóis e cometas,
nas praias lanço redes e pesco flores
e busco lontras e encontro amores.
(Amor velho, cada vez mais novo.)

Que música é essa? Que luz, nesse labirinto,
absinto, íntimo, inconsútil, inviolado?
Casa que se quer da gente, onde o céu está,
casa refúgio de tênues ondas de energia,
em pequenino jardim de muitas flores,
flores que jamais serão frutos,
mas serão versos brancos, assépticos, puros,
imaculadamente pecadores, sem odores.

Nessa procura sem-fim de porto-enseada
que fica lá no fundo, bem lá dentro,
e cuja derrota me escapa pois não tenho mapa,
ou nunca tive o portulano, guardado alhures,
e o canto chega ao fim cheio de luz.
Catai, Catai, em ti a música entressonhada,
em ti, esperança e alegria, o nauta chega,
aporta o barco, e em terra recomeça a caminhada,
passo a passo, para um nada, para um tudo.

CANTO 37.

Nada fazer, não interferir. Apenas contemplar.
O povo é bom e faz pão até de inhame, e constrói
suas casas sem precisão de banco da habitação.
O que atrapalha é o Governo, quanto mais forte, pior.
Exaltar a Mãe Joana e a Mãe Benta, beber só água,
viver na beira do abismo, dando salto triplo,
comer flores do campo, melado com farinha e goiaba,
uma fogueira, camisa e calça, sandália franciscana,
tecer em minha roca, no quintal, fiar o fuso.

Hipogrifos me levam pronde eu quero,
em ronda pelo céu, passeio pelo espaço,
de novo, nos descampados de Órion,
no teleférico do céu eu me divirto.
O dragão, arco curvado, o bote arma,
olha-me, olho no olho, cospe fogo e salta,
mas não me pega, eu canto, pinto e bordo,
eu pulo, saio correndo, vou para Pancas.
(Cartão de crédito só é bom quando viajo.)

Nem anapestos, nem espondeus, nem iambos, nem troqueus,
Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac
pode ser alexandrino perfeito mas não me tenta.
Talvez a redondilha: o anel que tu me deste,
detesto anéis, fazem-me cócegas nos dedos,
e esse anel era de vidro e se quebrou há quanto tempo?

Deixar a água fluir para a baixada,
deixar o povo viver sem violência.
Inventar palavras novas para uso próprio:
Martingalo, venetracei na militeca simoluz,
enquanto assim eu sonho, o pão virou carvão.

CANTO 47.

É muito difícil, quase impossível, amar o próximo.
Que dura missão, Senhor, nos destes vós.
O doente sabe muito mais que o médico,
onde reclinar a cabeça, quando lhe dói.
As galinhas, nas compridas gaiolas de granja,
aceitam a ração, bebem da água,
mas sentem uma saudade antiga sobrelasasas,
principalmente quando o gavião passa.
Quero que a terra arda, eu tocha viva, sarça ardente,
alumiarei estradas, abrindo alas para ninguém.

E agora, José? Pergunto em pânico.
Arcas sem tesouros, noites indormidas, hortos sáfaros,
jóias falsificadas, frutos verdes, espelhos que não brilham, reis destronados,
castelos sem guarnição, naus decapitadas,
como me situar, se os parâmetros fugiram?

A catadora de lixo, sem saber, apenas intuindo,
dá um grand jeté en avant e suas pernas variceladas
se abrem no ar, na extensão maior: suspense na terra,
ela fica suspensa, no espaço, eternamente,
olhando-nos, aqui em baixo, formiguinhas,
nós, dando pulinhos, em balé ridículo, sem juízo.

Gentes de diversas crenças e descrenças,
se pensarmos um pouco, um minutinho só,
dar-nos-emos as mãos e cantaremos novo salmo,
jogando fora, por decisão unânime, sem ordenação do reino,
todos os livros sagrados de aquém e além-Paraíba.

O semeador semeia palavras, poucos entendem,
pois a maioria não tem onde construir a toca,
e seus tijolos se transformam em bebês desidratados.

O poeta, touro com cabeça de urubu, voa
e busca Ísis; ela, o segredo, o manda
à Esfinge sábia, que o remete a Osíris,
que, sem sair de cima do muro, o devolve a Ísis.

Não vou, mas com três triângulos refaço o infinito.

CANTO 49.

Estes cantos estão sendo intuídos
por arquiteto humilde e heterônimo,
buscando, com os sentidos, entender algo.
O pai do poeta, era uma vez, embriagado,
madrugadinha, chega a casa, carregado por amigos.
E o quarto amplo se torna cela escura,
cilícios fétidos se acumulam em seu corpo,
morcegos voam, em debandada, em suas veias,
dormiu vestido como um que vai para o túmulo.
Duas vezes isso aconteceu, depois, nunca mais bebeu.

Os tibetanos século passado, por engano,
respeitosamente pondo a língua para fora (é correto),
receberam muito bem os ingleses armados,
confundindo a Rainha dos pounds com a deusa Tara,
a regente e salvadora do mundo, nosso mundo.
E os pérfidos filhos de Álbion ficaram encantados,
e convidaram, gentlemen em qualquer latitude,
os lamas vitoriosos para o five o’clock tea.

Um advogado do diabo muito me serve,
abre porteiras, tira os paus da estrada,
evita que me afogue em copo d’água.
Remar, remar, gentilmente na baía de Vitória,
subir a rua Sete, visitar o velho pai,
a vida é breve, é sonho, já vou indo, tchau…

No balanço final de uma vida inútil
as perdas eram maiores que os lucros,
e o poeta, tradutor de si mesmo, em déficit,
não consegue expressar em língua de gente seu sentir.

O vento muda, não é mais nordeste,
os cães de guarda ladram, os carros passam,
as folhas secas choram lembrando o verde que já foi,
e na festinha suburbana de aniversário,
“Seu” Argentino toca violão e canta:
“É meia-noite, o galo pinica o pinto,
o pinto sai da casca, fazendo re-re-quén-quén…”
e o rapaz, exaltado, desafia o companheiro:
— “Taí, ô cara, eu quero ver tu dar nó
em pingo d’água, ou peneirar fumaça,
estar em Cavalinho e Acióli ao mesmo tempo,
gastar mais do que ganha, e ter poupança.”

E o galo pinica o pinto e a vida lassa.

CANTO 62.

Houve cantos de abertura, cantos mediais,
e agora canto os cantos do litoral da mata da chegada.
Voltarão as andorinhas, ou voltarei eu?
Elas é que voltarão se os homens deixarem.
Eu, talvez, mas então continuarei amando o povo simples,
tentando ser honesto, buscando o que me parece verdadeiro, ou?
Presos enlouquecidos jogavam, pelas grades, fezes nos passantes.

Minha agenda para futuras obras: consertar o portão,
pintar a casa, reforçar a laje de meu refúgio,
fazer quarto no quintal, cobrir a varanda, xi!
Nasci nu e vou remanchando: poluição siderúrgica?
Eu, dono do vento, senhor das luas de Júpiter,
inventor do menos pesado que o ar, eu tenho
a secreta esperança de subir ao Mestre Álvaro
e lá de cima olhar para baixo sem mais nada almejar,
apreciando coisas que só de lá se vêem:
relâmpagos do dia em que Cristo nasceu,
trovões que só vão trovejar no dia final.
Presos enlouquecidos, pelas grades…

O menino nordestino de cinco anos implúvios
ao, pela primeira vez, ver o temporal, grita, surpreso:
— “Mãe, o céu está furado… Está vazando…”
O vendedor esperto aproveita a onda
e imitando o velho guerreiro anuncia:
“Olá, Dona Teresa, esta pamonha está uma beleza.”
Bom produto natural, atesto à fé de meu grau de poeta.
O motorista queima todos os cabelos da perna
ao calor do motor do Fenemê, e o velho italiano,
apontando-lhe uma garrucha, “meu repente”, diz:
— Estava com muita vontade de te ver,
agora que te vi, estou “estufo”.
Presos enlouquecidos, pelas…

E centenas de diabos bem treinados
preparam, para poeta, poetinha, poetastro algum botar defeito,
um grande comício hoje, à meia-noite, na Praça 8:

“Pela manutenção das injustiças.
Pela poluição de terras, mares e ares.
Pela construção de pirâmides sem finalidade.
Pela devastação de matas atlânticas e pacíficas.
Pela pena de morte a homens, baleias e beija-flores, etc.
Pelo aumento do espaço para os mortos.
Pela guerra bacteriológica, química, nuclear.
Pelo fim da incômoda espécie humana.”

Valei-nos, Nossa Senhora da Penha, com todo Vosso poder!

CANTO 71.

Eu não nasci em “Urália,” não sou pintor.
Meu ouvido não percebe semi-sons. Sentidos laços
e lassos, não danço nem marcho, que sou?
Mi estas sola, sen majstro.
De fato, não quero mais guru, nem busco o pássaro azul.
Minhas experiências passadas são mal representadas,
ancorei meu barco muito aquém da Taprobana,
nada de errado em mim, apenas um certo calor interno,
que não pode ser reproduzido em máquina copiadora
xerotérmica (seca e quente, se lhe interessa saber).

Depois que se chega lá, o interesse morre,
não ter apego a nada, equilíbrio e tolerância,
o ruim é que não são só palavras, você tem de vivê-las.
Tomando chá com bolinhos, Proust recriou
todo um imenso território perdido de tempo feito,
é futuro quando me disponho a lê-lo.
Em meditação, meu ódio se dilui, homeopaticamente,
vejo todo o passado, antevejo algumas fímbrias do futuro,
e ouço Deus dizer: “Cuida-te, Albert Einstein…”
e a bomba atômica caiu lá no Japão.

Discutir agora a responsabilidade moral do cientista
é voltar ao chavão de que todos os poetas são loucos.
Discutir agora, meio-dia, panela no fogo, barriga vazia,
discutir agora, quem há-de? Pois Dante e Einstein
são cidadãos acima de qualquer suspeita.
E céu, inferno, purgatório se confundem
numa grande bolha de ar, balão sem gravidade,
um só buraco negro de massa total e concentrada.

É quase o fim: o poeta farricoco tira as vestes,
entrega a trombeta ao zelador da Irmandade,
e, com fome e sede, nu como nasceu, caminha para o ponto Ômega,
dá entrevista e ouve um canto tão triste, o seu.

CANTO 72.

Quem é você? A repórter me pergunta.
Quem sou eu? Me descubro a repetir.
Nasci em Colatina, às margens do rio Doce,
mas eu, Fernão Ferreiro, não existo.
Minha família é grande, entre nobres e plebeus,
heróis e santos, pobres e ricos, contam-se milhões.
Sou primo longe de Francisco e Gandhi,
da casa de Buda, Confúcio e do Cristo,
primo primeiro, tanto de Maria, a louca,
quanto de Tiradentes, sua vítima,
irmão eu sou desta velha que carrega tábuas,
e de uma legião sem conta de humilhados,
ovelhas negras excluídas da História.

Entre os bichos são irmãos meus o João de Barro,
e também o Martim Pescador, cães, gatos e sapatos,
cobras e lagartos, escaravelhos, andorinhas;
das plantas sou parente da sábia rosa,
sou unha-e-carne com o sal-gema e o granito,
descendo do primeiro átomo, procuro o infinito,
nestes cantos em série produzidos (feito o protótipo).

Tenho medo de morrer agora, medo de 1984,
tenho medo de outro verão tão quente,
tenho medo do anunciado fim-do-mundo,
entre sonho e loucura, entre demônios,
na estrada de Damasco, batendo congo,
esquinando a esquizofrenia assumida,
eu deste mundo não sou, quem sou eu?

Sem tugir, nem mugir, eu não existo,
que pássaro é esse que tão triste canta?

CANTO-SINÓTICO VIII.

Que pássaro é esse que tão triste canta?
O tempo cura todas as doenças,
e se não cura, a gente não está aqui mais para saber.
Outra vez se defende uma calma heterodoxia.
A morte vem, os cantos vão deixar de fluir,
e a Campanha da Fraternidade, 84, chega às ruas.
O Brasil, será que o Brasil se salva?
Talvez centauros andem pela cidade.
As Nações do Mundo, será que elas se salvam?
Lição sobre o belo poético: a poesia é energia.
Ler, com atenção, tôdalas Escrituras ditas Sacras.
Existe vida no além? Quem o sabe? Eu creio.
Um dia haverá um só, um único buraco negro.
Fernão Ferreiro dá sua primeira e última entrevista,
jamais publicada. Enfim, a Amada se prepara para as Bodas,
chega-se ao penúltimo canto (81) ainda inconcluso,
só haverá um último momento fatal,
e que pássaro é esse que tão triste canta?

[In Cantos de Fernão Ferreiro e outros poemas heterônimos, poesia, FCAA, 1985.]

———
© 2001 Texto com direitos autorais em vigor. A utilização / divulgação sem prévia autorização dos detentores configura violação à lei de direitos autorais e desrespeito aos serviços de preparação para publicação.
———

Renato Pacheco foi importante pesquisador da história e folclore capixabas, além de escritor, com vários livros publicados. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

Deixe um Comentário