E vós rei animal e do menos: coisas várias. Rei? Não sei. [Jorge de Lima] |
I
Deste frágil território
Eis que sou constituído,
lançadas minhas raízes
na terra chã que me envolve.
Cultivar há o que cultivo
no ócio deste hectare.
Não é frágil território
chegada a semeadura.
Este o lugar escolhido
na cova em que me procuro.
Fechar pois com um enigma
os olhos que estão inertes.
Germinar é o que me custa
o preço desse abandono
de que me faço semente
sem nenhuma ruptura.
Deste frágil território
eis que sou constituído,
no muco desta desdita
a que me encontro resumido.
Vivo. E pois como vivo,
sigo até onde o caminho
é planta e chão de que cuido
alheio a toda contextura.
Eis-me aqui redivivo
neste frágil território.
No ócio deste hectare
chegada a semeadura.
II
É um país incontido
vazio sem quase medo
de contorno insano e vário
onde faço itinerário.
Nem há montanhas à vista
por mais que se as procure.
Oh louca e vã geografia
de tão estranha sesmaria!
Caminho pelos limites
do horizonte sem medida.
Não custa por desencontro
não chegar a qualquer ponto.
Nem é outro o meu desejo
de que farei exercício.
Neste país inconstante
eu ser meu próprio habitante.
IV
Edificar é pois preciso
este lugar em que habito.
As águas que me rodeiam
navegando qualquer rio.
Este pomar encantado
não quero que me sombreie.
Há mortos sob esta estrada
em que pisar não preciso.
Há suor em meus cabelos,
há pra sempre esse domingo
em que me sinto reprimido
por ser o único dia.
Eis a casa de fazenda,
o pátio de que procedo,
paredes nuas e o medo
que me fez mudo e cativo.
Ali o gado reunido,
a bota de pisadura,
o arreio alheio e o grito
dessa rês amealhada.
Aqui esta só caminhada,
cal brotando das paredes;
trigo e sede muito embora
o tempo esteja resumido.
É tudo como parece
o lugar que eu habito.
De terra, verde e salitre
curando minha ferida.
VII
Encontrar é que é o bastante.
Seja pois feito esse encontro.
Há o silêncio e há o tempo
não vês que se aproximando?
Há pegadas esquecidas
no chão em que me abandono.
Foram passos, foram risos,
foram manchas de vestido.
Foram lágrimas e o sinto
que foram por tal motivo.
IX
Morto era tudo o que havia,
curada a mão raiado o dia,
hirto o corpo abandonado.
Morto de morte e de frio,
morto e não, morto esse dia,
que morto resto soterrado.
E o tempo reconstruído?
Morto o tempo e consumido,
levai-o que morto está.
Levai-o pelas fronteiras
deste chão e das estrelas,
que a noite não morrerá.
Não morrerá este aviso
nem o fim de que procedo
e findo sem me prover
de choro, suor e medo;
dor infusa em mim vazia
de morte em tudo o que havia.
XI São coisas por refazer:
o pão de milho e centeio
a escorrer de minha veia.
O chão a que me ofereço,
corpo exausto, frio o berço
do sangue e dor deste pão.
Coisas são por refazer:
a bênção de tua mão,
o silêncio escuro e bom
em que a teu lado me aqueço.
E o vulto subindo a escada?
Traz insone a face, e o braço
com esse rosário entre os dedos.
Duas lágrimas de seda,
e colo branco ensangüentado.
Que estás fazendo ao meu lado?
XIII
Tarde vem amanhecendo.
É noite e porque o sinto
escoa cego este beijo.
No espaço em que me antevejo
e vejo, recolho um vulto:
minha mãe que estás fazendo?
Beijar esse azul de lágrima
é tarde — não quero — todo
o tempo te consumindo.
Já não te espero acordado.
Sinto frio e medo, é tarde.
Que estás fazendo ao meu lado?
Conta uma história de fada.
Prende a trança do cabelo.
Há um lugar prateado
no país deste segredo.
Há raízes me prendendo
na casa desta fazenda.
Há riso e vaga essa escada
que a morte vinha tecendo.
Há curral determinado
para os passos desse gado.
Porteira inclusa no peito
com que me deito a teu lado.
Umbral de porta e de escada
onde um velho está cosendo.
Cosendo do mesmo beijo
da morte deste desejo.
XVIII
Sala de amável visita
corredor em que te percas
cozinha e esse só vizinho
a mesa é de cabeceira.
O quarto pra companheira
porão de arreios e o seio
alheio em que me refaço
e passo. Sobre o teu peito
vindo a noite o filho é feito.
Finda a morte nesse abraço.
XIX
Dancemos de nossos pés
o vôo rítmico e só.
Raízes por entre o chão
não poderão nos deter.
Nem ver os olhos verão
que por reter-te eis que és
enfim presa desses pés.
Dancemos de tal prazer,
canto, passo, espaço e vez
do suor dessa exaustão
a escorrer de tua tez.
Tenhamos tenras as asas
pra bem longe nos alçar
alada a mão desse orvalho
com que banhar deve haver
em nós todo amanhecer.
XXII
Cativa salamandra
em meu peito inconsistente
com que procuro esse muro
e me perco no entretanto.
É a lebre de minhas pernas
a correr em campo aberto;
raposa vã de mim mesmo
sou presa e sou cão de caça.
Sou tudo o que me pareça
e não pareça esse tudo,
enigma assim aparente
escama de tal serpente.
O galo branco despertado,
o alce, bico dessa ave,
o salto e nenhuma queda.
Nem abrigo em que me atrevo
a ser tudo quanto devo.
Cativo e livre este peito,
sou por mais que não o aceite
o animal de que fui feito.
XXIII
Assim nascido assim fiquei
no campo e tempo em que vivo
aqui no país d’El Rey.
[In O país d’El Rey & A casa imaginária, de Roberto Almada, Vitória: Fundação Ceciliano Abel de Almeida, 1986.]
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Roberto [Leite Ribeiro] Almada, poeta, nasceu em 22 de junho de 1935, em Juiz de Fora, MG. Morou no Rio de Janeiro, onde trabalhou como roteirista de fotonovelas, adaptador de teleteatro e redator. Casou-se em 1960 com Vilma Paraíso Ferreira, em Guaçuí, ES, onde atuou como professor. Alguns anos mais tarde transferiu-se para Vitória. Mudou-se para São Paulo, mas veio a falecer em Vitória a 22 de março de 1994. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)