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Excertos de A poesia a(l)mada: uma reflexão sobre o país d’el rey & a casa imaginária

O Estado do Espírito Santo e o de Minas Gerais não têm seu encontro marcado só na vegetação do Pico da Bandeira. No nível do Reino Mineral eles vão além dos limites: fundem-se. As montanhas mineiras entram na quotidiana lufa-lufa dos trens de ferro, pelas terras espírito-santenses adentro, antes de atravessarem o Atlântico e as águas do mar fazem ondas no povo mineiro, alvoroça-o a ponto de, nos períodos de férias, ele amorenar as loiras praias capixabas.

Roberto Almada, enquanto pessoa (como poeta é outra história) tem Minas e o Espírito Santo no seu eu.

Embora descendente dos Barões do Café do Vale do Paraíba, raízes genealógicas de que se orgulha a ponto de o Doutor Luiz Busatto o enfatizar (quando da entrada do Poeta na Academia Espírito-santense de Letras) ele se vê como fora de casa, perdido por entre as montanhas aqui da Manchester (sua terra natal), as de Rosário Fusco e mesmo entre as de Cláudio Manuel da Costa e de Alphonsus de Guimaraens. A plenitude de seu lar, seu paraíso Eterno “enquanto durou” só pode vivê-la caminhando em direção ao mar.

E como Poeta, ele é Mineiro ou Capixaba?

Não obstante as expressões “Literatura Grega, Latina, Francesa, Brasileira, escritor nordestino, paulista, carioca etc.” legitimadas pela História, um grupo há que rejeita a aplicação do adjetivo pátrio aos estudos literários, dizendo que a literatura é em si mesma, universal, não se deixa marcar pelo telúrico. Por corolário não se pode então falar também de filosofia ou de filósofo grego, alemão, italiano.

Pelo menos duas considerações podem ser feitas a respeito e a primeira é esta: o poeta pode ser baiano por ter nascido (como cidadão e/ou como escritor) na Bahia. Assim se tem então também a obra do espírito-santense, do cearense, do belo-horizontino, feminina (criada pela mulher) e até guei, por que não? Basta explicar o sentido do que se diz. A segunda, afogueia mais. A temática, a simbólica, o cenário (no qual os acontecimentos se dão), o caráter (físico, psíquico, religioso) dos personagens, não são, por exemplo, alguns dos componentes constitutivos da literariedade? E neles não se pode ver o selo de um dado, de determinada região ou mesmo até daquele gueto assinalado? E no poema, no romance etc., não há como separar o literário do não literário. Cada elemento é parte integrante do todo. Tudo isto sem se falar do nível da expressão.

Robert Ponge em seu texto “Literatura marginal: tentativa de definição e exemplos franceses”, (1) no título já põe o adjetivo restritivo. Mas ele desce ainda mais ao dizer de “literatura de mulheres em revolta”, “literatura proletarizante”, e literatura dos hippies, beatniks, drogados, misfits, mendigos, homossexuais e usa um etc.

Depois da publicação de A Tradição Regionalista do Romance Brasileiro, parece até desnecessária a discussão sobre adjetivos adjuntos ao termo literatura. O valor de suas conclusões (com toda vênia à inquestionável cultura do Doutor José Maurício Gomes de Almeida) cresce por se tratar de Tese de Doutoramento e orientada pelo Doutor Afrânio Coutinho. Só o fragmento abaixo é suficiente para pôr termo à discussão:

A única exigência de validez geral para que uma obra possa ser considerada a justo título regionalista é a da existência de uma relação íntima e substantiva entre sua realidade ficcional e a realidade física, humana e cultural da região focalizada. O modo como na prática este relacionamento se efetiva vai variar de época para época, de escritor para escritor, de obra para obra.(2)

Fica ainda mais frágil a defesa da tese de a literatura ser em si mesma, para a qual não cabem, assim, adjetivos setoriais como capixaba, mineira, paulista, feminina, se pensada a partir da Estética da Recepção enfatizada por Hans Robert Jauss, já que ele põe o leitor como foco de exame do fenômeno literário. Então,

…o significado da obra depende totalmente dos sentidos que o leitor deposita nela. Também seu caráter estético depende do destinatário: se este não o evidencia como obra de arte e busca aí outro tipo de experiência (uma informação, por exemplo), o texto perde sua qualidade artística.(3)

Posto como co-autor, o leitor intensifica o vigor dos adjetivos setoriais, em razão mesmo do caráter de cada um: do artista, do religioso, do político, das faixas etárias, da região, do país, do crítico. Este pensamento não desterra, em absoluto, a universalidade da literatura. Trata-se de cosmovisão pela qual se vê o universal no particular e o particular no universal. Nem há como negar que a universalidade em si é uma abstração. Ela existe na concretude, no “chão dos homens” e este chão de cada um tem sua forma própria.

Aí tem seu espaço o circuito

Autor
         Leitor Obra

no qual pelo autor passa a obra em cujas entranhas traz as marcas dele ao mesmo tempo que tem sobre ele uma atuação imensurável. O próprio ato de escrever é um renascer em cada frase, oriundo do trabalho com o referencial. E o leitor (primacialmente o crítico) não co-opera só no fazer da obra. Ele faz e faz o autor fazer-se, queira ou não. Ainda que determinado Dramaturgo, Poeta, Romancista ou Contista rejeite de forma radical o que vem do leitor, não pode mais ser sozinho. Seu texto o leva em seu bojo e percussão. Queira ele ou não, seu eu social se expande na e pela linguagem. Também dele se podem dizer os versos que dos reis poetou Camões:

…por obras valerosas
se vão da lei da morte libertando(4)
Quando escreve Fernando Pessoa:

Da mais alta janela da minha casa
Com um lenço branco digo adeus
Aos meus versos que partem para a humanidade,(5)

não está dizendo de uma separação radical, até Deus (a-deus), com reencontro marcado só para o além. No mesmo poema há versos nos quais ele se põe:

a flor não pode esconder a cor
nem o rio esconder que corre,

e, ao término, o leitor tem este mimo de permanência:

Corre o rio e entra no mar e a sua água é sempre a que foi sua
Passo e fico, como o Universo.

Pensada a questão assim, o circuito exposto não é fechado. Ao contrário, a obra se faz num processo na medida em que o autor, na nesta mesma e nas posteriores (pois em cada criação ele e ela são outros) e em especial o leitor do agora e da sucessão dos tempos, fundam a historicidade. No tecido dessa tríade se instaura a dialética de cuja fiada a síntese é a ponta. Porém não há síntese quando a tese e antítese são radicalmente opostas. Uma tem de ter algo da outra a fim de a composição poder acontecer. A obra atua como tese. E antítese. Mas é também síntese do autor, leitor e referencial que têm os pés mergulhados no solo donde emergem. Aceitar que Veritas est adaequatio rei ad intellectum é defender o impressionismo, de há muito sepultado. Não há, por outro lado, como argumentar a favor do princípio da adaequatio intellectus ad rem pelo fato até de a res ser fugidia na sua objetividade e enquanto transformação. Não há, então, uma res litterata fria, posta fora do espaço e do tempo de sua criação e de seu leitor.

De tudo se deduz não haver absurdo teórico se se afirmar que a universalidade da obra de Roberto Almada não é tributo imperativo de se lhe conferir também o adjetivo “capixaba” ou “mineiro”. Mas essa proposição fica adiada para o momento devido. A teorização usada no desdobramento dos passos do estudo, sem preocupação de enquadrar o corpus em posições preestabelecidas, resulta da convicção de que qualquer análise feita a partir de juízo de valor antecipadamente formado empobrece ainda mais a leitura. A obra é que deve provocar as reflexões teóricas. No primeiro momento o flash incidirá na produção poética publicada em O país d’El Rey & A casa imaginária. (6) Depois serão examinados os contos, crônicas, a dramaturgia e também a crítica literária do Poeta em questão. Simultaneamente se levantarão os possíveis inéditos para publicação em separado.

Deste método não pode, porém, ficar a impressão de que se retoma aqui o ultrapassado pensamento segundo o qual os gêneros e subgêneros literários se fecham em compartimentos estanques, quando o próprio conceito de gênero vem já sendo problematizado. Tem-se a consciência de que só razões didáticas justificam essa divisão.

Nenhuma surpresa há de causar também a inclusão de depoimentos sobre a vida do Poeta, em forma de biografia. Já se foi pelos ares aquela idéia de um bom estudo de literatura se iniciar pelo desconhecimento do autor do texto a fim de se evitar o juízo de valor preconceituoso. Se o crítico é bom de serviço não se deixa conduzir por razões de tal ordem. Com certeza não virão de biografia a timidez e as falhas deste trabalho.

Nesta hora de enfoque do circuito autor/obra/leitor, dos debates em torno das falas de Hans Roberto Jauss, de Wolfgang Iser e de tantos outros, passa a ser ridículo rejeitar o conhecimento de biografias. Ao se ouvir falar de determinado texto, é natural que se queira saber quem o produziu. Em se tratando de proposta de estudo da natureza desta, então, há muito mais razão para se compor uma biografia completa. Será, com certeza, feita ainda. O que ora se apresenta está muito aquém do mérito deste escritor.

É também hora de se dizer que qualquer criação literária merece atenção, respeito, exame e fruição. A mais pobre (haverá literatura pobre?), inclusive. Até para se dizer, a partir de tal reflexão, o que é ser obra rica e haver ocasião de se explicitar o parâmetro do juízo de valor. E assentar pelo menos estes pontos:

1. A análise literária prepara os caminhos do juízo de valor.

No entanto, ela já contém a crítica. Pois esta não é a arte de examinar e/ou julgar? Então não exagera aquele que conceder a esta leitura a benemerência de crítica, mesmo com suas limitações de não ousar pôr os textos no tribunal de teorias e, menos ainda, no de ideologias porventura veiculadas.

2. A leitura mais cuidadosa da obra de Roberto Almada deve preocupar-se em constatar se ela contém a tradição e a modernidade, como se articula com a Poesia de Jorge de Lima, de João Cabral de Melo Neto, de Carlos Drummond de Andrade e outros;

3. A poemática entendida como estudo formal do poema é termo que (mesmo querendo sintetizar) aponta para amplos horizontes: da forma fixa ou não, da estrofação, da métrica, do ritmo, da rima, e mesmo das ideologias veiculadas. As ideologias não aparecem de igual modo, por mais objetivas que sejam, em todos os textos. Ao contrário, em cada um elas são enformadas. A religiosidade de Violaine, verbi gratia, de L’annonce faite à Marie (1892), de Paul Claudel (1864-1955), pela qual ela se entrega incondicionalmente a Deus e ocupa a vida em adorá-lo, está muito longe da de Zé-do-Burro, de O pagador de promessas (1959), de Dias Gomes (1922), em seu comércio com o céu. Sendo assim, são também aspecto formal.

O estudo da poemática sobe ainda ao nível frasal, da pontuação (mais ou menos frequente), do percentual de pontos quentes (interrogação, exclamação e reticências) em relação aos pontos frios (os demais) da estrutura quanto à divisão em capítulos (ou não) curtos e/ou longos. E abrange a expressão, passando pela estilística fonológica, morfológica, lexical, da substantivação, do adjetivamento, da sintaxe (em suas modalidades), sem esquecer a erudição e/ou simplicidade.

Não pode a análise limitar-se a passar por estas coisas. E necessário dar o pulo literário: dizer o que estão elas literariamente dizendo. Há um sério problema aqui: nem tudo merece ser focalizado. Só a cultura, a sensibilidade e o hábito de trabalhar com estes universos mostrarão os caminhos. Daí certos fracassos de críticos que muitas vezes não conseguem ver minas de ouro virgens, estupram outras ou emergem certos componentes de pouca densidade em relação a outros do mesmo corpus.

Diante da obra de Roberto Almada, como fica a questão? É petulância dizer que todas as vertentes dela serão postas em close, até pelo fato de nenhuma leitura honesta pretender esgotar o texto.

Que o grande percentual das omissões e defeitos deve ser debitado na conta do responsável pelo estudo da matéria, não há necessidade de explicitá-lo. Ainda as imperfeições são válidas, porém, pois ao serem apontadas pelos sábios, por esta mesma razão os estão provocando e, de certo modo, forçando-os a mostrarem as grandes minas, assim como os corretos caminhos de explorá-las. A tudo se acrescente que um estudo literário é ponto de partida e não porto de chegada.

O nome de Roberto Almada e sua obra (principalmente a produção poética), de há muito ultrapassaram as fronteiras do Espírito Santo. Nestas terras capixabas, então, tem espaço privilegiado e, sem dúvida, outros estudiosos de maior fôlego virão a este manancial, mormente agora, com a criação do Mestrado em Literatura Brasileira do Departamento de Línguas e Letras da UFES.

Este trabalho cumpre sua missão se puder contribuir de algum modo para o que virá das mãos de outros terríveis trabalhadores.

[In A poesia a(l)mada: uma reflexão sobre O país d’El Rey & A casa imaginária, Vitória: Fundação Ceciliano Abel de Almeida, 1997, p. 69-77.]

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Geraldo da Costa Mattos (autor).

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