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Exposição de Motivos do anteprojeto de lei de criação da Universidade do Espírito Santo

A Universidade do Espírito Santo era, há bem pouco tempo ainda, apenas um anelo generoso e, ao ver dos mais entendidos e mesmo dos mais otimistas, um projeto cuja execução devia ser adiada para dias melhores do futuro, previstos como certos mas também remotos.

Em 1951 — ao inaugurar-se novo período governamental — o que pelo arrojo, importância e oportunidade de seus empreendimentos estava destinado a, em breve tempo, durante seu próprio transcurso, ser visto como o mais fecundo e realizador da história estadual — se inscreveu, pela primeira vez, no programa de ação governamental, a ideia da Universidade, não porém, ainda, como item integrante de uma agenda mínima, senão apenas como ideia diretriz e provável ponto de chegada no desenvolvimento do plano de trabalhos do setor dos negócios de educação e cultura. Dominava a convicção generalizada de que a ideia era afoita ou, ao menos, prematura, faltando as condições econômicas e culturais necessárias à sua concretização.

Decorridos apenas três anos, acha-se o Governo persuadido — e, com ele, a opinião pública — de que são precisamente as condições econômicas e culturais do Estado que indicam a oportunidade e, mais do que isso, a necessidade imperativa de ampliação progressiva da rede de estabelecimentos de ensino superior do Estado e sua estruturação num organismo universitário.

Confiando, como convinha e devia, na continuidade do surto e expansão de energias até então adormecidas do Estado e antevendo os efeitos desastrosos do desajustamento da máquina governamental às condições de vida social que ela visa a contrastear e disciplinar — cuidou o Governo de prevenir a “crise de descompasso” que já se fazia sentir, entre os quadros tradicionais e insuficientes de sua armadura administrativa e, particularmente, de sua armadura educacional, de uma parte e, de outra parte, o comportamento novo das forças sociais, para isso bosquejando, com a coragem que a situação impunha, um plano de ação amplo, preciso e, ao mesmo tempo, bastante flexível para se dobrar e amoldar-se, oportuna e funcionalmente, às movediças configurações da realidade em processo de evolução. As medidas por adotar deviam ser não só tendentes a aplainarem os obstáculos a esse processo mas também suscetíveis de promoverem o advento de um contexto de condições necessárias e suficientes ao seu máximo incentivo e desenvolvimento normal e harmônico.

Nesta ordem de ideias e tendo em vista. que a expansão das forças econômicas está na dependência, por um lado, dos índices de procura dos bens de produção e consumo —índices, por sua vez, condicionados às necessidades “primárias” do homem assim como às suas necessidades “secundárias”, estas proporcionais ao nível de educação e cultura do povo — e, por outro lado, na dependência da qualidade dos bens produzidos, a qual é função do nível de educação e cultura especializada e técnica, determinou o Governo de proceder, desde logo, à revisão total do sistema pedagógico, com o fim de reequipá-lo em material e em pessoal para o desempenho seguro da alta missão que lhe estava reservada no concerto e estímulo do surto de crescimento do Estado.

Na agenda governamental foram então insertos como itens de capital importância:

a) — a reforma gradativa do sistema estadual de educação pré-escolar e primária, com vistas à sua máxima eficiência, pela ampliação da rede de estabelecimentos, melhoria de suas instalações, incentivo à formação de novos contingentes magisteriais, medidas asseguradoras da recompensa ao mérito e, por essa via, de aperfeiçoamento contínuo das técnicas de trabalho didático e do rendimento escolar;
b) — a revisão das condições de existência dos estabelecimentos de ensino médio — de cultura geral técnica ou pedagógica — com o intuito de garantir-lhes possibilidades razoáveis de sobrevivência, progresso e eficácia social;
c) — a criação de novos estabelecimentos de ensino superior para preparação de profissionais altamente habilitados ao exercício das atividades de base cientifica, e, como provável coroamento dos esforços, a criação da UNIVERSIDADE DO ESPÍRITO SANTO.

Esquematizados, por esse modo, os fins pelos quais a Secretaria de Educação e Cultura devia propugnar, restava eleger o método de trabalho para a sua consecução.

O plano, aparentemente arrojado, poderia consubstanciar-se, desde logo, em um ou dois alentados diplomas legais, prepostos a regerem, da data de sua vigência em diante, as atividades pedagógicas de todos os graus. Mas as lições da experiência, sobretudo as tentativas frustradas de numerosas reformas de ensino alhures empreendidas por essa maneira, contraindicavam esse procedimento. Em administração educacional, mais do que em qualquer outro ramo da administração, é de bom aviso manter o espírito cauteloso e prevenido contra os excessos de otimismo reformador, a que conduz, com frequência, o caráter desiderativo e “utópico” do próprio “pensar” pedagógico, responsável, quase sempre, pelo reformismo convulsivo — teórico e legiferante — de que enferma o ensino em toda parte, máxime no Brasil.

Assim o entendeu o Governo do Espírito Santo e daí ter preferido, à obra puramente técnica da elaboração imediata do Código de Educação e do Estatuto Universitário, a execução gradual de um conjunto bem travado de medidas de ordem tática ou de transição, com a finalidade de preparar o terreno para o advento seguro, embora lento, da reforma projetada.

Desse modo, foi somente ao término do primeiro ano de trabalhos que o Governo sancionou, em 7 de dezembro de 1951, a Lei nº 549, cognominada, desde a origem, a “Lei Áurea” do ensino capixaba. Era o primeiro passo e, só por si, indicativo dos novos rumos da administração educacional do Estado. Entretanto, por mais revolucionária que tenha sido considerada na época, essa lei consubstanciava apenas, para o Governo, um primeiro complexo de medidas de emergência, como que operações de amaciamento e de reconhecimento, preparatórias de outras cujos lineamentos gerais se entreviam mas cuja implantação dependia da vigência efetiva daquela lei.

A ela, e como seu complemento, seguiram-se outras leis e decretos, regulamentando a carreira magisterial, reajustando as peças da armadura escolar do Estado, ampliando a rede dos estabelecimentos dos diversos graus de ensino, inclusive do ensino superior, com o que se fortalecia a consciência do problema educacional, se revitalizava o sistema escolar e se preparava o advento de sua cúpula, a UNIVERSIDADE DO ESPÍRITO SANTO.

Ao mesmo tempo e porque a ideia de criação da Universidade amadurecia, configurando-se a mais e mais como exequível e oportuna, foram tomadas providências no sentido de se sustarem os projetos, em andamento, de obras de edifícios de escolas superiores disseminados em pontos diversos da capital e, em seu lugar, iniciados outros estudos que tiveram, como feliz resultado, a escolha de uma área geográfica de 120 hectares, magnificamente localizada, para servir de sede à futura cidade universitária. Nesta área, tiveram início em 1952 as obras de construção da Escola Politécnica — estando já concluído o primeiro pavilhão — e bem assim as do Hospital das Clínicas, podendo-se prever para breve a instalação da Escola de Medicina do Estado. Simultaneamente, a Secretaria de Educação e Cultura está estudando, com a colaboração da Secretaria de Viação e Obras Públicas, o projeto do edifício da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras.

O Anteprojeto — que acompanha esta Exposição — visa precisamente à criação da UNIVERSIDADE DO ESPÍRITO SANTO como resposta, agora oportuna e justa, não a um vago anelo popular ou mera aspiração de elites intelectuais, mas a uma profunda necessidade social do Estado, de sua cultura e de seu desenvolvimento.

É certamente dispensável pôr em relevo aqui os motivos gerais que determinam ou justificam a criação de uma Universidade. Quanto à que se procura agora criar no Espírito Santo, não será exagero, à vista do que atrás ficou esclarecido, afirmar que ela praticamente já existe e atua, presente como se acha nesse conjunto de institutos de ensino superior em pleno e profícuo funcionamento, constituído pela Faculdade de Odontologia — esta já de posse de prestigiosa tradição — pela Escola Politécnica, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras e Escola de Belas Artes, criadas e instaladas no último biênio governamental, estabelecimentos aos quais se deverão juntar, em futuro próximo, a Escola de Medicina e a de Química Industrial. Trata-se portanto, de certo modo, de tornar Universidade de direito o que já se apresenta como Universidade de fato, com a vantagem daí decorrente de proporcionar aos estabelecimentos de ensino superior um estatuto legal que lhes organize a unidade espiritual — para que tendem espontaneamente — e consequente aumento do poder de influência de cada um, no regime de solidariedade e cooperação assim estabelecido, seja pela melhoria de suas condições de trabalho didático, seja pelas maiores possibilidades de irradiação e de contribuição à obra social da vulgarização e progresso da cultura.

Não se deve, porém, elidir o fato de que permanece ainda, no espírito de muitos, certa dúvida quanto à oportunidade de criação da UNIVERSIDADE DO ESPÍRITO SANTO. Ela provém, certamente, do poder da inércia característica de todo “modo de pensar” que, por sua longa duração, vincou de certa maneira o consenso geral de ideias da chamada “opinião pública”. Da mesma natureza é a dúvida que se percebe ter estado presente ao espírito do legislador federal quando, ao elaborar normas gerais para o estudo dos pedidos de “autorização prévia” de funcionamento de Universidades do Brasil, estabeleceu ser necessário verificar, em cada caso particular, se o instituto universitário representa real necessidade sob o ponto de vista profissional ou manifesta utilidade de natureza cultural e se a localidade em que se pretende instalá-lo reúne as condições culturais necessárias ao seu regular funcionamento (cf. Decreto-lei federal nº 421 de 11-5-1938).

Tal dúvida — no que tange à UNIVERSIDADE DO ESPÍRITO SANTO — apenas se compreende no espírito dos que ignoram as grandes transformações por que vem passando o Estado nos últimos anos. Para ela, deve estar concorrendo também o fato, meramente acidental, de uma caprichosa divisão político-administrativa ora vigente, que faz o município da capital figurar, nos censos demográficos, como um núcleo constituído apenas de 50.000 ou 55.000 habitantes, quando a verdade é que, sob o ponto de vista geográfico e sociológico — passando por sobre as linhas convencionais e perecíveis das fronteiras intermunicipais, o núcleo populacional que se aglomera na área de urbanização e influência direta da capital do Estado é de quase o dobro daquele.

Será útil, por outro lado, colocar em destaque outro elemento esclarecedor: o de que a dúvida que se possa suscitar, quanto à oportunidade da criação de Universidade do Espírito Santo, emana, em grande parte, de um falso ou, ao menos, obsoleto conceito de Universidade, de um “estereótipo” generalizado a respeito do que ela é ou deve ser, e que constitui o substractum de muitas ideias correntes sobre o problema da organização e funcionamento dos sistemas universitários. Raciocina-se freqüentemente como se admitisse a existência de uma Universidade “ideal”, de um “arquétipo” de sistema universitário perfeito, acabado, imutável, e como se, em cada caso concreto, fosse essa Universidade “ideal” a que se teria de realizar em seus mínimos aspectos. Tal Universidade abstrata, única, hirta., sempre igual a si mesma, não se poderia organizar, de modo completo, em sua essência invariável, senão com o concurso de certas circunstâncias “ótimas” de tempo, e cultura, por sua vez apenas possíveis nas grandes aglomerações urbanas altamente industrializadas, a saber, nas chamadas “cidades tentaculares” ou “grandes metrópoles”.

Universidade “ideal”, seria ela, de outra parte, um centro de altos estudos, com um currículo único e universal, destinado ao cultivo desinteressado do “intelecto” e da “ciência pura”, da teoria sem contaminação da prática, por forma que os problemas da vida social atuantes e efetivos, servindo-lhe embora de moldura, não repercutiriam nela, senão por acaso, erro ou heresia e sempre em prejuízo de sua própria finalidade. Enfim, escola “metropolitana” por excelência, não se poderia consentir, por maior que fosse a condescendência, sua instalação em cidades de índices demográficos inferiores a determinados limites.

Trata-se, é óbvio, de uma concepção antiga, francamente ultrapassada de Universidade, concepção que tem, por assim dizer, uma “data social” e que apenas dissimula a marca dos interesses próprios de um momento da “ordem social”, em que se gerou e que ela exprime e se esforça por preservar.

Por ela, como que se busca impor um “tabelamento” — que se pretende “racional” — das oportunidades de educação e não é difícil lobrigar o vínculo pelo qual se liga a outra velha concepção, a tese de administração educacional, ainda hoje vulgarmente aceita, de que um “sistema escolar” completo se compõe de uma “pirâmide” de estabelecimentos de ensino, assim distribuídos e estratificados: na base, uma rede de escolas primárias, à razão de um estabelecimento em cada comuna, cidade ou sede municipal; no tronco, algumas escolas secundárias, à razão de uma em cada cabeça de província ou capital de Estado; enfim, no cume uma “Academia” ou, seja, a Universidade na corte, metrópole ou capital do país.

Esse sistema, que apresentou, no momento histórico-social de sua formulação, há três séculos, a expressão do que, sociologicamente, se chama uma “utopia”, isto é, a reivindicação de um ideal generoso mas irrealizável por força dos fatos, se tornou não somente exequível mas inevitável e, de certo modo, suscetível de perpetuar o tradicional monopólio — senão de direito, já, ao menos de fato ainda — das oportunidades mais amplas de educação para os representantes dos grupos sociais mais abastados e dominantes. Em épocas e lugares de grande estabilidade social, em que as instituições pedagógicas de todos os níveis, inclusive universitário, se apresentavam apenas como agências de preservação, no plano da formação mental dos indivíduos, desse estado de coisas, cuja justificação consistia na sua própria existência, tal sistema permitia e assegurava um processo de “peneiramento” da clientela das escolas, com a consequente “dosagem” das oportunidades de educação, proporcionadas às quotas de mando, riqueza e lazer de cada um, correspondentes ao seu status político, econômico ou social.

Porém, as grandes transformações da vida humana operadas nos últimos séculos — produzidas pela revolução cientifica, ergológica e ética iniciada no século XVIII — e que não se têm senão acelerado cada vez mais, tiveram, como consequência no campo da educação, um processo de intensiva e avassaladora “democratização” da escola. Esse processo se manifestou, a princípio, de modo particularmente sensível, no setor de ensino primário ou fundamental. Sob a pressão dos fatos e das reivindicações “populares” a mais e mais insopitáveis, de um lado e, de outro lado, pela própria necessidade superveniente da melhor qualificação dos trabalhadores na “era da máquina” que se inaugurava, tornou-se relevante o problema da “educação do povo” e, por conseguinte, o da ampliação progressiva da rede de estabelecimentos de ensino de 1º grau.

Foi, depois, o ensino de 2.º grau — e, no Brasil, predominantemente, o ensino secundário — que, em virtude do mesmo impulso “democratizante” entrou a perder seu primitivo caráter “seletivo” e “universitário” para se tornar a mais e mais “compreensivo” e “popular”. De início, tal como sucedera com os estabelecimentos de ensino primário, os de ensino secundário foram surgindo aqui e ali, fora das “grandes cidades”, e como “dádivas” dos governantes aos governados; mas, nos dias atuais, observa-se a tendência à multiplicação indiscriminada desses estabelecimentos, colocando-se como convém — e também como talvez não convenha — o “Ginásio” e o “Colégio” ao alcance de uma clientela cada vez mais numerosa e, sobretudo, ávida de títulos para ascensão social mais do que de formação para proficiência na vida real.

Em tais condições da conjuntura presente, os defensores da ordem social tradicional, que ameaça estalar ao impacto de reivindicações “populares” e “democratizantes” cada vez mais fortes, sentindo que não só a escola primária mas também a secundária de cultura geral e propedêutica se subtraem ao seu antigo domínio, procuram refugiar-se no “ensino superior” — e, de modo particular, em sua expressão mais completa e elevada, a Universidade — que se esforçam por conservar como reduto de educação de elites, de cultivo da ciência pura e do saber desinteressado, inacessível e, pelo mais, inútil às camadas sociais inferiores ou às populações consideradas semi-rurais das cidades distantes da metrópole detentora do poder central.

Desvendado, por esse modo, o substractum da crença na impossibilidade de vingar uma Universidade fora das “grandes cidades”, deve-se também repudiar o falso conceito e “estereótipo” antigo da Universidade como uma instituição “ideal”, sempre idêntica a si mesma, independente das circunstâncias de tempo, de lugar e de cultura.

A Universidade — como a escola primária, como o ginásio e a escola profissional — tem variado no espaço e no tempo, destinando-se aqui e ali, conforme o momento histórico-social de sua existência e, no mesmo momento, em lugares diversos ou através dos diversos institutos que a compõem, ora ao conhecimento desinteressado, ora ao saber técnico, ora ao progresso de um ou de outro, ora, enfim, à sua divulgação na coletividade. Assim como a cultura, segundo velho truísmo sociológico, varia no espaço e no tempo, assim as vicissitudes, as exigências e os problemas contemporâneos do contexto situacional de cada cultura impõem, em lugares e momentos diferentes, soluções pedagógicas diferentes, originais, próprias, para cujo encontro e elaboração cada grupo humano deve criar os órgãos apropriados. Por outras palavras: não há uma Universidade “ideal”, um modelo único e fixo de sistema universitário com instalações, currículo, pessoal, pré-estabelecidos de uma vez por todas como padrões intocáveis e pelos quais se deva amoldar o ensino universitário em toda parte. Nem o grau de idoneidade moral, social ou científica, de um instituto universitário deve ser medido pelo índice de sua maior ou menor conformidade com tais padrões abstratos mas pelos de sua maior ou menor conformidade, correspondência e reação às reais necessidades do campo de forças sociais da comunidade em que ele vem a existir, emoldurar-se e atuar. Num país, como o Brasil, social e politicamente uno e coeso mas culturalmente heterogêneo, não cabe pensar num molde pré-concebido e rígido de ensino universitário, como único que, em nome da dignidade desse “estereótipo”, se possa consentir.

Em relação ao Estado do Espírito Santo, convém ter presentes ainda os seguintes fatos e circunstâncias: com a superfície aproximada de 50.000 km² e a população de 1.000.000 de habitantes — para computar apenas os que se encontram dentro de suas fronteiras político-administrativas, com exclusão, portanto, dos agrupamentos humanos circunjacentes que, todavia, se encontram, do ponto de vista geográfico e sociológico, na órbita da vida e da cultura do Estado — tem sua capital situada a distância superior a 500 km dos centros universitários mais próximos, a saber, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Salvador. Para esses partem anualmente algumas dezenas de jovens em busca de oportunidades de formação, uma minoria muito reduzida em confronto com o número dos que poderiam e deveriam frequentar os institutos universitários, se estes lhes fossem, em primeiro lugar, especialmente e, em segundo lugar, economicamente acessíveis.

Não é certo, porém, serem esses poucos que, na posse de recursos financeiros, se podem ausentar do Estado e prolongar a “mocidade” na medida das necessidades de duração dos cursos, exatamente os portadores dos melhores dotes de inteligência e aptidões para o futuro desempenho das atividades profissionais a que os habilitam oficialmente os títulos e diplomas que conquistam. Desta sorte, é toda uma geração, da qual numerosas vocações se estiolam à falta de oportunidades de desenvolvimento e formação que se encontra “marginal” em relação à cultura e ao direito de acesso às atividades de base científica a que correspondem seus dotes e contribuição ao bem-estar geral. E é o Estado, nesse caso, o maior prejudicado, assistindo, impotente, ao desfalque de seus contingentes humanos, dos quais devem sair seus próprios quadros futuros de comando político, industrial, comercial, intelectual.

A isto se objetará, talvez, como freqüentemente ocorre, com um argumento, à primeira vista, persuasivo: se um estado ou região carece de homens cultos e de técnicos altamente habilitados ao exercício de atividades de base científica — mais fácil, mais expedito e mais barato do que instalar uma Universidade para preparação desses elementos, será instituir “bolsas de estudo” para jovens bem selecionados frequentarem cursos nas grandes Universidades já existentes, tanto mais quanto, com tal medida, o Governo coloca a aprendizagem ao alcance dos mais capazes e somente deles, eximindo-se dos enormes dispêndios de prédios, instalações, remuneração do professorado e pessoal administrativo e, ainda, do “desperdício” de ensino a numerosos estudantes de apoucados dotes de inteligência.

Os fatos, porém, não nos persuadem da veracidade desse argumento. Em primeiro lugar —pelas mil e uma dificuldades de uma boa seleção dos candidatos; em segundo lugar, porque, como é notório, o número de estudantes que, ao concluírem o curso superior longe do estado, se põem de torna-viagem, é diminuto em comparação com o dos que partiram em busca do diploma, mesmo quando se trata de “bolsistas”; em terceiro 1ugar, porque — e isto é o pior — são quase sempre os que, por deficiência de aptidões ou de capacidade de adaptação ao status conferido pelo diploma e às expectativas de comportamento que este suscita os que regressam interessados na realização da carreira no estado de que se ausentaram, mas no qual parece não encontrarem mais, igualmente, possibilidades de readaptação. E há mais: erroneamente se pensará que uma Universidade — ou qualquer das escolas que a compõem — é ou deva ser apenas — como o argumento parece supor — uma agência ou posto de fornecimento de certas ideias ou técnicas, por um grupo fechado de professores a um grupo igualmente fechado de discípulos, em ambiente também fechado, por assim dizer, esotérico, isto é, imune à influência da comunidade e desobrigado de 1evar a esta sua própria influência. Ao contrário. É na comunidade, por e para ela, em função de sua realidade concreta, de seus problemas atuais, de suas vicissitudes contemporâneas, que a Universidade vive, recebendo seus influxos e irradiando em torno, pelo exemplo, pela diligência e pelos trabalhos de seus professores, assim como pela vibração de seus alunos, uma grande influência benéfica. Nem chega a merecer a denominação de Universidade um conjunto de estabelecimentos de cultura geral ou de ensino técnico, por mais elevado que seja seu nível, se ele não se apresenta, ao mesmo tempo, como antena capaz de captar o drama cultural da comunidade e célula de profunda repercussão nos padrões de vida, de atividade e de pensamento, desta.

Não quer isto dizer que o Estado deva suprimir as “bolsas de estudo” que mantém, muito menos que deva opor barreiras à partida de jovens candidatos para outros centros universitários. De modo nenhum. É conhecido o fenômeno da afluência de estudantes de diversas nações para os grandes centros universitários, onde pontificam os doctores da época. Foi assim em Paris, Bolonha, depois em Coimbra, em toda a parte. E assim é e precisa ser, por mais fortes razões, nos dias atuais. Mas importa sublinhar — sobretudo para orientação de uma Universidade que começa — o fenômeno concomitante, igualmente tradicional e contemporâneo de fundação do sistema universitário: o do afluxo, espontâneo ou provocado, de qualquer modo, constante, de professores forasteiros, procedentes também de vários países para lecionarem nas cátedras universitárias, o que concorreu certamente, no mais alto grau, para o intercâmbio, a difusão e a renovação da cultura.

A simples instituição de “bolsas de estudo” para estudantes não é tudo. Deve ela acompanhar-se de uma previdência complementar indispensável, a da instituição do que se poderia chamar “bolsas de ensino”, destinada a promover a vinda frequente de numerosos professores e especialistas dos diversos ramos do conhecimento — nacionais e estrangeiros — para assumirem, temporariamente, durante meses ou anos, a regência de cátedras ou a orientação de atividades departamentais de pesquisa.

Tal orientação — que deve fazer votos de que venha a ser seguida pelos futuros mentores da Universidade do Espírito Santo — presidiu e preside à vida das Universidades nacionais de maior nomeada, como a de São Paulo e a da Capital Federal. Basta lembrar, como exemplo particular e expressivo, o caso da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras filiada àquela e que, em dois decênios de existência, conquistou tão larga projeção nacional e internacional pela qualidade de seu ensino e pelo vulto de sua contribuição ao avanço do saber; essa Faculdade iniciou suas atividades em 1934 com um corpo docente constituído, em sua quase totalidade, de professores forasteiros — portugueses, franceses, italianos, norte-americanos, espanhóis, ingleses — cuja passagem por suas cátedras e departamentos científicos ficou assinalada por influência duradoura na personalidade dos alunos de então, muitos dentre eles atualmente elevados à posição de catedráticos. De outra parte, o movimento de “professores visitantes” — que dão cursos cuja duração varia de algumas semanas e alguns anos — na Universidade do Brasil, como na de São Paulo, continua tão intenso — e já agora, pelo auxílio da CAPES (Campanha de Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior), órgão filiado ao Ministério de Educação e Cultura, com tendência a estender-se a outras Universidades, como as do Rio Grande do Sul, do Paraná, de Minas Gerais, da Bahia, de Pernambuco — que não será exagerado supor que as verbas destinadas às “bolsas” de manutenção de tais professores são talvez mais elevadas do que as destinadas às “bolsas” de estudantes.

Nestas condições e tendo em vista o surto de crescimento demográfico, econômico e intelectual do Estado, a exigir contingentes cada vez maiores de especialistas para os diversos setores das atividades públicas e das iniciativas privadas quando um ardoroso impulso de progresso acarreta radicais transformações de sua cultura e de sua paisagem urbana e rural e, como consequência, as práticas empíricas e consuetudinárias de trabalho cedem o lugar a normas técnico-científicas, parece inegável ser chegado o momento oportuno da criação da UNIVERSIDADE DO ESPÍRITO SANTO.

VITÓRIA, 29 de janeiro de 1954.
Ass.) RAFAEL GRISI
SECRETÁRIO DE EDUCAÇÃO E CULTURA.

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