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Filme sueco

Primeiro a dúvida. Seria (como se comentava) um filme de Ingmar Bergman? 1957, Vitória-ES. Portanto, Bergman como notícia da “outra parte”, das comunidades estranhas que mandavam recados além da fome, da miséria física em geral e da pobreza de informações. Uma “outra parte” que mandava dizer em que pé estava a exploração dos limites desse único bicho que sabe que vai morrer. Inclusive explicações para as notícias que chegavam dessa “outra parte” que vivia próxima do Círculo Ártico acerca da doença do suicídio que teria atacado por lá. Será que vai chegar o dia em que apenas deixarão uma carta coletiva dizendo que a solução era a de jogar-se dos seus fiordes? Liquidar com toda a experiência humana? Seria esse o recado final? Estariam desistindo? Que teria o Bergman a dizer sobre isso? Como ficarão os “deste lado” ainda com tantos problemas mais “animais” e que tentam erguer a cabeça para enxergar acima e além do estômago? Enfim, no caso imediato, será ou não um filme de Bergman, o sueco, com suas neuroses que são também as nossas, com o tempero das crises existenciais da adolescência e pós?

Passou cedo pelo Trianon. Ainda não haviam colocado os cartazes dos filmes da semana. Pela porta semi-aberta tentou ver se descobria alguma coisa. Não viu nada e nem ninguém. Só à tarde apareceu o cartaz do dia: Hoje, Hoje, às 20 horas, Ela dançou somente um verão — filme sueco. Estava confirmado no cartaz pintado com aquela característica tinta azul, um filme sueco que ele não podia admitir não fosse do Bergman. Aquele diretor tão falado pelo José Carlos Oliveira, jucutuquarense ilustre já instalado no Rio. Zé Carlos, com as informações privilegiadas obtidas nas redações da Capital Federal, me dizia que esse tal de Bergman tinha crises paradoxais. Quase entrava em desespero porque dizia que sua obra cinematográfica se baseava numa ilusão. A ilusão de ótica que proporcionava a falsa sensação de movimento no cinema. Sua arte só existia virtualmente e se baseava numa deficiência do olho humano.

Puxa, um banquete neurótico para ninguém botar defeito. Mas havia uma quase unanimidade: Bergman, com todas as suas inseguranças, era um gênio e sabia, como nenhum outro no cinema, levantar os conflitos da vida civilizada.

“Você assistiu Noites de circo, Morangos silvestres…?”

“Não, não assisti.”

Daí, a grande expectativa, hoje, hoje, filme sueco no Trianon que seria de Bergman (claro que não era).

A fotografia amarelada dava o tom daquele verão que duraria meses e onde não havia noite. Mas era um dia desbotado, cheio de sombras e de pessoas zanzando pela casa, uns dormindo o tempo todo, outros conversando e falando da vida mas nada que furasse as fronteiras do convencional, um filme sueco bem pouco filme sueco. Cadê o Bergman? E as pessoas continuavam andando pela casa como sonâmbulas e conversando sobre não sei o quê mas principalmente sobre um certo baile que seria realizado dali a pouco. Deveria haver uma personagem que dançaria somente naquele verão e depois morreria. Isto deve ter acontecido para haver coerência com o título do filme. Mas, francamente, não me lembro. O filme sueco acabando e o Bergman não dizendo coisa com coisa. (Será que a mensagem era aquela? Era preciso ficar atento. Há muitas sutilezas usadas por esses do “outro lado”.)

Lembrou-se que ao entrar na sala, já tendo começado o complemento nacional obrigatório, deram-lhe um folheto com informações sobre este filme. Para conferir, deu uma rápida chegada na sala de espera e verificou que o filme não era de Bergman nenhum. Era de um Sven de tal. Ah, bom. Voltou para assistir o resto do filme. Que remédio? Não podia se dar o luxo de gastar o dinheiro da entrada e deixar o filme pelo meio.

Os personagens se amontoavam num canto da sala depois de uma bebedeira homérica. Não era dia, não era noite e vamos indo.

Mas, quase terminando, o filme se salvou por causa de uma chuva. Isso mesmo. O melhor filme de chuva que vi até hoje. Os que me conhecem sabem que sou fã de chuva, sem desastres, claro. Tenho grandes chuvas catalogadas na memória e fico me perguntando se a mania não começou com esse filme. Pode ser. Que me lembre, na vida real só vi uma chuva que poderia se igualar a essa do filme. Foi aqui, no interior do Espírito Santo, num sítio. De repente, uma cortina de chuva batida pelo sol em contraste com o fundo escuro da mata fechada situada num vale. A cortina se deslocando, com incrível beleza, da esquerda para a direita, em longuíssimos pingos caindo verticalmente, num impecável show de elegância oferecido pela natureza. Um espetáculo tão bonito que merecia ter sido encenado dentro de um sonho. Não foi um sonho. Aconteceu. Não fosse o testemunho de minha mulher, que assistiu comigo, estaria inclinado a pensar que teria sido vítima de uma alucinação maravilhosa.

Falo dessa tal chuva do sítio para estabelecer uma espécie de padrão de qualidade para as “grandes chuvas” arquivadas na memória. No real, a chuva do sítio, na imagem, a do filme sueco, chuvas do panteon das águas.

Era num lago de águas tranqüilas no lusco-fusco do verão do Círculo Ártico. Juncos, com suas hastes flexíveis, balançavam com uma aragem que vinha de um fundo mais escuro carregado de nuvens. Creio que a moça que dançaria apenas um verão estaria à beira do lago mas não posso assegurar. Lentamente os pingos de chuva vão furando a calma superfície do lago e numa seqüência quase musical os pingos vão aumentando de intensidade até chegar a uma apoteose líquida que tomou conta do lago e da floresta a seu redor. Esse espetáculo, que evidentemente é impossível de ser descrito, persiste em minha imaginação como um dos momentos altos da arte cinematográfica.

Enfim, não tínhamos ainda o Bergman mas tínhamos o Sven de tal com a arma secreta da chuva. O que não era pouco.

[In Novas crônicas de Roberto Mazzini, da “Coleção Gráfica Espírito Santo de Crônicas”, em 2003.]

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Ivan Anacleto Lorenzoni Borgo é cronista e nasceu em Castelo, ES, em 21 de fevereiro de 1929. Formado em Direito pela Faculdade de Direito do Espírito Santo (Ufes), com especialização em Economia pelo Conselho Nacional de Economia em convênio com o MEC. Foi professor da Ufes de 1961 a 1989 e diretor regional do Senai/ES de 1969 a 1990. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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