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Prefácio a Graça Aranha e o Canaã




Prefácio

É admirável e comovedora a fidelidade do Espírito Santo à memória de Graça Aranha.

Ele nasceu em São Luís do Maranhão; passou no Recife os anos da juventude; grande parte da sua vida transcorreu no Rio de Janeiro, onde se iniciou nas letras, na advocacia e na diplomacia; andou pelo estrangeiro, em Paris apresentou Malazarte e desenvolveu intensa atividade a favor do ingresso do Brasil ao lado dos Aliados, na primeira guerra; em São Paulo lançou o brado do modernismo, na Semana da Arte Moderna, de 1922; no Rio de Janeiro publicou seus últimos livros e morreu, na Praia do Flamengo, a 27 de janeiro de 1931. Perguntar-se-á a razão pela qual o Espírito Santo, onde Graça Aranha esteve durante poucos meses, reivindica de tal forma a sua glória. Por ter sido o cenário de Canaã? Mas outros lugares foram ambientes de suas demais obras de ficção, o Rio de Janeiro, São Paulo, as praias de Niterói e sua própria cidade, evocada com intenso lirismo, nas primeiras páginas deste seu livro, apenas iniciado, O meu próprio romance.

É que o Espírito Santo não foi apenas a paisagem do seu maior romance. O Espírito Santo foi o grande personagem de Canaã, criado com o fascínio e o deslumbramento da natureza, com todas as implicações filosóficas do seu panteísmo, que integra a terra no livro; foi o homem que ali vivia a tragédia do subdesenvolvimento e o que veio do estrangeiro com suas doutrinas adequadas ou conflitantes com o meio; foi o completo social em que se fundiam formas diferentes de um Brasil que se miscigenava, aculturava e reinterpretava; foi o quadro de uma sociedade em formação na variedade de figuras e aspectos, foi, em suma, a ecologia natural, social e humana que fez do Espírito Santo o personagem central do livro, e lhe polarizou a ação, o lirismo e a dinâmica.

A literatura brasileira, desde os românticos, procurara estabelecer as interações íntimas e profundas entre a terra e o homem, no esforço para decifrar o Brasil e compreender a sua numerosa realidade. O próprio Machado de Assis, se foi indiferente à natureza, moveu-se em função da paisagem urbana, que lhe enquadra a obra. Em Graça Aranha, a natureza era mais um elemento de absorção totalizadora e de fremente emoção estética, que lhe inspirou algumas das páginas mais belas do Canaã e de toda sua obra literária.

Se a sensibilidade do Espírito Santo se emocionou tão profundamente com a transfiguração da terra no romance de Graça Aranha, considerando-o um filho sempre presente, quando em vida fora sempre um ausente, se não numerosos os estudos capixabas sobre o mestre o seu maior romance, estava faltando um livro que justificasse o fenômeno, através de uma documentação minudente e de uma exegese segura. É o que acaba de realizar, com grande amor, clara inteligência e uma constância de pesquisador infatigável e honesto, Augusto Lins, com a publicação desta obra que ficará em relevo nos estudos brasileiros.

Nela estuda os elementos precisos da Presença do Espírito Santo no romance de Graça Aranha, ao mesmo tempo que o interpreta em ensaio admirável e dele se torna um dos mais ilustres historiadores e críticos. Além disso, no comentário e no debate, este volume é uma contribuição de vulto para a literatura e o pensamento brasileiro. Augusto Lins sentiu com exatidão todo o drama de Canaã, como um flagrante da realidade nacional no tempo e teceu oportunas considerações sobre as formas pelas quais se vem desdobrando, valendo-se para isso da continuidade histórica e da própria projeção de Graça Aranha.

Justifica o livro de Augusto Lins a minha afirmativa de que o Espírito Santo é o grande personagem do romance, chegando a identificar-se por vezes com o próprio Brasil. No capítulo A Canaã que Graça Aranha viu, descreve a terra e explica a gente dentro do texto da obra e através de um estudo histórico, geográfico e social da região, no qual busca determinar ainda as diretivas do pensamento e da sensibilidade do escritor, além de abordar numerosos temas locais, muitos dos quais se tornaram mais tarde de importância fundamental para a vida daquela zona, com implicações na de todo o Estado. Porque Graça Aranha era um excitador de ideias, como ainda um observador atento do fenômeno social, possuindo um sentido político muito agudo. E os comentários de Augusto Lins o comprovam com exatidão.

Não é meu Propósito discutir esta obra, nem preciso mesmo realçar a sua importância. Quero acentuar somente que um de seus valores mais marcantes é o aproveitamento de uma longa e percuciente pesquisa para o debate brasileiro, que Canaã sugere e em grande parte ainda se encontra aberto, com idênticas diretivas, variada apenas a conjuntura em que ora se propõe.

Algumas perguntas são formuladas com muita pertinência. Entre elas saber onde Graça Aranha escreveu o romance. No seu depoimento, foi em Londres, quando lá estava integrando a missão de Joaquim Nabuco, no pleito com a Itália, a propósito da Guiana Inglesa, que, “por entre névoas e fumaça, tendo com perspectiva telhados e chaminés”, evocou “a luz, a cor e a magia florestal do Brasil”. Acredita, Augusta Lins, com bons fundamentos que, anteriormente, já deveria ter começado a trabalhar no livro. No Espírito Santo concebeu o romance e deve ter tomado inúmeras notas, pois costumava Graça Aranha registrar, em qualquer papel que tivesse à mão, suas impressões, processo de que fui testemunha quando na elaboração de A Viagem Maravilhosa. Em Canaã, deve ter feito o mesmo. Não sei se houve um primeiro Canaã, revisto em Londres, nem acredito, mas é irrecusável que não só teria levado para Londres um mundo de apontamentos, como mesmo algumas partes do romance já escritas. E a prova é que, tendo seguido para a Inglaterra em 1899, dois anos antes, já publicara na Revista Brasileira assinada com o nome de Flávia do Amaral, uma das páginas do livro, sob o título Névoas do Passado, que teve acolhida entusiástica dos companheiros de redação, sendo que apenas Olavo Bilac recusara aceitar a autoria feminina, que o pseudônimo indicava. No ano seguinte, 1898, novamente a mesma revista publicava Imolação, outro episódio de Canaã. Pelo confronto se pode sentir que o texto já era, antes de chegar a Londres, definitivo. Naturalmente houve adaptações, pelo fato de as páginas terem sido publicadas isoladamente. Creio que o assunto fica assim definitivamente esclarecido.

Augusto Lins realizou um estudo completo do Canaã e seu autor, traçando um ensaio histórico e crítico, com todas as ressonâncias do romance mostrando os problemas equacionados naquele vasto painel faz ainda uma síntese da obra de Graça Aranha, da sua ardente mocidade no Recife, ao lado de Tobias Barreto, à agitação fecunda e criadora do modernismo, modernismo no plano artístico e na preocupação pelo conhecimento do Brasil, que foi uma das tônicas do movimento. Nessa investigação é que se constrói este livro, que não tem apenas um caráter apologético, mas uma substância pro fundamente brasileira, na qual se projeta o sentido da grandeza de Graça Aranha, cujo pensamento é para o Brasil uma luz que nunca se apagará.

A despeito do título Graça Aranha e o Canaã, o livro não se circunscreve a esses dois temas, amplia-se num ensaio sobre tudo quanto a novela sugere e a ação intensa do autor, englobando o plano literário o plano humano e o plano social. Costumo fazer grandes reservas à orientação atual do estudo da Literatura em faculdades e colégios. Cinge-se aos textos, com medidas milimétricas do trabalho literário, cujo valor estou longe de minimizar, mas que não podem explicar a obra em sua totalidade com os problemas; que suscita, através do estudo do meio, da gente e das condições sociais, políticas, econômicas, estéticas, que sei mais?

Exatamente um dos valores deste trabalho de Augusto Lins é dar justas dimensões à obra literária, além da análise dos personagens, dos ambientes, das cenas e do estilo, de sorte a precisar seus méritos e defeitos, sua intensidade humana. A objetivação da crítica literária a uma minúcia de texto oferece, é claro, vantagens, mas será sempre deficiente se abandona as idéias e projeções dos livros e dos autores. Um estudo sobre Canaã, que não considere mais do que a técnica literária, poderia ter qualidades apreciáveis, mas seria vazio na essência do problema, o encontro do imigrante com a terra nova do Brasil e as influências das idéias que carreia para a aculturação nacional.

Não é pela minha amizade filial a Graça Aranha nem pela minha solidariedade espiritual com ele, no movimento modernista, que esse livro me emociona e o prefácio com tanta admiração. É pelo seu valor substancial nos estudos brasileiros, na análise espectral de um grande livro, pela decomposição da luz por ele emitida, e na investigação do meio onde se desenvolve a tragédia, no deslumbramento da sua Paisagem, na aferição de seus valores humanos, no dinamismo de suas forças atuantes.

Augusto Lins não teve a ventura de conviver com Graça Aranha, nos seus últimos anos, para sentir muitas retificações em relação a certas figuras, quando procedeu a uma tranqüila revisão de valores para saber o que delas realmente lhe ficara no espírito. A algumas manteve fidelidade absoluta, dentre todas, a Tobias Barreto, de que confessou que jamais se havia separado intelectualmente, e a Joaquim Nabuco, seu amigo dileto, em quem admirava a inteligência solar, a magnificência de pensamento, a religiosidade simples e saudável, o heroísmo do abolicionista, a sagacidade do diplomata, a bondade e o equilíbrio, o esplendor da personalidade. De outros se separou espiritualmente, sobretudo quando o modernismo a levou para os jovens e os da sua geração não compreenderam a ousadia do movimento, nem acreditaram na sua penetração. Julgaram um mero episódio literário aquela eclosão de forças renovadoras.

Falei em revisão de valores, por ter sido a expressão escolhida por Graça Aranha para uma série de estudos que publicaria na revista, que fizemos juntas, de 1928 a 1930, intitulada a princípio Movimenta e depois Movimento Brasileiro, como uma espécie de caderno de notas. Assim justificou a seção Revisão de valores.

“A crítica é uma incessante revisão de valores e a que intentamos agora procura determinar o que perdura na contribuição de nossos maiores escritores ao patrimônio espiritual do Brasil. Esse fenômeno da duração é o mais raro e precioso que pode suceder a um autor. Que privilégio é esse de atravessar camadas de sensibilidade que se vão sobrepondo no tempo, permanecendo ele sempre vivo, interessando às gerações que se vão sucedendo? E por que outros, que foram dominadores do seu tempo, envelhecem rapidamente, perdem os seus escritos a vibração, restando apenas o nome isolado dos seus livros, que ninguém mais lê?”

“A nossa revisão é uma experiência crítica do valor dos escritores brasileiros, em relação às coisas do tempo, o que sobrevive e o que morreu. A nossa análise será serena e desinteressada, intervinda nela, como em todas dessa ordem, os elementos inseparáveis da sensibilidade e do juízo dos julgadores. estes se colocaram dentro do espírito moderno, procurando refletir as suas tendências mais características. E nisso estará por certo, o maior mérito desta tentativa”.

“Julgamento transitório e relativista, como tudo na vida, será revisto por outros, mas quer imprimir com segurança o depoimento dos que, nessa indagação, procuram estabelecer as grandes referências espirituais do Brasil”.

Para ela, escreveu Graça Aranha os artigos sobre Ruy Barbosa, José de Alencar, José Veríssimo e José Maria Lisboa, colaborando comigo para os demais, exceto relativo a Casemiro de Abreu, com o qual concordou sem intervir no texto. Porque discutíamos antes as figuras para fixar as diretivas do artigo.

Além desses trabalhos, citarei, a título de achega para a sua bibliografia, a sua colaboração de Graça Aranha na nossa revista, onde assinou as páginas — Meu Amigo Barrès, Luzes que o mar apagou, Joaquim Nabuco, Antônio Prado, Clemencéau e Ruy Barbosa e Clemencéau e Antônio Prado e, sem assinatura, Por Joaquim Nabuco, respostas a Medeiros e Albuquerque e Retrato do Brasil, além das notas — Povos Alegres e Povos Tristes, Manet no Carnaval do Rio, Alencar, o malcriado e O que os homens até 1870 não viram nem souberam. Publicou ainda o Movimento Brasileiro o seu discurso de agradecimento à homenagem que lhe prestou a Associação dos Artistas Brasileiros, por ocasião do lançamento de A Viagem Maravilhosa, e várias páginas desse romance, no número especial publicado naquele ensejo, em fevereiro de 1930.

Infelizmente a morte não lhe permitiu completar O meu próprio romance, que tanto esclareceria a sua vida. Augusto Lins aborda com felicidade a linha que vai entre esse livro, apenas principiado, e Canaã, através de toda sua obra, para chegar a uma conclusão muito acertada de que Graça Aranha não desenvolveu nem o seu pensamento nem sua ação até onde poderia chegar.

É que Graça Aranha coerente com seu conceito espetacular do universo, entendia que a vida devia ser vivida intensamente. Escrevia pouco, com lentidão. A ação ele a conduzia enquanto o entusiasmo o animava, renunciava se não podia exercer livremente. Por isso, deixou e recusou situações. Aposentou-se na carreira diplomática, quando divergiu do governo que relutava em tomar posição na primeira guerra ao lado dos aliados; abandonou, “por coerência” a Academia, quando ela não consentiu em modernizar-se; em moço não aceitou uma cadeira de deputado pelo Maranhão, por divergir dos processos da política de então. Seguiu em suma o conselho de Leonardo — si siete solo, siete tutto tuo.

No capítulo Canaã, centro de um sistema, Augusto Lins explica a unidade da obra de Graça Aranha, partindo do seu primeiro romance até os seus derradeiros trabalhos e perguntas aos seus amigos mais íntimos se não é no Canaã que surgem as linhas mestras do modernismo. Quanto a mim, responderia que podemos mesmo remontar à sua participação no movimento de Tobias Barreto, de tal sorte que o romance já seria uma afirmação de seu espírito revolucionário. Mas, no plano da obra literária de Graça Aranha, tem razão Augusto Lins em considerar Canaã o começo do modernismo, da ação do mestre na renovação do nosso pensamento e da nossa sensibilidade, conformando o modernismo integral à realidade brasileira.

Um trabalho como este livro, pelo valor da sua pesquisa, pela segurança de seus conceitos, pela amplitude de suas verificações e pela afirmativa de suas conclusões, marcará como um documento da maior importância na literatura, na história, na conceituação de numerosos valores nacionais, muitos dos quais podem ser considerados na planificação do nosso desenvolvimento.

Podemos divergir, mas não podemos recusar o mérito de suas sugestões, o acerto de suas verificações, a lisura da sua documentação. Graça Aranha nunca apareceu silenciosamente. Em seu derredor as divergências fervilhavam e a sua obra continua a ser motivo de interminável debate.

Espero que este livro se associe a ela e motive acaloradas discussões, com o que cumprirá o belo destino que lhe auguro nas letras brasileiras.

[In Graça e o Canaã. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1967.]

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Renato Almeida foi musicólogo e folclorista, formou-se em Direito pela Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais.Trabalhou como advogado e jornalista, colaborando para vários periódicos. Funcionário do Ministério das Relações Exteriores, chefiou por um longo período o serviço de documentação do Itamarati e representou-o também em missões oficiais no exterior. Foi um dos fundadores da Comissão Nacional do Folclore (1947), promovendo entre 1947 e 1952, em vários estados, a Semana do Folclore. Foi membro de várias associações culturais brasileiras e estrangeiras. Foi nomeado diretor-executivo da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro. Publicou vários livros sobre música e folclore: História da Música Brasileira (1926/RJ); Compêndio de História da Música Brasileira (1948/RJ); Inteligência do Folclore (1957/RJ); O Folclore na Poesia e na Simbólica do Direito (1960/Miami-USA); Tablado do Folclore (1961/SP); O I.B.C.C. e Os Estudos de Folclore no Brasil (1964/RJ); Manual de Coleta Folclórica (1965/RJ); Música e Dança Folclórica (1968/RJ); Danses Africaines en Amérique Latine (1969/RJ) e Vivência e Projeção do Folclore (1971/RJ), quase todos com reedições. Foi membro-fundador efetivo do Conselho Superior de Música Popular Brasileira do Museu da Imagem e do Som (MIS).

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