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G.S., revisor, poeta

Ainda vejo Vitória como uma ilha repleta de possibilidades, apesar de tudo que o Século XX fez com a capital do Espírito Santo.

Foram 100 anos de transformações sustentadas pela política do progresso, da expansão, do crescimento, que os ilhéus aceitaram – e, até, aplaudiram – piamente.

Mas falar do que se fez com Guananira, nesse tempo que passou, é chorar sobre o leite – ou sobre o mel? – derramado.

Considero mais conveniente falar do Século XXI e das muitas possibilidades da nossa Ilha Capital.

Vitória, por conta da sua natural limitação territorial, tende a esgotar, muito mais rapidamente que as outras grandes cidades do mundo, todos os recursos que se inventaram, ou que se inventarem, para a salvação do decrépito planejamento pregresso. Não tem expansão territorial com aterros e mais aterros; não tem pontes que, nominadas em numeração ordinal, cheguem à casa da dezena; não tem túneis; não tem metrôs de superfície, enfim não tem jeito: o resultado, mais dia, menos dia, será a exaustão.

Eu sou de uma geração que testemunhou o que a última quadra do século danoso fez com a capital do Espírito Santo.

A minha relação com a cidade está ancorada numa paixão à primeira vista. E a vista de Vitória que despertou em mim esta paixão imediata, quando aos sete anos de idade a conheci, ficará guardada no meu modesto banco de imagens, pessoal e intransferível: já era noite, quando chegamos de Ecoporanga, num trem da Vitória-Minas, que nos colheu em Colatina, eu e minha primeira namorada. Ela, que, acho, não sabia do nosso namoro, era a minha professora – do segundo ano primário – que morava aqui e me trazia naquelas férias, como prêmio talvez, para conhecer Vitória. Quando o trem começou a sair da Estação de Flexal, fui informado – ela sussurrou ao meu ouvido – que estávamos chegando à cidade dos sonhos.

À minha frente o quadro noturno da ampla janela do trem, por onde a cidade entraria para ocupar meu peito. Ao meu lado, coladinha a mim, ela, a professora (a namorada!) embalando, com seu olhar sorridente, o presente que me entregava.

E, logo depois, era a cidade – Vitória! – que se apresentava vagarosamente – na velocidade acomodada do trem que se aproximava de Pedro Nolasco – como a emergir, com suas luzes coloridas de natal, do fundo da baía escura, para daí sair voejando cintilante, feito uma miríade de vaga-lumes, pelas encostas, pelos morros e por um céu noturno de fim de primavera, que entravam, quadro a quadro, pelos meus olhos espantados e aceleravam meu coração infantil na desordem das primeiras descobertas e no fulgor faiscante daquelas paixões pueris.

Alguns anos depois deste emocionado encontro infantil eu vim morar em Vitória. Exatamente, como já disse, na quadra terminal do século danoso. Sou então da última das três ou quatro gerações que testemunharam, durante o século, a urbanização desastrada da ilha capital.

Mas por ter presenciado parte desta jornada infeliz e por ter, ao mesmo tempo, desenvolvido, na convivência prazerosa, um grande afeto pela ilha é que me disponho a não chorar sobre o leite – ou sobre o mel? – derramado, e a afirmar que vejo Guananira como uma ilha farta de possibilidades.

Somos um arquipélago de cidades que tem em Vitória a sua ilha principal. E a capital é, e continuará sendo ainda por algum tempo, o destino diário, mesmo que passadiço, de boa parte dos habitantes deste ainda crescente conjunto populacional que formamos.

Se não há como mudar a conformação espacial do aglomerado urbano e se há – se é que há, claro – a concordância de que o modelo de urbanização que o século XX desenvolveu é insustentável, tem-se que mudar este modelo.

É fácil?

Não. Eu diria até que é muito difícil.

Mas, como se diz desde o tempo em que meu tataravô era criancinha, quando a água chega àquela parte mais reservada da anatomia, o jeito é nadar, mesmo que não se tenha aprendido antes a dar salvadoras braçadas.

Se tivemos um século para deformar, teremos um século para reformar.

Se o século XX foi o século da urbanização truculenta e da opção preferencial pelo transporte motorizado individual – o século do automóvel -, temos que pensar para Vitória uma política urbana na contramão desses dois conceitos desditosos.

A possibilidade de supressão do uso de automóveis na ilha de Vitória é muito viável.

Digo isso, primeiro porque acho atraente a construção dessa frase; segundo porque a palavra viável recebe dois verbetes nos dicionários e ambos atendem à afirmação formulada; e terceiro, e certamente mais importante, porque acredito fortemente nessa proposta, que sei, inusitada.

Mas há que se explicar que isso não vai acontecer de hoje pra amanhã – a unidade de tempo que estamos usando é século.

O que se espera é que nós, habitantes ou transeuntes da capital, comecemos a perceber e a aceitar que existem várias alternativas ao automóvel para os deslocamentos urbanos.

Ao mesmo tempo é preciso que os poderes públicos estadual e municipais – tanto de Vitória, quanto das outras cidades do arquipélago – executem, conjuntamente, políticas que facilitem e incentivem a utilização de veículos de transporte coletivo e do veículo de transporte individual não motorizado, a saudável e ecologicamente correta bicicleta.

Veja só: Vitória tem uma enorme via de contorno do seu núcleo urbano e de ligação direta com, pelo menos, duas das principais e mais populosas cidades continentais, Vila Velha e Cariacica: a baía; o centro da ilha é facilmente transitável a pé; e quase toda a extensão litorânea da capital é plana e muito apropriada para os deslocamentos de bicicleta. Além disso as pontes que foram construídas exclusivamente para veículos motorizados – a Segunda e a Terceira – podem ser reformuladas a fim de admitir pedestres e ciclistas. E isso já vem sendo admitido e estudado. Já as Cinco Pontes e as pontes setentrionais da ilha – que não participam da denominação ordinal, talvez por serem menores – a da Passagem, a Ayrton Senna e a de Camburi, essas já permitem que se transite sobre elas a pé ou sobre uma magrela, portanto não carecem de revisão. A anunciada Quarta Ponte, assegura-se que também virá receptiva a pedestres e ciclistas.

A partir dessas constatações, muitas ideias podem ser concebidas. Eu, por exemplo, tenho algumas, guardadas modestamente na minha mochila de ciclista convicto e no meu embornal de poeta pedestre.

Não vou agora partilhar essas ideias, porque quero finalizar esse meu depoimento não sobre a Vitória que vi, ou que vejo, mas sobre a Vitória que virá e que, com certeza, não verei, esclarecendo por que que concebo Vitória como uma ilha repleta de possibilidades.

Mesmo que consigamos, no decorrer deste século XXI, desafogar a ilha, não vamos ter de volta aquele melífluo território insular que existia antes do século danoso. Claro que não. Mas podemos, caminhando, pedalando e navegando ou viajando em veículos coletivos, apreciar a ilha que temos e que estamos, hoje, desabituados de contemplar.

Temos ainda muitos tesouros guardados, escondidos no interior da ilha. Mas temos, também, tesouros expostos, disponíveis, claros, que a intensidade da cidade acidentada não nos permite observar.

E assim que o nosso olhar e o dos visitantes, que certamente aportarão por aqui com mais frequência, puderem pousar mais contemplativamente sobre Vitória e assim que também a Ilha se sentir mais à vontade para respirar e reflorescer, poderemos ser surpreendidos pelos efeitos que o poder regenerador da resiliência irá operar no coração de Guananira.

A Ilha do Príncipe não voltará a ser ilha, a Ponte Seca nunca mais se verá refletida nas águas da baía, nem a Praia do Suá verá ainda algum dia o mar ondulando sobre as suas brancas areias aterradas.

Mas a nossa Ilha Capital recuperará, ao final do século XXI, ao menos um pouco do mel que foi derramado ao longo do desastroso século XX.

Tomo de Tomás Morus uma frase por ele arrumada, há exatos 500 anos, no desfecho do seu relato de uma outra ilha sonhada:

Desejo-o mais do que o espero.

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