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Happy birthday to you ou in memoriam

Lenilda que vai, Lenilda que vem, Lenilda que entra e sai pela delegacia da Chapot Presvot, 272 (o professor Bicalho diria entra na e sai da delegacia), Lenilda que serve cafezinho, que varre as salas, espana os móveis, lava a varanda, limpa o quintal, pois esta é uma delegacia que se dá o luxo de ter quintal, resquício de uma antiga residência da década de 50, na Praia do Canto, salve Nossa Senhora da Boa Fortuna pela existência dessa antiga residência, salve a mesma Nossa Senhora pela existência de Lenilda, parceira quase inseparável de Pedro nas histórias que aqui rolam, o que seria de Pedro sem Lenilda, o que seria da delegacia sem Lenilda, o que seria de mim, Senhora da Boa Fortuna, sem a boa fortuna de ter Lenilda à minha disposição, Lenilda para toda obra, oh prestativa Lenilda me dê uma mãozinha que vai começar mais uma narrativa da Chapot Presvot, 272, aviai, andai depressa!

Lenilda atende de capim na boca, rodopiando-o entre os lábios como um cata-vento, “Aqui estou!”

“Você virou vegetariana?” pergunta-lhe Pedro.

“É uma mania que tenho, essa coisa de morder capim. Estava cuidando do pé de manacá e tirei um capinzinho perto da raiz. O senhor quer provar?”

“Obrigado, Lenilda. No lugar do capim prefiro uma xícara de café preto, pode ser?”

Pôde ser. Lenilda saiu da sala e de novo entrou na sala, já sem o capim na boca, mas na regência verbal correta, trazendo a xicrinha com o café que Pedro pedira, preto como só um bom conilon sabe ser.

O escrivão sorveu a bebida em goles curtos e quando terminou devolveu a xícara à faxineira. Esta a recebeu prestes a dizer o que prestes disse:

“O que o senhor vai me dar de aniversário, seu Pedrinho?”

“Seu aniversário é hoje?”

“É, e eu gostaria de receber um presente do senhor, mas sei que não vou conseguir…”

“Que é isso, minha amiga?” disse Pedro, dando um abraço na servente. “Faça o seu pedido…”

“Tenho certeza que não vai adiantar…”

“Não seja pessimista, mulher! Se estiver ao meu alcance, já está dado,” estimulou-a o escrivão.

“Eu vou pedir, seu Pedrinho, mas não se zangue comigo.”

“E por que me zangaria?”

“Porque eu gostaria que o senhor escrevesse para mim uma história passada nesta delegacia.”

“Mas, mulher, você já me fez este pedido uma vez… Está lembrada do que eu lhe disse?”

“Que já tinha gente escrevendo, não foi? Não esqueci não… Só que daquela vez eu queria que o senhor escrevesse para todo mundo ler e agora é apenas para mim, como presente de aniversário. Uma história em que aparecesse o senhor, o Dr. Digital…”

“Infelizmente não vai ser possível, Lenilda. Não é má vontade minha, mas eu ando muito borocoxô, sem a menor disposição para escrever. Depois então que perdi, em apenas um mês, três amigos muito queridos, dentre eles Renato Pacheco, estou de crista literária mais baixa ainda.”

“Eu também senti muito a morte de Dr. Renato…”

“Você conheceu Renato Pacheco?”

“Muito… Eu trabalhava numa firma que servia cafezinho no Tribunal de Justiça, quando ele foi assessor do Dr. Rômulo. Dr. Renato tratava todo mundo muito bem. Nós ficamos tão amigos que eu convidei ele para padrinho do casamento de meu filho. O senhor sabia que eu tenho um filho?” perguntou Lenilda.

“Estou sabendo agora. E Renato aceitou?”

“Não, porque o casamento foi em São Domingos do Prata e ficava difícil ele ir até lá. Meu filho casou-se com uma italiana nova, uma mulher trabalhadeira que dá gosto ver, dessas das canelas grossas. O senhor sabia que Dr. Renato enjoava quando andava muito tempo de carro? Ele me contou que uma vez quis ir a Garrafão com uns amigos e só de subir pela estrada vomitou no meio da viagem. Vomitou tão forte que a cachorrada da montanha desandou a latir em coro, desde o lugar onde o carro teve de parar até o alto da serra. Foi latido que não acabava mais, um atrás do outro. A viagem foi interrompida e todos voltaram para Santa Maria do Jetibá. Mas mesmo sem ir ao casamento, Dr. Renato mandou um presente para meu filho. Adivinhe o que foi, seu Pedrinho?”

“Vou dar um chute: foi um liqüidificador?”

“O senhor está frio… Tente outra coisa…”

“Um paneleiro…?”

“Está morno, seu Pedrinho. Mais uma…”

“Não faço idéia, Lenilda.”

“Tente, homem de Deus! O senhor não conhecia Dr. Renato? Imagine o que ele poderia ter mandado de presente?”

“Pode dizer, que eu desisto.”

“Foi um jogo de panelas de barro, seu Pedrinho! Um jogo completo, com panela pra moqueca capixaba, panela pra fazer pirão, uma frigideira de barro e, de quebra, um cinzeirinho igualzinho ao que o senhor tem em sua mesa. Tão fácil, seu Pedrinho. O senhor se esqueceu que Dr. Renato era folclorista?”

“Foi um presente com a cara de Renato Pacheco,” reconheceu Pedro.

“E apesar do exemplo do seu amigo o senhor não quer me dar uma história de presente?” atacou Lenilda, numa rasteira de beque argentino.

“Calma aí, mulher. Desse jeito você está fazendo chantagem emocional!” protestou o escrivão.

“É para mostrar a importância que dou ao presente que gostaria de ganhar do senhor…”

“Nunca vi uma pessoa tão obcecada como você, Lenilda,” reagiu Pedro, despejando no ar uma maçaroca de fumaça extraída de um cigarro que já ia pelos calcanhares. E acrescentou, depois de esvaziar os brônquios e a pleura: “Mas hoje você está desculpada. E apesar do golpe baixo, mas in memoriam de Renato Pacheco, vou satisfazer o seu pedido.”

Dizendo o quê, Pedro retirou de uma surrada pasta com elástico nas pontas, guardada na gaveta da mesinha da máquina Olivetti, algumas folhas datilografadas que passou à faxineira: “Eis o seu presente.”

“Eu não acredito, seu Pedrinho! Juro que não estou acreditando,” disse Lenilda, revirando as folhas de papel, radiante e emocionada, emocionada e radiante. “É mesmo uma história sobre a delegacia?”

“A única que escrevi sobre este antro, como diz o nosso delegado…”

“E ele aparece na história?” indagou a faxineira.

“Aparece,” confirmou o autor.

“E o senhor também?”

“Também, Lenilda.”

“Quem mais aparece?” interrogou a faxineira com o rosto em festa.

“Você vai ler a história ou quer que eu conte tudo?” atalhou Pedro, rindo.

“Vou ler, seu Pedrinho. Mas um treilerzinho antes da leitura é bom para assanhar a curiosidade. É como se fosse uma dessas chamadas que a Globo faz para as suas novelas.”

“Então vou lhe dizer que a história é também sobre o Mosca Azul, lembra-se dele?” perguntou Pedro.(*)

“Não, seu Pedrinho. Eu entrei na delegacia um mês depois dele ter passado por aqui…”

“Pois você vai ficar sabendo os detalhes dessa passagem.”

“Hoje mesmo vou ler a história toda. E estou tão satisfeita que quero lhe agradecer com um carinho em particular. Vamos até o cajueiro, lá no fundo do quintal?”

“Até o cajueiro…?” titubeou Pedro. “Não é onde o senhor se esconde para descansar?”

“Que é, é, mas o que nós vamos fazer lá?” perguntou Pedro, em atitude de retranca.

“Eu não disse? Vou mostrar minha gratidão pelo presente que o senhor me deu. Anda logo, seu Pedrinho! Vem comigo!”

“Vê o que você está arrumando, mulher. O pessoal da delegacia tem a língua do tamanho de um bonde…” disse Pedro, deixando-se, porém, arrastar pela amiga.

“Esquece os linguarudos, seu Pedrinho. Garanto que o senhor vai gostar do que eu vou fazer,” afirmou Lenilda com malícia.

Chegando ao cajueiro, onde havia um banco de madeira meio desconjuntado, a faxineira disse para o arrastado Pedro: “Vamos sentar aqui, lado a lado. Mais pertinho, seu Pedrinho… Assim está legal!”

“E agora, Lenilda?” indagou um Pedro ressabiado, com as pernas apertadas uma contra a outra.

“Agora vamos fazer uma coisa que nós nunca fizemos. Sabe o que é?”

“Estou com medo até de perguntar…”

“Que bobagem, seu Pedrinho. Nós vamos apenas fumar um cigarrinho juntos…”

“Mas você não fuma, Lenilda…!” disse Pedro, soltando os joelhos para os lados.

“Mas hoje vou fumar o primeiro, pelo presente que o senhor me deu. Pegue um cigarro pra mim e outro pro senhor, acenda o meu com o seu isqueiro, e me passe o isqueiro para eu acender o seu. Desse jeitinho mesmo, meu amigo, trocando de mãos. Agora vou dar uma tragada forte. Será que vou conseguir, seu Pedrinho? Se eu engasgar o senhor bate nas minhas costas e diz São Brás três vezes. Mas bate devagar, seu Pedrinho, sem me machucar… Deixa que o santo faz o resto.”

(*) Nota dos editores: A quem interessar possa, a história tem por título “Ser e não ser, ou um assassinato em insensato grau“, e abriu a série de narrativas da CHAPOT PRESVOT, 272.

[Este texto integra a série intitulada CHAPOT PRESVOT 272, de Luiz Guilherme Santos Neves]

Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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