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As escadarias de Vitória

I

Uma cidade é tanto mais querida quanto mais conservar o passado. No passado se formou a nacionalidade. Fustel de Coulanges, na Introdução do primeiro volume de seu A cidade antiga diz: “Felizmente o passado não morre nunca completamente para o homem. O homem pode esquecê-lo, mas conserva-o sempre consigo”.

De fato, em cada um de nós residem reminiscências auridas de nossos maiores, dos acontecimentos marcantes de nosso chão, da nossa gente, de nossa família. Esses sucessos se encadeiam e formam, com a imaginação popular, o que nós chamamos de “tradição”. A tradição marca a personalidade da clã. Ela, tradição, se enriquece gradativamente pela índole do povo no tempo e no espaço, e se corporifica, através dos anos, em patrimônio. Povo sem patrimônio equivale a uma casa abandonada, sem moradores, sem alma, uma tapera enfim.

II

Nem tudo que é velho é antigo. A antiguidade tem nobreza e hierarquia. Saber aquilatar o valor do antigo é tarefa que não cabe a qualquer pessoa. É necessário conhecimento, critério e saber discernir.

Este pequeno introito me foi sugerido pela leitura de A Gazeta de 27 de março passado, sexta página, sob o título de “Turismo”. A imprensa capixaba está dando ampla publicidade ao que se convencionou chamar de Indústria do Turismo. Bela e louvável iniciativa do governo. Os jornalistas, J. C. Monjardim Cavalcanti e Marien Calixte, esposaram a tarefa com entusiasmo e inteligência. A empreitada é dura, mas começa a sazonar os primeiros frutos, Depende da pecúnia, como diriam os tribunos da velha Roma. Divulgar a riqueza histórica e paisagística do Estado, é valorizar o que nada nos custou e que muito proveito nos pode trazer. A reportagem a que me refiro, de autoria dos senhores José Carlos Corrêa e Voltaire François. A “cidade das escadarias”, é muito judiciosa e regularmente ilustrada, quando chama atenção para que… “o capixaba precisa descobrir as escadarias que sua cidade possui e que são autênticos monumentos de história, de arte e de beleza…” Há certo exagero quanto a arte e completamente distorcida a história que os repórteres delas possam sugerir. Permito esclarecer o tópico para que não fique registrada uma inverdade prejudicialíssima do historiador do futuro. Sou contemporâneo às transformações urbanísticas da cidade.

Fui partícipe de muitos projetos de várias obras públicas de Vitória. Vejo-me obrigado a depor em benefício da verdade histórica.

III

O prefeito Washington T. de Vasconcelos Pessoa — bacharel — que exerceu o mandato de 20.01.1913 a 19.11.1913 foi eminentemente legislador. Não mandou construir escadarias. Melhorou algumas ruas da Cidade alta, notadamente a rua Pedro Palácio, arborizando-a e dando-lhe calçada com as chamadas “pedras portuguesas”. Fundou a Caixa de Pensão Municipal, que recebeu seu nome.

As escadarias de palácio da Santa Casa de Misericórdia e a do Carmo foram obras de Jerônimo Monteiro (1908-1912). No governo de Florentino Avidos (1924-1928) se construíram as escadarias ligando a avenida Cleto Nunes à rua Francisco Araújo, a da Praça 8 de setembro à rua Pedro Palácio (Maria Ortiz), a da Chácara da Piedade, fim da rua 7 de setembro ao morro São Francisco, a de Nicolau de Abreu, ligando a Avenida Capixaba à ladeira Pernambuco. Américo Monjardim, prefeito (2.12.1937 a 4.09.1944) construiu a escadaria São Diogo ou Couto Texeira, ligando a Praça Costa Pereira ao fundo da Catedral, antiga ladeira da Pedra como era conhecida e vários acessos em degraus em Vila Rubim. O prefeito Paulino Müller, 22.04.1935 a 04.07.1936, fez uma série de acessos em Vila Rubim, umas escadas incômodas e muito penosas e de pouco alinhamento. Eram necessárias ao povo e se justificaram. Recordemos um pouco de história.

IV

Escadaria do Palácio

O Palácio Anchieta, sede do governo, é o antigo Colégio dos Jesuítas, construído simultaneamente com a Igreja São Thiago, que lhe ficava anexa. Foi iniciado em 1551 pelo padre Affonso Braz e continuado pelo padre Braz Affonso. Comunicava-se com a o mar pela ladeira padre Ignácio. Padre Ignácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus, foi canonizado em 1622. A ladeira transformou-se em escadaria com patamares amplos, revestida de alvenaria poliédrica e enquadrada em dois muros longitudinais que a amparavam. Não há, nas crônicas dos padres jesuítas, referência de quando se operou esta transformação, apenas se conhece que, na data da expulsão da Ordem, pelo Marquês de Pombal, 1759, a escadaria existia. Há documentos.

Jerônimo Monteiro, no seu histórico e insuperável governo (1908-1912), reformando o Palácio, modificou também a escadaria. Foi um projeto e construção do engenheiro francês Justin Norbert.

A igreja São Gonçalo, cuja construção data de 1818, é obra da confraria do mesmo nome, sobre capelinha de igual invocação, já figurada na planta da cidade levantada em 1767. Era irmandade de homens de cor. Nada tem a ver com a ladeira Padre Ignácio. Jerônimo Monteiro construiu a Santa Casa de Misericórdia e a escadaria foi conseqüência. O construtor foi André Carloni. A do Colégio do Carmo, antigo Forte (1667) é também obra já centenária e modificada após 1998. O acesso à igreja do Rosário é autêntica, com poucas modificações e data do século XVIII. Sua provisão canônica tem a data de 14 de setembro de 1765.

Foi o presidente Florentino Avidos (1924-1928), quem mais se preocupou em prover a cidade alta de acessos compatíveis com a população. Abriu a rua Dom Fernando e transpôs a rua Caramuru com o belo viaduto que a comunica com a rua Francisco Araújo. Única passagem superior construída em Vitória até a presente data. Concluiu a rua Nestor Gomes que por muito tempo o capixaba denominou de “ladeira Boa Ideia”. Mais ainda. Construiu a escadaria da Avenida Cleto Nunes, facilitando a comunicação do Moscoso com a escola Modelo e Normal, e acabou a fétida ladeira Maria Ortiz. Quem construiu a Escadaria famosa foi Politti, Derenzi & Companhia. Custou a importância de trinta e nova contos de réis — trinta e nove salários mensais de um engenheiro, naqueles tempos da falecida primeira república! Ficou assim urbanizada a famosa e secular subida celebrada nas velhas crônicas da Cidade de Nossa Senhora da Vitória. É o logradouro quatrocentão. Chamou-se Ladeira do Trapiche, Ladeira do Pelourinho e Maria Ortiz, hoje escadaria muito pouco cuidada.

Florentino Avidos construiu outros acessos escalonados de menor importância embora: Escadaria da Piedade, da Ladeira Pernambuco e Nicolau de Abreu.

O doutor Américo Monjardim — prefeito de 02.07.1936 a 04.09.7944 —, mandou construir a Escadaria São Diogo, ligando a Praça Costa Pereira aos fundos da Catedral. Suprimiu a difícil subida que se chamou Ladeira da Pedra. Couto Teixeira e São Diogo. Houve, nas cercanias, lado esquerdo de quem sobe, o Fortim São Diogo, por isso esse apelido.

Vitória é muito pobre de monumentos históricos. A Capitania não teve os famosos ciclos do açúcar, do ouro e do boi, que tanto favoreceram os Estados de Minas e Rio de Janeiro.

[DERENZI, Luiz Serafim. As escadarias de Vitória. In A Gazeta, 23/04/1969. Reprodução autorizada pela família Avancini Derenzi.]

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Luiz Serafim Derenzi nasceu em Vitória a 20/3/1898 e faleceu no Rio a 29/4/1977. Formado em Engenharia Civil, participou de muitos projetos importantes nessa área em nosso Estado e fora dele. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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