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Ingleses na costa – Impressões de um aspirante de marinha sobre o Espírito Santo em 1851

Corveta de guerra "Driver", irmã da "Geyser". James Cowan - "The New Zealand Wars".
Corveta de guerra “Driver”, irmã da “Geyser”. James Cowan – “The New Zealand Wars”.





Pelo menos dois marinheiros ingleses, documentadamente, navegaram, em diferentes épocas, o litoral do Espírito Santo, deixando registros de viagem. O primeiro foi Anthony Knivet, grumete na expedição que o célebre corsário Thomas Cavendish empreendeu ao Brasil no começo da última década do século XVI; o outro, o aspirante a oficial de marinha Edward Wilberforce, integrante da oficialidade da corveta de guerra Geyser que esteve no Espírito Santo na primavera de 1851 sob o comando do capitão de fragata Edward Tatham, em missão repressiva ao contrabando de africanos.

Distanciados entre si cerca de dois séculos e meio, súditos, respectivamente, das notáveis rainhas Elizabeth II e Vitória, da Inglaterra, Knivet e Wilberforce deixaram-se tomar por idêntico impulso narrativo pondo no papel as principais impressões que colheram de suas passagens pelo litoral brasileiro. Contribuíram, desta forma, para que seus apontamentos e registros se tornassem documentos de valor para a historiografia como fontes de informação de nossa história.

No relato de Knivet, que cobre a navegação de corso que Cavendish empreendeu, em 1591, nos mares da costa sul brasileira, a parte relativa ao Espírito Santo é bastante sucinta. Nela o marujo limita-se a narrar, como testemunha participante, a frustrada tentativa de saque ensaiada pelos ingleses contra a vila de Vitória. Seu depoimento foi editado sob o título “Vária fortuna e estranhos fados” pela Editora Brasiliense Limitada (São Paulo, 1947) em versão do original inglês feita por Guiomar de Carvalho Franco, da qual se transcreve o trecho que trata da investida contra Vitória:

“No nosso navio havia um português que recolhêramos da embarcação apreendida, em Cabo Frio; este português, que fora conosco ao estreito de Magalhães, e aí testemunhara a nossa falência, falou-nos duma vila chamada Espírito Santo, dizendo-nos que poderíamos chegar à frente da mesma com os nossos navios, e aí, sem perigo, lograríamos tomar muitos engenhos de açúcar e boa quantidade de gado.

As palavras deste português fizeram-nos renunciar ao projeto de ida a São Sebastião, tomando o rumo do Espírito Santo; em oito dias chegamos à embocadura do porto, acabando por lançar âncora na baía e mandar nossos botes sondar o canal; não encontrando estes nem a metade da profundidade que o português nos dissera que encontraríamos, supôs o general que o luso nos havia traído e, sem nenhuma comprovação, fê-lo enforcar de imediato. Neste local, todos os fidalgos que restavam a bordo manifestaram desejo de ir à terra tomar a povoação. O general não o queria de modo nenhum, objetando-lhes diversos inconvenientes; nenhum argumento porém os convenceu, e foram os moços tão insistentes que o general, escolhendo cento e vinte homens dentre os melhores que possuía em ambos os navios, enviou ao capitão Morgan, praça de terra singularmente boa, e ao tenente Royden, como comandantes neste empreendimento. Desembarcaram, pois, diante dum pequeno forte, com um dos seus botes e dele expulsaram os portugueses; o outro bote seguiu mais além, onde houve uma escaramuça muito violenta, e a vida desses moços depressa se abreviou, pois apearam num rochedo fronteiro ao forte e à medida que saltavam fora do bote, escorregavam com suas armas para dentro do mar; assim a grande maioria deles pereceu afogada. Em conclusão, perdemos oitenta homens neste lugar, e dos quarenta que se salvaram, nem um só voltou sem uma flechada em seu corpo, chegando alguns a ter cinco e seis ferimentos.”

O depoimento de Wilberforce sobre o Espírito Santo é bem mais extenso e informativo do que o de Anthony Knivet. o marinheiro vitoriano levou, sobre seu compatriota e antecessor, a vantagem de contacto mais demorado com a costa capixaba ao sul de Vitória, tanto com o litoral em si, por onde navegou em patrulhamento vigilante, quanto com algumas localidades que conheceu, inclusive a própria sede da então Província. Aliás, é a partir da cidade de Vitória que Wilberforce começa seus informes sobre o Espírito Santo.

Fica-se sabendo, assim, que os ingleses tiveram oportunidade de visitar a cidade, acanhada e sem conforto, renitentemente colonial embora aprazível em suas condições naturais. Aproveitando folgas e criando momentos de lazer, a oficialidade da Geyser percorreu os arredores de Vitória, enfiou-se por florestas e rios cujos nomes Wilberforce não registrou, enfrentou chuvas torrenciais, adquiriu peças de rendas e redes de dormir, viu como se fabricavam as redes de algodão cru. No palácio do governo os oficiais britânicos foram recebidos pelo presidente da Província, o bacharel José Bonifácio Nascente de Azambuja.

Impedido, por motivo de saúde e por proibição médica, de ir ao Convento da Penha, dele Wilberforce recebeu singela descrição feita por seus companheiros de bordo que não convenceu ao cronista, tendo-a atribuído ao espírito herético dos informantes.

Vê-se, por aí, que o escritor marinheiro entremeia informações de sua observação pessoal com outras, resultantes do testemunho de terceiros, chegando até a transcrever notícia de jornal brasileiro, cujo nome não cita, sobre a recepção que houve a bordo da Geyser reunindo personalidades da Província e que terminou sob o clarão de rojões.

Junto com os registros sobre a terra e seus habitantes, seus costumes e produção, Wilberforce, dando mostra de sua formação de oficial de marinha, anota referências, com valor de orientação náutica, sobre localidades do litoral espírito-santense para uso dos navegantes da época nas quais as indicações utilizadas são prosaicos identificadores da costa.

Olhos postos nos escravos contrabandeados, a eles faz diversas menções inclusive acerca dos locais em que se davam desembarques clandestinos, como em Guarapari e Piúma, por exemplo.

Como convinha a observador crítico dotado ainda de pendores literários, Wilberforce incluiu em sua narrativa pitadas de ironia e humor bem mais interessantes do que os extravasamentos líricos a que dá vazão ante a beleza natural da baía de Vitória que ele verteu em marolas poéticas de discutível qualidade literária.

Depois do regresso à Inglaterra, o texto de Wilberforce foi editado pela primeira vez, em Londres, em 1856, sob o título Brazil viewed through a naval glass with notes on slavery and the slavetrade (Brasil visto através de uma luneta com notas sobre escravidão e tráfico de escravos). A esta edição fez referência o escritor Norbertino Bahiense na obra O Convento da Penha (Vitória, Escola Técnica de Vitória, 1952), reportando-se ao ensaio crítico publicado por Afonso de E. Taunay no Jornal do Comércio, de 26 de agosto de 1945, denominado “Impressões de Vitória e seus arredores”.

Impressões do Espírito Santo de 1851 foi bem o que captou Wilberforce através de sua esquadrinhadora luneta de oficial de marinha, e que se contêm nos capítulos XV e XVI do texto original, ora publicados em separata, visando-se a colocar ao alcance do público interessado mais um relato de um viajante estrangeiro que esteve em terras e mares capixabas no século XIX.

Luiz Guilherme Santos Neves

* * *



PREFÁCIO[ 1 ]

Este volume contém um simples relato do que vi na costa do Brasil. É forçosamente incompleto e fragmentado; a condição de um aspirante de marinha não lhe permite absorver muitos conhecimentos sobre os lugares que visita. Mas, seja como for, é todo de minha autoria, à exceção de duas ou três passagens, pelas quais tenho que agradecer a um cavalheiro, cujo nome não publico, uma vez que os oficiais do Serviço a que Pertence são avessos a qualquer publicação por parte de seus subordinados. Enquanto me empenhava em contar minha história de maneira divertida, entremeei diversas informações práticas relativas a ancoradouros e baías da costa, que poderão ser úteis a capitães que naveguem por aquelas bandas.

Edward Wilberforce.
28, Old Burlington street
2 de outubro de 1855.
* * *



CAPÍTULO 1[ 2 ]

Rio e cidade do Espírito Santo. Lenda. Fortificações. A vila velha. O que é a verdade? No campo. Redes de algodão. Vendedores. Festividades. Excelsior! Pássaros de várias plumagens. Navios negreiros.

A cidade mais importante entre Rio de Janeiro e Bahia é a do Espírito Santo, que era o limite norte de nossa área de patrulha. O verdadeiro nome dessa cidade é Vitória, mas estando situada às margens do rio Espírito Santo, assumiu o nome deste, de acordo com o costume do país. Localiza-se a cerca de 250 milhas do Rio de Janeiro. Esse rio deságua na baía do Espírito Santo, onde ancoramos à espera de um piloto. A entrada do rio é estreita, ladeada por duas altas montanhas, das quais o Morro do Moreno é a mais notável. Permanecemos ali um dia até que algum piloto viesse, obedecendo ao nosso sinal. Finalmente um bote encostou, trazendo um homem vestido com uma espécie de uniforme naval, que melhor seria chamado multiforme, pela ausência de regularidade e ordem. A pessoa apresentou-se como piloto e afirmou que poderíamos atravessar a barra na preamar, quando haveria três braças de profundidade na parte mais rasa. Medimos duas braças e um quarto, de modo que era necessário certa precaução ao subirmos a corrente. Avançamos a passo de caracol, descendo os prumos constantemente, com capitão, arrais e piloto sobre a caixa das pás.

A paisagem em torno era tão extraordinária que um piloto poeta teria certamente deixado o navio encalhar, pela constante admiração das margens. O lado esquerdo era montanhoso, o direito, um volume de água salpicado de ilhas cobertas de cactus, embora não houvesse terra alguma sobre elas, não sobrando espaço nem para duas pessoas em pé. A água entre as ilhas era calma e bonita, como se não conhecesse outra forma. No cume de uma das montanhas do lado esquerdo, entre rochas fantasticamente empilhadas uma sobre a outra, como se tivessem sido petecas de gigantes, erguia-se altiva o que pensamos ser uma fortaleza e que, no entanto, revelou-se um convento.[ 3 ] Às vezes abria-se uma bela enseada, mostrando praias cobertas com folhagem verde-escura, e algumas casinhas brancas ao fundo, repousando tranqüilas e à vontade num oceano de beleza. Pequenas rochas saltavam da água em ambos os lados, enquanto a vegetação derramava-se das montanhas mais altas. Era o lugar para poesia, e o viajante exausto poderia ser perdoado por dar vazão a seus sentimentos em verso e encher uma página, more majorum.[ 4 ]

Levemente desliza o nosso navio
Como uma ave marinha de asas abertas
Através de estreitas correntes onde a fragrância insufla
Fecundantes sopros primaveris.
Altas, em uma das margens, às grimpas das montanhas
Enrugam rochas, amontoadas sobre rochas,
De onde muitos ribeiros se precipitam
Claros como fios de prata.

Ali, no cume, entre rochedos eretos
Ergue-se velho edifício
Que deve ter desafiado os mais violentos embates da tempestade
Ou as mãos presunçosas do inimigo.

Do outro lado ilhas baixas se avistam
Onde os verdes cactos vicejam
E onde por baixo de ramalhenda cortina
Descansam os beija-flores.

E o enrugado oceano brandamente sorri
Onde, em suave quietude, repousam
Os espessos cachos de pequenas ilhas
Em seu seio enganadora[ 5 ]

Uma rocha à entrada de uma dessas enseadas tinha uma pequena cruz branca de pedra erguida sobre ela. Ao inquirirmos sobre o significado daquilo, a tradição, falando pela boca do piloto, nos informou que, toda vez que os escravos de Vitória têm uma folga se dirigem a uma pequena vila a meio-caminho rio abaixo para festejar. Não era coisa rara os escravos se embriagarem e discutirem — na verdade, era o habitual. Não era menos comum sacarem-se facas e alguém do grupo ser morto. Se, nesse trágico desfecho da festa, o assassino conseguisse embarcar em sua canoa e alcançar a pedra da cruz antes de ser capturado, estava salvo; todavia, se apanhado antes, pagava com a vida o seu crime. Este certamente é um costume curioso, e nos lembra as cidades de refúgio de que nos fala o Velho Testamento.

As únicas fortificações que observei foram dois pequenos fortins de barro, contendo, a imaginar pelo seu tamanho, seis ou oito canhões cada. Estes não pareciam prometer grande segurança, uma vez que uma bala de 68 libras, bem arremessada, lançaria forte, paredes e tudo aos quintos dos infernos. Passávamos exatamente agora sob a sombra do imponente Pão de Açúcar,[ 6 ] através de um estreito canal, os cutelos da embarcação quase roçando as rochas de cada lado. No minuto seguinte, defrontamos a cidade e o porto, no qual ancoramos em quatro braças. Apesar de haver alguns belos prédios nesta cidade, entre os quais o palácio do governador (?)[ 7 ] é o mais visível, sua aparência geral é tudo, menos florescente. A maioria das casas é pequena, suja e insignificante, enquanto as construções maiores rapidamente se vão deteriorando.

A meio-caminho rio abaixo fica uma vila, chamada vila velha, na qual os principais artigos aí produzidos, isto é, redes de algodão, são vendidos a preço mais barato que em qualquer outro lugar. A gentileza de um de meus companheiros[ 8 ] me permite dar a seguinte descrição da fábrica, que a indelicadeza do médico me impediu de visitar:

Alguns de nós descemos à vila velha, situada na margem direita do rio, a cerca de uma milha da foz; abaixo do convento e no fundo de uma linda enseada. Há aí muitas fábricas de redes de algodão, e nós entramos em várias casas à sua procura. Um estoque era logo apresentado, com preços variando de seis a oito mil réis. Como o grupo estava ansioso por passear, não pude fazer muitas observações a respeito da fabricação; mas, pelo visto, o processo parecia muito simples. As armações tinham sete pés de comprimento por três de largura; e o material era algodão sul-americano cru, muito resistente.
Tendo finalmente concluído as compras a contento, partimos para o convento que se elevava sobre nós. Da vila, a estrada prosseguia em ziguezague através de uma pequena floresta, e pelos vestígios de calçamento mostrava sinais evidentes de que outrora muito mais cuidado lhe fora dispensado do que agora. A posição do convento é muito conspícua, e como está situado no pináculo de uma alta montanha, dali se vê uma longa extensão da costa de norte a sul. A face da montanha voltada para o rio é quase perpendicular, mas a outra descai suavemente até uma imensa planície coberta de mata, que a sudeste se estende por milhas ao longo da, costa e, a oeste, até encontrar uma cadeia de montes férteis.

O convento em si tinha pouca coisa digna de registro.[ 9 ] A capela era pequena, embora possuísse um órgão, e o convento era usado por freiras mestiças, nenhuma das quais foi vista por nós, hereges.

Apesar de meu colega não ter visto nenhuma dessas internas, os grumetes, que desembarcaram sob o comando do mestre de armas, afirmaram que viram algumas delas vestidas do modo mais primitivo. Deve-se lembrar, porém, que esses jovens eram protestantes, e os protestantes nunca conseguem dizer a verdade, mesmo quando não têm motivo para agir de outra maneira. Esses jovens provavelmente aprenderam a mentir desde o berço, e poderiam não saber que todos os santos são virtuosos, ou então poderiam pretender lançar um estigma sobre a santidade de “Sua Santidade”.

Quando desembarquei pela primeira vez em Vitória, encontrei-a invadida por um grupo de marinheiros bêbados, cujos rostos facilmente reconheci. Tinha sido concedida folga a nossos homens, e as conseqüências disso podem ser facilmente imaginadas. Alguns estavam vagueando desvairados pela cidade, outros sentavam-se nas esquinas, como lamentadores queixando-se das loucuras e vícios da época, e produzindo surpreendentes textos para suas próprias meditações. Depois de espiar em algumas lojas, e deparar uma lamentável escassez de sólidos de todo tipo, e uma igualmente lamentável abundância de líquidos, partimos para o campo, emergindo das ruas imundas como borboletas de seus casulos, trocando toda a miséria de uma cidade brasileira pelo frescor de um campo brasileiro. A brisa afagava suavemente o prado perfumado e sussurrava musicalmente por entre a floresta, beijando as tranças das árvores, trazendo em suas asas os mais puros deleites. Passamos por uma colina coberta de grama, e seguimos caminho através de uma floresta. Estávamos em tal labirinto de beleza que mal podíamos parar para contemplar as largas folhagens, firmes e rígidas como espadas, as partes inferiores tingidas do mais delicado vermelho, que se erguiam a cada lado da trilha. Além desse bosque, Paramos em uma campina, no cume de um monte, e observamos então o rio, serpenteando em curvas graciosas pelo vale, as marolas incontáveis refletindo os raios do sol, enquanto casas agrupavam-se ao longo das margens, destacadas por arbustos verdejantes em viçosa exuberância.

Tais coisas enchem o coração de silêncio
profundo, porque, supõe-se, seja esse o seu papel.[ 10 ]

Nessa campina havia uma casa, onde paramos para conseguir algo de beber. Uma mulher, um menino e um cachorro eram os únicos moradores. Este último, depois de latir e me morder, desapareceu pelos fundos; os dois primeiros foram mais corteses. O garoto apanhou para nós um coco de um coqueiro perto da casa, derrubando-o com uma vara comprida. Ao pé da árvore havia uma pedra, na qual se refletia minuciosa e cuidadosamente o delicado rendilhado das folhas do coqueiro. Em outra pedra, várias espigas de milho estavam secando ao sol. A palha das espigas é usada pelos brasileiros para o preparo de cigarros, sendo o tabaco enrolado nela tal como se faz na Turquia com finas folhas de papel.

Tendo apreciado suficientemente o interior, estávamos melhor preparados para explorar a cidade. Fomos até a residência do governador, e encontramos aquele autêntico potentado, um pequeno e robusto cavalheiro, vestindo casaco azul com botões de latão. Caminhamos pela praça coberta de capim, que tinha evidentemente produzido sementes, e visitamos algumas lojas em busca de redes e renda brasileira. Consegui adquirir uma rede certamente menor e mais cara do que teria sido na fábrica, mas nem por isso de se desprezar.

Contavam-se histórias a respeito dessas rendas. Um tenente comprara algumas de finíssima qualidade, que se comprazia em considerar uma pechincha, e que agradariam uma certa pessoa na Inglaterra. Se a referida pessoa fosse tão perita em renda como era de se esperar de alguém do belo sexo, logo perceberia que o artigo brasileiro havia sido feito na Inglaterra, e exportado para os Brasis. Ela então perguntaria o preço, e informaria a seu viajado amigo que a mesma renda poderia ser comprada no estabelecimento dos Senhores Bobbins por um quarto do que fora pago por ela no Espírito Santo. Às vezes aprendemos mais em casa sobre os lugares que visitamos do que nos próprios lugares, com os olhos bem abertos e os ouvidos bem atentos. Achamos a renda brasileira extremamente grosseira, e de boa qualidade só a que vinha da Inglaterra. Os vendedores, não tendo motivos para ocultar esses pormenores informavam-nos francamente a sua procedência.

Pode parecer curioso para uma nação de comerciantes, mas o fato é que os brasileiros têm certa aversão ao trabalho de vender. Nenhum John Gilpin brasileiro teria apeado de seu cavalo à vista de dois fregueses. Na Inglaterra, se alguém perguntar por alguma coisa que o vendedor não tenha em estoque, este insistirá em vender outra coisa que considere um substituto à altura. No Brasil, se alguém perguntar por alguma coisa que o vendedor tenha em estoque, este insistirá em que o freguês peça outra coisa de que ele não disponha, para poupar-se o trabalho de atendê-lo.

Graças a alguns meninos maltrapilhos, cujos corações foram abertos com o presente de um vintém cada, conseguimos algumas galinhas e ovos, retomando a bordo, onde encontramos um grupo de convidados reunidos. Um acontecimento tão elegante não poderia prescindir o seu vates sacer[ 11 ], que adequadamente, assinando-se “nosso correspondente”, fez o seguinte relato da cerimônia, que apareceu em algum jornal.

FESTIVIDADFS NO ESPÍRITO SANTO[ 12 ]
(de nosso correspondente)

Ontem um grupo, consistindo de alguns membros da elite desta cidade, foi a bordo do vapor de guerra inglês, a convite do capitão. Depois de compartilhar uma refeição, servida com grande esplendor no camarote do nobre milorde, o grupo passou ao convés superior, onde um toldo decorado com bandeiras cobria suas cabeças. A música começou a tocar, e os convidados entregaram-se à nobre diversão da dança. O galante capitão instou um dos jovens oficiais do navio a tomar parte da dança, tomando a mão de uma jovem; mas este convite o indelicado oficial recusou, desculpando-se polidamente, e sem empregar a exclamação nacional inglesa. Evidentemente os britânicos assumiram seus melhores modos para nos recepcionar a bordo, pois nem sequer uma vez durante minha visita escutei a praga nacional God dam! É de uso tão freqüente que um erudito inglês publicou um livro mostrando que ela é proferida a cada cinco minutos por todo homem, mulher ou criança da Grã-Bretanha. Isso é certamente espantoso. Observei um grupo de aspirantes em pé, afastados dos que dançavam, conversando com um pequeno pajem moreno, cujo traje era elegante, consistindo em um chapéu lustroso com uma fita dourada, jaqueta azul com botões amarelos e um par de botas de cano alto. Uma senhora idosa era observada com especial atenção por esses aspirantes, e percebi que circulavam alguns rumores a respeito de sua idade, alguns assegurando que ela tinha trinta e dois anos, outros, apenas dezoito. Por informação de determinada pessoa, fui capaz de confirmar que esta conjectura estava correta; mas como nossas mulheres envelhecem quando ainda muito novas, comparativamente falando, e essa senhora tinha um filho de quatro anos, e um outro de idade mais tenra, a primeira opinião não deveria ser considerada infundada.

Terminada a dança, os marinheiros no castelo de proa entretiveram os visitantes com algumas canções, uma das quais era o pedido de um negro a uma moça chamada Susana para que não chorasse por ele, pois estava vindo vê-Ia, causando efeito impressionante, já que todos os marinheiros cantavam o refrão em coro.[ 13 ] O cantor principal teve uma vida extraordinária, tendo até se apresentado uma vez no palco. Em minha próxima carta, pretendo iniciar uma biografia desse homem notável.

Retornando os convidados à terra, o cordial e alegre capitão ordenou que luzes azuis fossem acesas e rojões disparados, para iluminar o retorno deles. Os fogos de artifício clareavam os prédios próximos à beira-mar, e iluminavam os moradores atônitos, que se juntavam nas ruas, boquiabertos e maravilhados. Quando subi atrás da carruagem de minha esposa, não pude deixar de lançar um olhar de despedida ao navio, em prejuízo de minhas meias de seda, que foram salpicadas de lama.

Hoje o vapor brasileiro Maria chegou aqui, e esteve ocupado carregando madeira, geralmente usada por vapores brasileiros em lugar de carvão, que ficaria muito caro. Não eram boas as relações entre o capitão e o governador do Espírito Santo, o que explica a ausência do governador em nossas festividades.

Na manhã seguinte, desembarquei cedo com alguns de meus companheiros para uma excursão rio acima. Eram então cerca de cinco da manhã, e chovia intensamente.

Enquanto os outros foram procurar uma canoa, subi, com uma arma e uma cesta de provisões, até uma casa em ruínas, ficando com um cômodo só para mim. O resto da casa parecia fechado e abandonado; o quarto que eu ocupava estava aberto de um lado por falta de parede e tinha vários buracos no chão. A chuva, entretanto, não penetrava. Vi meus colegas vagueando desconsoladamente pelas ruas, que brilhavam com a chuva, e logo um brasileiro veio preparar uma canoa, onde nos alojamos com as provisões, quando o tempo melhorou um pouco. Partimos então rio acima, cinco pessoas com quatro remos. O brasileiro tomou lugar na popa como piloto, e desviou a canoa uma milha de seu rumo, dirigindo-se ao lado oposto de uma ilha, de modo que pudesse nos conduzir a uma venda onde esperava passar bem. Quando a canoa se aproximou da pequena casa branca à margem de um córrego, ele apontou para ela e exclamou: “Bono venda la![ 14 ] Atentos às suas artimanhas, recusamo-nos a saltar. Excelsior![ 15 ] foi nosso grito. A canoa prosseguiu deslizando rio acima, os ocupantes levantando-se e remando valentemente. Em nossa ânsia por segurança e firmeza, havíamos conseguido uma canoa pesada e não podíamos impeli-Ia tão rápido como desejávamos. Isso, entretanto, não era uma falta grave, pois uma canoa mais leve teria provavelmente virado, provocando a perda de nossas armas e outros valores. Finalmente, colhidos por um aguaceiro, seguimos para a margem e nos refugiamos em uma cabana, colocando a cesta de provisões num depósito contíguo.

Como nosso desjejum fora de carne fria, começamos a preparar um rápido almoço de presunto e ovos. O dono da cabana foi indenizado de qualquer incômodo com um copo de rum, que engoliu com uma expressão de divertido êxtase, pulando e assobiando de alegria. O fogo na cabana era muito forte, e a fumaça penetrava-nos nos olhos, picando como miríades de mosquitos. Em tais circunstâncias, não pudemos lograr nenhuma excelência culinária; mas há sempre algo de mais especial no que se prepara do que nas mais finas iguarias de um cordon bleu.[ 16 ] Não que esse prazer pudesse durar sempre; mas a mesma inspiração que preside ao primeiro poema preside também ao primeiro prato que se prepara. Tínhamos terminado nossa refeição e a chuva cessara, quando se aproximaram alguns senhores mais respeitáveis, que andavam ocupados na construção de uma casa na praia. Todos usavam facões nos cintos, e haviam talvez feito uso deles para propósitos menos inocentes que cortar madeira. As árvores e trilhas estavam ainda cintilando com a chuva, e pérolas espalhavam-se abundantes sobre cada arbusto. Dois de nosso grupo seguiram por uma trilha com o propósito de caçar, mas logo retornaram, de modo que embarcamos e seguimos corrente acima. Enquanto avançávamos, íamos atirando nos pássaros que nos apareciam; para caçar um fugitivo de plumas, metíamo-nos por algum córrego de água estagnada, com arbustos baixos crescendo na lama fértil, ou então descíamos nas margens pedregosas para atirar num bem-te-vi que nos fugia de galho em galho.

Desembarcamos logo depois em outra ilha, e subimos até uma casa grande, que encontramos habitada por negros, de quem compramos ovos e bananas. Muitas galinhas perambulavam por ali, mas não estavam à venda, pois não se encontrou o dono. Os ovos e as bananas foram colocados em nossa frigideira com um pouco de presunto, e acendendo-se o fogo, o cômodo logo se encheu de fumaça. De repente, o vento marinho irrompeu quarto adentro, batendo as janelas umas contra as outras, saindo com fúria por um lado para entrar de novo pelo outro. A fumaça, desnorteada e incapaz de sair pela janela, impedida pelos batentes, retornava ao quarto, refugiando-se em nossos olhos. As árvores envergavam e agitavam-se sob a rajada de vento, e o rio arrebentava furiosamente contra as pedras abaixo da casa. Em meio a essa ventania, tendo deixado nossa canoa em segurança, prosseguimos calmamente o jantar. O piloto nos informou, com a boca cheia, que aqueles negros eram “contrabanda“,[ 17 ] em que sentido ele não explicou.

Quando descíamos para a praia para o reembarque, uma grande canoa passou a todo pano, correndo rio acima com incrível velocidade. Com o vento e a maré contra nós, e ambos muito fortes, não pudemos seguir rio abaixo, mas fizemos um desvio para a margem oposta, a canoa jogando sobre as ondas como um navio de três conveses na baía de Biscaia. Ao alcançarmos o outro lado, encontramo-nos entre mangues, com árvores cobertas de ostras, largadas ali pela maré. Ali percebemos de relance alguns cisnes, mas muito arredios para permitir aproximação.

Perseguimos outra canoa que estava entrando no córrego e, chegando perto, os ocupantes ficaram tão assustados com nossa aproximação que encalharam. A água aqui era escura e barrenta, e os galhos compridos das siriúbas[ 18 ] se juntavam sobre nossas cabeças num arco triunfante. Metemo-nos por um córrego e abicamos a canoa numa praia onde algumas pranchas nos livraram de um abismo de lama negra. Subindo um morro, chegamos a uma fábrica, donde se avistava a cidade e o rio sinuoso . Ali foram abatidas algumas viúvas,[ 19 ] e também um pequeno bem-te-vi, marrom e de modesta aparência, mas possuidor de variegado topete de plumas vermelhas e amarelas, que podia eriçar à vontade. Quando o sol brilhava sobre ele, e seu topete cintilava e dançava na luz, esquecia-se seu corpo marrom e feio, e dava-se a ele justa admiração. As viúvas atraíram a atenção de nossos caçadores de uma longa distância devido à sua lustrosa plumagem negra, possuindo em algum grau o mesmo poder de fascinação de suas homônimas da raça humana.

Um ou dois dias depois, partimos da cidade do Espírito Santo. Uma ressaca estava começando, e as pequenas ilhas cuja paisagem comentei tão poeticamente ao chegarmos, ficavam visíveis agora só por um instante, quando o mar recuava ou quando as ondas quebravam sobre elas. Um pequeno navio costeiro estava ancorado a meio caminho rio abaixo, jogando muito, enquanto seu convés era uma cena de verdadeira confusão de mercadorias.

Uma vez fora do rio, desembarcamos e pagamos ao piloto, navegando então para sudoeste. As autoridades do Espírito Santo parecem ser contrárias ao tráfico de escravos. Fora da cidade estavam parados dois navios, recentemente capturados com escravos a bordo. Um deles era um barco de Cabinda[ 20 ] improvisado, cuja capacidade certamente não excedia a trinta toneladas, mas que havia trazido em seu porão cento e oitenta escravos da costa da África!

CAPÍTULO II[ 21 ]

Guarapari. Mulheres do campo. Nec vox hominem sonat. A cana. Benevente. Linha da costa. Piúma. Itabapoama. Itapemirim. Assassinato.



Entre Espírito Santo e Rio de Janeiro, Guarapari é a vila de maior importância. Está situada às margens de um rio que desemboca numa baía, e o mesmo nome designa baía, rio e cidade. A ancoragem ali é difícil, devido à ressaca permanente, que sempre começa e nunca termina. Essa vila era famosa até recentemente devido ao patrocínio que dava ao tráfico de escravos. Os barcos do Harpy conseguiram apresar um navio negreiro rio acima, a despeito da vigorosa resistência dos cidadãos e da tripulação do navio. Nenhuma parte da vila é visível da baía, e mesmo próximo à foz do rio apenas algumas poucas cabanas aparecem. Sinais de decadência mostram-se por todos os lados. A igreja e o convento erguem-se sobre um alto promontório à entrada do rio, e estão ambos muito dilapidados. O convento especialmente está coberto de ervas daninhas e arbustos, que alcançam grande altura dentro de suas paredes. Não há flores aí, atualmente. Ao lado desses dois edifícios ergue-se uma altíssima palmeira que, sendo a única no promontório, é visível a longa distância, servindo para indicar a posição de Guarapari a navios com destino àquele porto.

Tão logo se cruza a barra do rio, na qual a profundidade é de cerca de três braças, descortina-se subitamente a vila, no lado leste ou na direção do mar, e o porto com um estaleiro, onde pequenos barcos costeiros estão geralmente em fase de construção. O rio, que não tem mais de trezentos pés de largura, estende-se ao sul, paralelamente à costa, e a povoação está situada no istmo entre o rio e o mar.

Em nossa primeira visita a Guarapari, uma canoa comprida e estreita, manejada por dois remadores, veio em nossa direção por sobre os vagalhões. As canoas nessas regiões são muito mais estreitas e compridas do que as de Ilha Grande, sendo sua proa mais pontuda, enquanto a proa das canoas do sul é larga e plana. Quando essa canoa veio encostando, os homens tiveram muita dificuldade em mantê-la a salvo junto à escada, enquanto o navio estava em movimento. Gritos e berros vinham da popa para a proa, e retornavam com juros da proa para a popa.

Pueri nautis, pueris convitia nauta
Ingerere.[ 22 ]

Amarrado firmemente o barco, um homem subiu com duas caixas de ovos e algumas pobres galinhas subnutridas. Foram comprados imediatamente, mas depois que a canoa retornou à praia os ovos revelaram-se todos podres e velhos, duas qualidades quase sinônimas. Não posso culpar o homem por nos vender tais coisas. Ele deve ter sido informado de que na Inglaterra só honramos o que é velho e inútil.

Mais tarde naquele dia, quando alguns oficiais desembarcaram, depararam com esse homem, que imediatamente fugiu, com todos os terrores de uma consciência pesada, acreditando sem dúvida que uma delegação do navio viera prendê-lo, a fim de enforcá-lo, sendo a forca na Inglaterra a punição mais comum para qualquer crime.

Em nossa visita seguinte a Guarapari, continuamos a explorar as curiosidades do lugar sozinhos,[ 23 ] já que o único cicerone, o presidente da Câmara, estava atendendo ao capitão. Numa pequena rua secundária, chegamos diante de uma porta aberta sobre a qual não havia nenhuma tabuleta pendurada para avisar-nos de que a entrada era proibida exceto a negócios. Espiamos lá dentro, o que era muito natural de nossa parte. Se as pessoas deixam as portas abertas, o que podem esperar? Não vimos nada além de algumas crianças brincando no chão, e uma magnífica rede pendurada do teto, desocupada. Afastamo-nos imediatamente, mas não sem atrair sobre nós as mais terríveis conseqüências.

Quando saíamos do recinto, encontramos uma velha que começou a matraquear contra nós tão implacavelmente como se fosse dotada do fôlego de trinta perus. Felizmente ela era parcialmente humana, não totalmente diabólica, e o pouco de humanidade que tinha transparecia na falta de ar depois de longo palavrório. Mas tão logo se calou, seu discurso foi retomado por um velho que parecia digno de ser seu marido, e a quem não desejo destino pior do que esse. Em tal discurso, porém, só eles é que falavam e só nós que ouvíamos, o que era a parte mais difícil. O marido seguiu o mesmo estilo da esposa, mas logo mostrou a inferioridade natural do homem em relação à mulher. Antes que tivesse terminado, ela começou de novo, puxando um coro de mulheres de várias idades, as vozes variando em cadência desde o grito estridente das jovens até o berro rascante das velhas. Inconscientes de nosso crime, batemos em retirada, com o coro atrás, mantendo sempre a cantoria melodiosa. Por último veio um homem ofegante que se pôs a dar pulos frenéticos e socos em nossa direção, praguejando e gritando feito um louco. Naturalmente, nosso único recurso foi praguejar e gritar em resposta, o que fizemos com toda honra até o inimigo se retirar.

Em seguida travamos conhecimento com um personagem sorridente e gracioso, que nos acenou para chegarmos à sua casa. Foi muito cordial conosco e falava com amável franqueza; contudo, seu rosto parecia insincero e assemelhava-se exatamente ao de Simon Renard, nas ilustrações da Torre de Londres feitas por G.C.[ 24 ] Mas essa insinceridade se explica facilmente pela referência ao seu cargo. Ele era, na verdade, o mestre-escola, um daqueles ilustres cavalheiros de quem freqüentemente ouvimos falar — os mestres-escola do estrangeiro. Mostrou-nos todos os seus instrumentos de ensino, a tabuada[ 25 ] e a palmatória, execrável instrumento do qual nem o Brasil está livre. Os brasileiros, portanto, podem alegar afinidade com o resto do mundo, citando o verso de Juvenal, que deveria funcionar como um sinal de maçonaria e unir num laço indissolúvel todos aqueles que pudessem afirmar

Et nos ergo manum ferulae subduximus.[ 26 ]

O mestre-escola falava um pouco de inglês e tinha um dicionário de inglês-português e uma gramática, que nos mostrou e que lhe serviram de ajuda para traduzir algumas frases. Lendo uma frase literalmente, com o sentido de “Minha esposa está aqui”, ele traduziu desta maneira: “May wumman ees he-ar“.[ 27 ]

Numa loja que tinha persianas de cana e vime servindo de janelas, eu estava comprando algumas laranjas quando entrou uma velha querendo aguardente. Suponho que ela tivesse por volta de quarenta anos, contudo seu rosto era o mais enrugado e medonho que já vira. Uma mulher de oitenta anos na Inglaterra seria bonita em comparação com essa bruxa. Mas o clima tropical, que desenvolve as mulheres aos quatorze anos, as faz envelhecer muito prematuramente.

Em outra loja havia um carola mal-encarado, parecido com um pregador, ou com o imortal Mr. Stiggins dos Documentos de Mr. Pickwick, do saudoso Mr. Boz,[ 28 ] que vigiava a linda esposa enquanto ela cuidava dos negócios da venda. Comprei um peru, e outros perus foram comprados em outras lojas. Estavam todos tão calados que concluímos, recordando a aventura da manhã, que os perus de Guarapari haviam transferido suas vozes às mulheres dessa vila, recebendo a beleza delas em troca.

Prosseguiremos agora fornecendo uma descrição de outras partes notáveis dessa costa no estilo guia de viagem.

Benevente





A baía de Benevente[ 29 ] é larga, rasa e aberta. Navios de mais de dez pés de calado não podem chegar a uma milha da praia, mas podem ancorar a alguma distância fora dela, em quatro braças e meia, orientando-se pela última quarta lessueste e pela casa mais visível do lugar, norte por nordeste.

A povoação está situada no lado direito da foz de um rio que deságua no mar. Fica, em sua maior parte, em terreno baixo, com exceção da igreja e de um prédio junto a ela, que aparentemente foi um mosteiro, apesar da parte mais baixa estar agora transformada em prisão. Ficando a outra parte da vila quase no mesmo nível do rio, as ruas, que antes devem ter sido parcialmente calçadas, são hoje uma sucessão de poças de algo que deve ter sido água um dia. As casas estão, em grande número, em triste estado de decadência, sendo algumas restos de belos edifícios, com cortinas, persianas e entalhes de madeira.

Vários pequenos navios estão no estaleiro, e muitos barcos costeiros comerciam os produtos das fazendas situadas rio acima. O suprimento é abundante e de fácil obtenção; mas como é trazido do interior, é preciso uma antecedência mínima de um dia no pedido. O rio é navegável por canoa até duas milhas além da vila, encontrando-se boa caça em suas margens. No ponto extremo da baía existe um recife chamado Ponta do Cormorant, por ter o vapor Cormorant[ 30 ] encalhado ali.

O relevo da costa entre o cabo São Tomé e Guarapari é baixo; mas quarenta milhas para o interior se ergue uma cadeia de montanhas de talhe o mais rebuscado. Entre esses montes e a costa há extensas florestas de madeira de boa qualidade, principalmente pau-rosa,[ 31 ] habitadas por índios vivendo em estado de barbárie. Diz-se que eles ocasionalmente se casam com colonos e que em certas estações do ano visitam as fazendas a fim de trabalhar, sendo pagos sobretudo com cachaça, bebida alcoólica local, semelhante à aqua ardente. Poderíamos deduzir, entretanto, que esses selvagens nem sempre visitam a civilização com tão amistosos motivos, mas são freqüentemente seduzidos pela esperança de saque. Os habitantes do litoral vivem principalmente da pesca, e quando nossos navios de guerra navegavam nessas águas para reprimir o tráfico de escravos, as pessoas entravam em aflição, impedidas de fazer-se ao mar em suas canoas devido à proximidade dos navios. Laranjas e bananas, entretanto, são encontradas aí em abundância, e com elas os brasileiros conseguem sobreviver, à falta de outro alimento.



Piúma

Trata-se de um vilarejo próximo a Benevente, às margens de pequeno rio, e notável pela farta produção de pau-rosa, que pode ser adquirido a baixo custo.

Em frente à foz do rio de Piúma encontra-se a pequena ilha dos Franceses,[ 32 ] a leste da qual se estende uma linha de recifes rochosos, que servem de abrigo às embarcações. Aí se pode obter areia, tendo os navios de guerra descoberto que é um lugar propício para treinamento de tiro ao alvo com seus canhões. Outro bom ancoradouro fica ao largo dos Três Rochedos Vermelhos, que formam uma visível interrupção na cor parda que predomina à direita e à esquerda. Ao pé desses rochedos, no fundo da praia arenosa, há uma pequena floresta, discernindo-se cabanas entre as árvores. Há também um baixio com duas braças e meia na parte mais rasa em frente a esses rochedos, cujas orientações são as seguintes:

Grande Casa Branca no topo dos Rochedos Vermelhos, sudoeste por oeste quatro milhas.

Dois montes impressionantes (representados no diário de bordo por um rabisco indeciso, com um borrão em cada ponta), noroeste por norte.

Itabapoana

Vila também às margens de um rio, com uma casa grande perto da barra. O ancoradouro está em latitude 21° 23′ sul e longitude 40° 51′ oeste. Posições, casa grande sudoeste, por sul duas milhas. Recifes a sueste por leste duas milhas.

Ponta dos Rochedos Vermelhos nordeste por norte. Os baixios ficam a cerca de seis milhas a oeste da casa grande. Dentro desse rio estava uma escuna de velas latinas. Ela havia desembarcado cento e sessenta escravos na véspera e foi apreendida imediatamente pelas autoridades governamentais, que ocupam a casa grande da barra. Era pouco maior que muitos navios negreiros, em proporção ao número de escravos que transportava.

Itapemirim



Vila de certo tamanho, situada uma milha ou duas rio acima. É notável sobretudo devido ao seu estágio de civilização, que mostra que a simplicidade de um refúgio rural nem sempre assegura paz e boa-vontade. Enquanto passeávamos com o presidente da Câmara, o capitão viu uma casa inacabada. Imediatamente parou para examiná-la com um sobressalto melodramático. Ela parecia sombria e desolada, como se cada tijolo soubesse do crime que retardara seu progresso, e que nem todas as lamentações e uivos angustiados de um vento forte em sua chaminé poderiam jamais revelar. Havia algo de sinistro e terrível na mera contemplação de suas obras inacabadas. O vento soprava suavemente? Era somente por comiseração pelo infeliz construtor; era apenas um lamento plangente pelo seu súbito, fim. O vento estava silencioso? Ele ainda parecia remoer serenamente aquele lugar e embalar-se naquele monte de argamassa que se deteriorava a um canto. A tempestade caía, o relâmpago brilhava; o trovão bramia, a chuva despejava suas grossas gotas? Tudo isso caía sobre a casa por motivos que nenhum mortal pode descrever. As desoladas súplicas de seus tijolos mudos, os gemidos e assobios da chaminé, tudo mostrava que ali se fizera algo que poderia ferir os ouvidos e sufocar a fala.

Por que a casa estava inacabada? Ah, sim! — disse serenamente o presidente da Câmara — ela pertence a um homem que foi apunhalado outro dia.

— Apunhalado! Por que razão?

— Realmente não sei; nada pessoal, eu acho. Uma simples provocação, ou coisa assim. Há indivíduos terríveis por aqui; sem exceção, os mais sanguinários que já vi.

Depois de tal exemplo, o depoimento do presidente da Câmara não era difícil de acreditar.

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NOTAS



[ 1 ] É o prefácio geral da obra.



[ 2 ] É o capítulo XV do texto original.



[ 3 ] Trata-se do convento da Penha.



[ 4 ] À maneira dos antigos. Em latim no original.


[ 5 ] Essa é a tradução que Taunay fez dos versos de Wilberforce, incluindo-os em seu ensaio “Impressões de Vitória e seus arredores”, publicado no Jornal do Comércio, em 1945. (Apud Norbertino Bahiense, O convento da Penha, Vitória, 1 95 I.).

[ 6 ] Atualmente morro do Penedo. Era assim chamado pelos portugueses, como a outros morros de mesma configuração e talhe arredondado, numa alusão aos torrões de açúcar para exportação.
[ 7 ] É o palácio Anchieta. A interrogação entre parênteses está no texto original.
[ 8 ] O primeiro-tenente Jonh H. Crang que, juntamente com o capitão Edward Tatham, visitou o convento da Penha em 3 de setembro de 1851 (cf. Norbertino Babiense, op. cit., p. 8.
[ 9 ] Wilberforce interpelou no texto de Crang, entre parênteses, a seguinte observação: “Estou envergonhado de você, herético colega, por dar vazão a semelhante sentimento”.
[ 10 ] Não foi possível localizar o autor desses versos, em inglês no original.
[ 11 ] Poeta sagrado, ou eleito pelos deuses. Em latim no original.
[ 12 ] Trata-se de um texto de autoria de um capixaba anônimo e publicado em jornal do Rio (como o atesta a indicação “de nosso correspondente”), cuja tradução Wilberforce incluiu em seu relato.
[ 13 ] Canção folclórica norte-americana.
[ 14 ] Como no original.
[ 15 ] Para o alto! Em latim no original.
[ 16 ] ozinheiro exímio. Em francês no original.
[ 17 ] Como no original.
[ 18 ] Siriúba (Avicennia nitida) e mangue (Rhizophora mangles), duas árvores tropicais típicas da vegetação dos mangues, ambas frequentemente traduzidas pelo vocábulo mangrove, usado pelo autor no original.
[ 19 ] Ave passeriforme de cor negra (Pipraeidae m. melanonota).
[ 20 ] Atual Angola, região de origem de boa parte dos escravos brasileiros.
[ 21 ] É o capítulo XVI do texto original.
[ 22 ] Os meninos lançavam impropérios aos marinheiros, os marinheiros aos meninos. Não foi possível identificar o autor latino.
[ 23 ] É de suspeitar que Wilberforce estivesse sozinho nessa ocasião, narrando suas aventuras em plural majestático.
[ 24 ] Provavelmente George Cruikshank (1792-1878), famoso caricaturista inglês.
[ 25 ] Termo obscuro. Poderia referir-se também ao quadro-negro.
[ 26 ] E nós que subtraímos a mão à palmatória.
[ 27 ] Transcrição fonética da pronúncia do mestre-escola. A tradução literal é “Minha mulher está aqui”.
[ 28 ] Pseudônimo de Charles Dickens (1812-1870), autor do livro citado. De estranhar o adjetivo empregado por Wilberforce (no original, late lamented), visto que, nessa época, Dickens ainda estava vivo.
[ 29 ] Atual cidade de Anchieta.
[ 30 ] Com esse mesmo cruzador inglês, também ocupado na repressão ao tráfico de escravos na costa brasileira, deu-se incidente na baía de Paranaguá, em julho de 1850, conforme relata Helio Vianna em sua História do Brasil (Melhoramentos, São Paulo, 9 ed., 1972): “Tendo este navio aí realizado o apresamento de uma galera e dois brigues, foi hostilizado com tiros partidos da Fortaleza da Barra, disso resultando a morte de um tripulante e ferimentos em dois”. (p. 151 da segunda parte).
[ 31 ] Aniba rosaeodora. Árvore que contém um óleo composto fundamentalmente de linalol, de grande emprego em perfumaria.
[ 32 ] Franceza, no original.

[WILBERFORCE, Edward. Ingleses na costa – Impressões de um aspirante de marinha sobre o Espírito Santo em 1851. (Tradução de Eliziane Andrade Paiva) Vitória: Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo; Academia Espírito-santense de Letras, Cultural-ES; 1989. 37p.]

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Edward Wilberforce, integrante da oficialidade da corveta de guerra Geyser que esteve no Espírito Santo na primavera de 1851 sob o comando do capitão de fragata Edward Tatham, em missão repressiva ao contrabando de africanos.

Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui


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