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A rainha que piava e outros contos

Sabatina remete a cobrança da tabuada de multiplicar, da procura de mantissa ausente da tábua de logaritmos e de outras belezas como a regência do verbo apropinquar o que, ressalve-se logo, jamais foi pedido pelo prof. Guilherme Santos Neves. Não era de seu feitio.

Mas, para mim, agora, sabatina é algo bem diferente. Contrariando o pessimista radical que dizia que antigamente as coisas eram piores só que, depois, foram piorando, sabatina representa dia de encontro com amigos na Livraria Logos. Entre eles, o João Bonino de quem tenho o privilégio de possuir um autógrafo, desde 1974, aposto num passaporte do tempo em que ele era funcionário da Carteira de Câmbio do Banco do Brasil. Mas a bem da verdade, quem trabalhava no banco era o B. Moreira. Era assim que seus colegas de banco abreviavam o seu nome. Tinham razão. Ao largo dos lançamentos de débito e crédito ou dos cálculos de descontos e redescontos, aparecia outro personagem. Surgia o João Bonino, conhecedor de literatura, expert em jazz e música clássica.

Bonino é um dos principais gourmets de livro em nosso meio, dono de vasta biblioteca rnantida em sua casa onde, num galpão, como hobby, também pratica a marcenaria. Vez por outra, para preocupação de sua mulher, é atingido por um petardo disparado por suas impacientes máquinas. Impacientes talvez porque o Bonino não seja o excelente marceneiro que julga ser. Mas logo me corrijo. Injustiça minha, Aspirante a aprendiz de marcenaria, recebi de Bonino um gabarito para juntos de meia-esquadria. Um artefato corri acabamento de profissional. Registre-se. Mas, calma. Poderia continuar falando muito mais do Bonino, de sua rica personalidade, inclusive com testemunhos de nossos companheiros de sabatina, mas quero agora falar de seu livro de contos. É o que passo a fazer.

Bonino já fez o papel de menino da fábula que, desmentindo os áulicos, descobriu O Presidente Nu (ed. IHGES, 1996). Esclareça-se: um presidente da República Velha. Agora nos oferece esta coletânea de contos e a confirmação de que é escritor feito. Leiam seus contos e descobrirão seu senso de humor, sua técnica apurada que me lembra bastante bons roteiros cinematográficos. Uma linguagem ágil onde a ironia vem às vezes revestida por palavrões retumbantes.

Vou encontrando muito mais coisas nas histórias de Bonino. No “Mistério dos temporões”, a anedota abrange o espírito de aldeia e seu rigoroso círculo delimitado pelo pároco. Em “Aventuras do Schancke e do Tirolês”, uma história engraçada que envolve sério problema como o da inovação no mundo sedimentado do camponês. O caso é que o Schancke fazia manteiga em varas de bambu, um secular processo de fabricação desse produto nas sociedades pré-industriais. Para contornar um problema de escassez de matéria-prima, talvez até pensando numa renda adicional para comprar um chapéu Ramenzoni ou um sapato DNB na casa Broilo (itens do mais requintado luxo na velha montanha), o Schancke resolve mudar seu processo de comercialização e aí, por uma brutal falha de informação, entra numa grande embrulhada. Ao invés de usar o tradicional bambu ele passou a usar “pequenos potes em diversas cores”. Transgrediu uma norma e pagou por isso. Aqui o antigo professor de História Econômica não resiste ao comentário: nas sociedades econômicas de subsistência um desastre mercadológico dessa ordem pode representar não apenas um transtorno. Pode significar a fome. É por este lado que se compreende a resistência à mudança do agricultor. A primeira vítima do Schancke, na história, foi o burrinho mas o fato é que numa sociedade desse tipo e extrapolando a questão, erros similares podem significar um desastre completo pela impossibilidade de recorrência às magnânimas (porém de acesso restrito) fontes de recurso das sociedades modernas.

A história da “Casa Verde: dois ‘causos’ parecendo contos” será melhor ainda apreciada pelos moradores de Vitória que tenham mais de cinqüenta anos. Não vou adiantar detalhes para não tirar o sabor dessa história familiar que se desenvolve numa desconexão de tempo como nas comédias clássicas. “Onde está Silvinha?” é um conto de mistério passado na orla de Camburi. Aliás, uma qualidade adicional dessas histórias, para nós capixabas, é que elas estão carregadas de cor local. Ações que, por exemplo, se passam em “Santa Teresa, ,julho de 1942, seis da manhã. Um véu leitoso envolve a cidadezinha serrana e a maioria de seus habitantes ainda dorme afundada nos colchões de pena”. Contos que além da qualidade literária contém esses cheiros da terra. Isto é, Bonino se junta a uma saudável tendência de autores capixabas que, isentos de ranços provincianos, falam de nosso Estado e vão ajudando a esboçar o seu rosto na construção de uma tão reclamada identidade. Afinal, já é mais do que tempo de nosso Estado ingressar no mapa político do Brasil. Nossa literatura, a par de sua qualidade estética, pode contribuir para isso.

Leiam Bonino e conheçam um autor capixaba de alta qualidade.

Vitória, 7 de junho de 1997

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Ivan Anacleto Lorenzoni Borgo é cronista e nasceu em Castelo, ES, em 21 de fevereiro de 1929. Formado em Direito pela Faculdade de Direito do Espírito Santo (Ufes), com especialização em Economia pelo Conselho Nacional de Economia em convênio com o MEC. Foi professor da Ufes de 1961 a 1989 e diretor regional do Senai/ES de 1969 a 1990. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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