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J.E.N., cardiologista, poeta

VITÓRIA NOS DIAS DE HOJE – NÓS, AMANHÃ

Com qual olhar devo esmiuçar a cidade que me fez retornar depois de muitos anos ausente? Opto por dois olhares: o do poeta e o do pesquisador. Não tão profundos e misteriosos como os olhos de pedra que nos miram de Jucutuquara, mas com a vantagem de estarem intima e complexamente interligados pela consciência.

Vitória corporifica minha visão de Mundo. Vejo em Vitória o a que assisto nas mídias; projeto para Vitória o que reflito sobre o futuro.  Vitória é o laboratório onde os experimentos se concretizam para confirmar minhas hipóteses.

Uma cidade ― uma capital ― cravada em uma ilha, que, por definição, tem limites bem precisos, embora ao longo dos anos tenha sido retocada ao ponto de quase a fundirem ao Continente…

Qual a solução – improvisada e conveniente – para o aumento da densidade populacional em espaço exíguo?

Para o pobre, subir o morro e construir favelas, destruir os manguezais e construir palafitas; para os mais bem-providos, ocupar a parte baixa, buscar a beira do mar.

Faltou espaço ?

Muito fácil!

Aos pobres restou abusar da criatividade e sobrepor andares – laje sobre laje – nas encostas dos morros e nas bordas dos mangues; aos abastados, contar com o apoio incondicional das construtoras que incorporaram os antigos casarões com seus belos quintais e jardins para verticalizar a cidade, destruindo nossa memória arquitetônica, obstruindo a passagem de ar e tornando a cidade cinza.

Interligou-se a Cidade aos demais municípios da Grande Vitória ― muita das vezes cidades e bairros dormitórios ― por pontes que se tornaram insuficientes para o fluxo absurdo de veículos que diariamente trazem os que nela vêm buscar seu sustento.

E é por consequência disso que vivemos uma crise logística sem precedentes, para a qual projeto uma piora exponencial. Digo isso por não ver gestores que sinalizem com projetos de restauração e redimensionamento do transporte hidroviário, de melhoria e interligação do transporte público, metrô de superfície e outros recursos complexos mas factíveis. Em paralelo, e por que não, como consequência direta de políticas desleixadas , um aumento da compra de automóveis.

Outro problema grave em nossa cidade é a violência crescente, fruto da desestruturação familiar e da ausência de acesso a uma educação fomentadora do respeito à inter-relação humana. Violência esta que nos últimos anos tem sofrido uma espécie de “profissionalização” com a chegada de narcotraficantes fugidos do Rio de Janeiro.

E o que dizer dos usuários de crack jogados nas calçadas, esses pardais sem canto, morrendo diante de todos?

Mudemos um pouco de foco.

A cidade presépio passou a chamar a atenção de indivíduos de outras regiões do país. Uma capital exalando prosperidade que trouxe, e continuará trazendo, migrantes de outros estados da União.  Afinal, uma máxima burguesa é buscar o paraíso na Terra… Eis aí outro ponto merecedor de uma análise mais pormenorizada.

Vejo essa migração sob dois prismas distintos, que podem projetar um futuro nebuloso ou radiante para Vitória.

Uma grande parcela dos migrantes é constituída de indivíduos com baixa qualificação técnica que ocupam os bolsões periféricos. Para eles devemos disponibilizar infraestrutura básica e profissionalização. Só assim poderemos tamponar os malefícios advindos da desigualdade social e da falta de perspectiva. E é aí que vejo uma luz. Afinal de contas, carecemos de prestadores de serviço qualificados. Já é famoso o dito “PAC” (padrão de atendimento capixaba), fruto, muitas vezes, do provincianismo e da acomodação dos nossos moradores.

Cabe agora incluir o outro subgrupo de migrantes constituídos por profissionais altamente qualificados que têm aportado em nossa ilha.

E eis aí um vício, chamar de “nossa” a ilha. Um “nossa” descompromissado de latifundiário acomodado…

Digo isso por acreditar que a vinda de indivíduos mais qualificados poderá melhorar substancialmente a prestação de serviço em nossa cidade.

Mas o que encontram na “Cidade Sol” esses novos moradores? Arrisco: uma miniatura do Rio de Janeiro: topografia similar, um maciço central relativamente preservado, uma pequena baia, praias… E também um caos em processo avançado de instalação.

Deixei, por último, dois tópicos: cultura e meio ambiente.

Sou um recém-chegado no meio artístico-cultural da cidade. Não posso falar com o devido conforto do que apenas ouvi em relatos ou li em livros. Não me é possível traçar um paralelo entre o passado e o presente. Mas consigo ter uma visão macro e aprendi a considerar a influência das circunstâncias de cada período e a importância da oscilação econômica no meio artístico.

Perdemos espaços culturais (ex:.Teatro Carmélia), perdemos mentes ilustres (Renato Pacheco, Guilherme Santos Neves, José Carlos Oliveira), mas me coloco mais esperançoso neste aspecto. Surgem novos espaços: o velho cais do porto; o Museu da Vale; o Teatro Glória que reabrirá em breve sob a coordenação do SESC; o Cais das Artes em construção na Enseada do Suá, com o projeto de nosso arquiteto maior, Paulo Mendes da Rocha; uma Biblioteca Pública muita ativa; cafés literários em vários pontos da cidade; uma feira literária anual em instalação. Sim, tudo isso sinaliza uma promessa de crescimento. No campo da música erudita, uma orquestra sinfônica que se profissionaliza e recebe visita de expoentes mundialmente reconhecidos. Um festival de cinema que cresce anualmente. Uma valorização maior de nossa cultura popular. Todos esses aspectos levantados me parecem um bom agouro para a cultura capixaba.

Agora, sejamos lúcidos: a sociedade não avança, necessariamente. Não é a simples soma da tecnologia com a virtualização do Planeta que agregará qualidade às nossas vidas e à nossa Cidade.

Sou mais a visão de Stephen Jay Gold: são homens que fazem a diferença histórica. Não importa dizer da morte de Deus aos olhos dos homens; da morte, no berço, da utopia do materialismo dialético. Vimos ser lúcida a antiopia Orwelliana; assistimos à vitória do mercado sob o estado e sobre a igreja; e findamos por nos render à supervalorização incontornável da globalização.

Digo tudo isso para inserir o último tópico destas breves linhas: o meio ambiente.

Retomo e relembro o fato de Vitória ser uma ilha.

Talvez o segredo esteja em nos focarmos neste fato em particular. A pequena dimensão remete à ideia de fragilidade. Daí termos que redobrar nossa atenção para as particularidades de nosso entorno. Preservar e reconstituir nosso maciço central, nossos mananciais, nosso manguezal. Despoluir, definir o que é sustentável em nível de crescimento e expansão residencial. Entender que Vitória deve ser pensada em conjunto com os demais municípios que a circundam e interpenetram. Elaborar um PDU que coloque uma placa de “lotado” no centro da ilha. Repaginar nostalgicamente nosso centro histórico.

Lembro que devemos partir de experimentos locais, adaptados à nossa realidade; não a simples assimilação e incorporação de paradigmas externos. O pequeno possibilita o singular, e isso deve ser pensado em contrapartida à simples postura de que o macro é a panaceia para nossos problemas.

Reservemos a ilha, preservemos a ilha, ela não comporta mais os grandes empreendimentos. Que eles sejam levados para o continente.

A ilha é o patrimônio maior e o turismo uma grande vocação ignorada ou subdimensionada.

Não podemos permitir que o desejo imediato de alguns obstrua, para todo o sempre, a possibilidade de olharmos a beleza da ilha que já se chamou Guananira.

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