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Mastros, bandeiras e barcos nas festas do povo

Foto Guilherme Santos Neves.
Foto Guilherme Santos Neves.

Em vários pontos — quase poderíamos dizer — em todos os recantos do território capixaba, guarda-se ainda a velha tradição da puxada, ou da fincada do Mastro frente à igrejinha do lugar. Na ponta do mastro, oscilando ao vento, a Bandeira do santo padroeiro.

Tal tradição nos vem de longes tempos, e, segundo o nosso padre Antunes de Sequeira, já os jesuítas, na “festa religiosa consagrada às Onze mil Virgens, de que eram chefes Santa Córdula e Santa Úrsula, além de São Miguel, erguiam aqui em Vitória, “um mastro, tendo na grimpa uma bandeira simbólica”, que se levantava “em frente à igreja do Colégio (hoje Palácio do Governo), na tarde do dia 29 de setembro” (Esboço histórico dos Costumes do povo espírito-santense, Rio, 1893, p, 50).

À festa do mastro se referem nossos primeiros folcloristas. Pereira da Costa, por exemplo, em seu “Folk-lore Pernambucano” (Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio, 1908, tomo LXX, parte 11, p. 194) faz menção às “bandeiras de diversos santos”, conduzidas em procissão, e “hasteadas em um mastro em frente à igreja”. Fala aí das famosas bandeiras de Nossa Senhora da Saúde, de Santo Amaro das Salinas e Nossa Senhora do Monte, em Olinda, a cujas festas, imponentes e aparatosas, concorria sempre grande massa popular. Registra a festança dos negros escravos, com a bandeira de São Benedito, lembrando a que se realizou em Olinda, lá pelo ano de 1315.

Foto Guilherme Santos Neves.
Foto Guilherme Santos Neves.

Também Melo Morais Filho, em suas Festas e Tradições populares do Brasil (3.ª edição, revista e anotada por mestre Câmara Cascudo, Rio, 1946), descreve, à página 97, no capítulo “A Procissão de São Benedito no Lagarto”, em Sergipe, a mesma festa popular do mastro, “fincado no largo do Rosário, em frente à igreja”. E esclarece: Esse mastro, que ficara do ano antecedente, deixava flutuar no topo uma bandeira branca com a estampa de São Benedito”. Desse mastro do querido santo preto, mastro “untado de cebo”, pendiam, presos por cordéis, ananazes e outras frutas, garrafas de vinho, caixas de doces, prêmios vários, disputados pela “molecada infrene”, em alarido estrepitoso, na divertida competição de trepar nesse escorregadio “pau de cebo”.

A festa do mastro, que se realiza em quase todo o Espírito Santo, mantém ainda vestígios marcantes dessas velhas festividades doutros tempos. A mesma vibração popular, contagiante e contrita, durante o desenrolar da festa toda; a condução do mastro, pelos fiéis, “dançando e cantando, em torno da igreja e em giro pelas ruas” (Melo Morais, id. 98); o fincamento do mastro frente à igreja, ao festivo repicar dos sinos e ao espocar bulhento dos foguetes; a serventia do mastro como “pau de cebo”, fato que ainda se pode ver algures, no Espírito Santo.

Mas, a esses aspectos comuns, acrescentam-se, entre nós, outros vários, que não deparamos referidos nos registros folclóricos doutras terras.

Dias antes da festa do santo, procede-se à cortada do mastro, a ela comparecendo os festeiros e grande massa de povo, sacudidos todos pela cadenciada vibração dos congos. O mastro, espichado ao comprido no chão, é arrastado por fortes correntes, presas a várias juntas de bois, todo enfeitados, canga e chifres, com guirlandas de flores e folhagens. Na data adequada — véspera ou dia do santo padroeiro da localidade — concorre a promíscua massa dos fiéis e devotos, para conduzir o mastro aos ombros, ou arrastá-lo pelo chão com cordas, ou puxá-lo num barco ou barca ou navio, improvisado sobre rodas.

Essa embarcação que, segundo as posses dos festeiros, pode ser caprichada no acabamento e formato de nau, com mastros e velame embandeirados, ou pode ser simplesinha, fingindo apenas o barco — essa embarcação, que é o povo quem puxa por meio de uma ou duas compridas cordas, se instala sobre um carro de bois, ou carroça, ou carreta, em geral de duas rodas. Deitado ao longo da barca se depõe o mastro, em cuja extremidade mais estreita se prepara uma parte roliça, de um metro e meio de comprimento, onde será encaixada, no ato de fincar o mastro, a bandeira do santo.

Há mastros trabalhados com arte, roliços ou facetados, pintados de uma ou várias cores e desenhos; outros, porém, são toscos e ásperos, quase de grossura natural, menos na ponta ou “grimpa”, onde se deve colocar a bandeira. Esta, que, via de regra, ostenta a efígie do santo, pintada a cores sobre tela ou pano, ou em estampa de papel aí colada — se arma numa moldura de madeira de variada largura e comprimento Nessa armação ou “guarda”, se fazem dois orifícios — na haste superior e na inferior — os quais se encaixam no topo roliço do mastro, o que permite a oscilação da bandeira, lá no alto, ao sopro ou capricho do vento.

Quer o mastro e a bandeira, quer o barco, se renovam anualmente, competindo aos festeiros, eleitos ou espontaneamente apresentados, o encargo de prepará-los e oferecê-los para a festa do ano seguinte, fato que constitui honraria das mais altas e disputadas.

A forma de puxada do mastro por meio de barca sobre carro, sabemos praticada na cidade da Serra — desde época recuada e difícil de precisar — e em Pitanga, Manguinhos, Nova Almeida, Goiabeiras, Novo Brasil, Timbuí e Fundão.

Festa do mastro, com a mesma vibração, mas sem a presença do navio, realiza-se, em louvor de São Sebastião, em Nova Almeida e Conceição da Barra; em louvor de São Pedro, na praia de Jacaraípe, município da Serra. A festa do mastro de São Benedito, sem a participação da barca, temos conhecimento que se verifica em Caieira Velha, Sauaçu, Ubu, Valão, Ibiraçu, João Neiva, Ponta dos Castelhanos, São Gabriel da Palha, São Mateus, Conceição da Barra e Itaúnas.

Em Vitória, para a secular igreja do Rosário, conduzia-se, outrora, em festa náutica e possível dramatizarão da xácara da “Nau Catarineta” — o mastro dedicado a Santa Catarina. Isto ocorria a 25 de novembro, dia a ela consagrado. Depois, em dezembro, por ocasião das festas dos “Peroás” e Caramurus”, devotos de São Benedito, era o mastro com bandeira deste santo que se levantava frente à igreja, no mesmo local em que ainda hoje se ergue, sem quase vestígios das cerimônias tradicionais daqueles recuados tempos.

Segundo informação que nos prestou João Francisco de Oliveira, velhinho dos seus 90 anos, de memória aguçada e fala viva — em 1897 ele, recentemente chegado da Bahia, sua terra, promoveu, em Vitória, uma festa do mastro de São Benedito, fincado em frente à igreja de Nossa Senhora da Conceição, destruída, depois, para se levantar o Teatro Melpômene, na praça, hoje chamada Costa Pereira, ou da Independência. E conta o informante que Dona Colatina, esposa do Presidente Muniz Freire, foi quem ajudou a levar a bandeira do santo, na procissão, até o local onde se fincou o mastro.

Vale bem a pena assistir, por este Espírito Santo a dentro, às belas e pitorescas festas da cortada, ou da puxada e fincada do Mastro, festas tradicionais em terras capixabas, festas ao mesmo passo religiosas e profanas, a cujas recuadas origens procurou chegar Mestre Câmara Cascudo, vasculhando a história e a lenda, em seu erudito estudo “O mastro de São Benedito e Isis Pelágia” (Revista Folclore, Vitória-ES, n. 27-29, novembro de 1953 a abril de 1964).

[Artigo publicado em Folclore, Vitória-ES, n. 27-29, novembro de 1953 a abril de 1954]

Guilherme Santos Neves foi pesquisador do folclore capixaba com vários livros e artigos publicados. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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