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Mitologia do beija-flor: um beijo de princípios

"Um beijo de princípios" Desenho: Gilbert Chaudanne.
“Um beijo de princípios” Desenho: Gilbert Chaudanne.

A Bíblia conta a história desses anjos que acharam as filhas dos homens tão bonitas que acabaram se apaixonando por elas. Ora, temos na natureza alguma coisa que se parece bastante com essas bodas míticas — quero falar do beija-flor e da flor e do beijo que o beija-flor dá na flor.

A flor pode ser considerada como uma espécie de prima das filhas dos homens. Como ela, como a moça, ela é delicada, feita de uma carne que não sente o peso da sua própria gravidade e, como a moça, se abre para a vida toda, para a luz do dia, para o mundo aqui diante dela; ela não está sozinha na sua beleza — sua beleza é para todos, sem que isto seja uma prostituição, ela é gratuita, não cobra nada, é tão pura como a claridade do céu, do dia. Sua beleza irradia simplesmente com a majestade de uma rainha ou de uma rosa — menina-rosa e outras moças-flores — gentilmente oferecidas ao nosso desejo-borboleta e suas carícias reais ou sonhadas.

A flor como a moça, de tão bela e delicada que é, termina deixando a impressão de que é imaterial — quer dizer, que não é mais terrestre, mas que, nela, há um princípio angelical que foi ali depositado para trabalhar no sentido da beleza transparente. Mas tanto a flor como a moça não deixam de ser terrestres, bem nutridas pela Terra-mãe que generosamente dá seu suco, sua seiva, seu leite.

Mas então, a flor como a moça, a moça-flor como a flor-moça (formosa) contém em si uma parcela do princípio angelical e, para completar essa natureza angelical, tem que se juntar ao anjo em si, ao anjo puro. Ela chama o anjo para ser beijada por ele e, no caso da flor, o anjo é o pássaro: o beija-flor vai assumir este papel. O pássaro, ali, é o pendente natural e lógico do anjo: como ele, voa, não conhece o peso das coisas e dos corpos; como ele, o pássaro é provido de asas e havia de ser um ser que escapasse à gravidade para beijar a flor ou a moça — já que essas, como vimos anteriormente, conseguem, pela sua beleza e seu frescor, nos fazer esquecer a gravidade da Terra que as sustenta. A flor — como a moça — não podia ser beijada por seres comuns, feitos de carne pesada e de lábios sangüíneos. Para que a leveza absoluta pudesse sobreviver, havia que Ter seres que viessem do céu, que vivessem por cima da Terra e da sua gravidade e cujos beijos fossem tão leves como o vento.

E o que é que o anjo vem buscar na moça, e o pássaro na flor? Eles vêm buscar o suco, o leite, a seiva da Terra, a essência da Terra, a sua força sublimada no céu dos princípios. E tanto o anjo como o pássaro precisam, para manter uma forma, para não se evaporarem no céu dos princípios, desse líquido requintado, desse licor — uma verdadeira bebida para os deuses. (É bem conhecido que o colibri procura o néctar fabricado pela flor — quanto à moça, seu néctar pode ser sua virgindade, mas a própria palavra néctar é também sinônimo de essência — essência da flor junto com mais uma essência, que é a do seu perfume — essência de toda a virgindade, a moça.)

Pois é evidente agora a necessidade irreversível do beijo — sua fatalidade — entre o pássaro e a flor. Trata-se também de umas núpcias que não são totalmente consumidas, núpcias em afloramento na flor apenas esboçadas na beleza do gesto e na sua elegância — o beijo — e é também a conjunção da beleza-leveza celeste absoluta (anjo ou pássaro).

Porém, na Bíblia, os anjos consumam as bodas com as moças, com as filhas dos homens. Mas núpcias desse tipo não podem ser consumadas através do acasalamento carnal, elas têm que ficar no plano espiritual, onde o corpo participa pela sua dança para manter assim a leveza que é sua marca. Em caso contrário, caímos de novo no pesadume do instinto com seres que trasncendem a esse instinto — isto por causa de suas essências angelicais — e o acasalamento consumado torna-se monstruoso; resultado: nasce uma raça de gigantes altamente destruidores e anarquistas, pesados esmagando a leveza tão procurada.

Porque trata-se, aqui nessa aproximação do anjo-pássaro com a moça-flor, de uma aproximação dos princípios, amis exatamente da poesia dos princípios; não se trata de um simples ato curto e grosso — como o ato sexual —, mas de um gesto, quer dizer, um ritual, e, já que a leveza é a componente essencial dos dois parceiros, essas bodas, para conservar a leveza, devem realizar-se apenas como elegância e dança: um beijo leve e não guloso — não um beijo de carne, mas um beijo de princípios. Isto que é o beijo do beija-flor na flor.

E, finalmente, esse beijo-do-beija-flor-na-flor lembra mais os anjos mensageiros (como o Anjo Gabriel na Anunciação) que não têm contatos carnais com o humano, mas que apenas fazem o gesto de tocar o ombro dos homens com a ponta dos dedos para adverti-los de uma presença imponderável e meio assustadora, e esse gesto na sua leveza é o verdadeiro beijo do anjo, igual ao sopro do vento ou a afloração da flor, o gesto e a dança do beija-flor diante da boca da flor.

[NB. Esse texto continua a evocação poético-mítica do espaço “Espírito Santo”. As preserpadas eleganes e carinhosas do beija-flor capixaba são a ilustração de um certo angelismo dentro desse espaço real-mítico que vem se juntar ao dionisismo, ao apolinismo para reforçar o efeito mosaico.]
[CHAUDANNE, Gilbert. Mitologia do beija-flor: um beijo de princípios. Revista Você, Vitória: Ufes, n.15, II, set. 1993. Primeiro texto da segunda trilogia.]

[CHAUDANNE, Gilbert. Mitologia do beija-flor: um beijo de princípios. Revista Você, Vitória: Ufes, n.15, II, set. 1993. Primeiro texto da segunda trilogia. Reprodução autorizada pelo autor.]

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Gilbert Chaudanne é artista plástico e escritor. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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