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Na seara das adivinhas

É a “adivinha uma das formas mais curiosas e ingênuas da literatura popular”. Isto disse Mestre João Ribeiro em seu clássico O Folk-lore (p. 212). Dada essa feição ingênua que quase sempre têm as adivinhações, é que, como adverte Amadeu Amaral, “muitas pessoas, que se inclinam talvez a conceder uma vaga importância aos contos e lendas, à poesia ou às artes plásticas populares, se negarão a reconhecer o mínimo valor às adivinhas, como a outros gêneros igualmente humildes.” (Tradições Populares, p. 277).” A verdade, porém, — diz o mesmo folclorista de S. Paulo — “é que não há fatos sem importância no campo do folclore.”

Vamos aqui focalizar alguns desses enigmas populares, recolhidos outrora da sempre lembrada e querida informante.[ 1 ]

Comecemos por estas duas conhecidas adivinhações, ambas de origem lusitana, como, aliás, quase todo o acervo da nossa literatura oral:

I
Alto está
e alto mora:
todos o vêem,
ninguém o adora
Resposta: — o Sino[ 2 ]

II
Altos castelos,
verdes e amarelos,
nem cozidos. nem assados,
nem comidos com colher.
Não adivinhas este ano,
nem pro ano que vier.
Resposta: — laranjas

Na excelente coletânea de provérbios Enigmas populares, o folclorista José Maria de Melo cita mais de vinte variantes dessa adivinha, recolhidas no Brasil (Alagoas, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará, Amazonas, São Paulo, Distrito Federal, Minas Gerais), em Portugal (Ovar, Porto, Barcelos, Famalicão, Agueda, Gondomar etc.) e em Espanha e França — o que indica a enorme difusão dada ao velho enigma do povo. É verdade que, das vinte e oito variantes aí registradas, l6 têm como resposta — o sino, tal como na versão que recolhemos; as demais respondem que é o coco de beber água, o copo, Deus, o caneco, o relógio da torre, em face das ligeiras alterações por que passou a adivinha. Por exemplo: “Alto está, / Alto mora; / Todos o beijam, / Ninguém o adora”. Resposta: Coco de beber, água ou o copo, o caneco. Outra: “Alto está / No alto mora; / Ninguém o vê, / Todos o adoram.” Resposta: Deus. “Alto está, / Alto mora; / Todos o crêem, / Ninguém o adora”. Resposta: O relógio da torre.

A respeito desta última resposta, há, nos Apólogos dialogais, de Francisco Manuel de Melo, clássico seiscentista, breve referência no conhecido “Diálogo dos Relógios falantes”. Diz assim o trecho, aliás muito citado: “Relógio da Cidade: …por isso um Pintor astuto, mandando-se-lhe pintar o símbolo de um Ministro, pintou um Relógio ao revés, a campainha para baixo, e os pesos para cima. — Relógio da Aldeia: Que queria dizer nisso? Porventura, porque os Ministros trazem sobre si os pesos e os pesares da Republica, e que a língua assim no sino para baixo, é a que há de andar por baixo de tudo sem aparecer? — Relógio da Cidade: Não por certo, mas porque diz lá um Provérbio, que a nós outros os Relógios todos nos crêem, e nenhum nos adora; por isso o Pintor agudamente pintando um Relógio às avessas, quis dizer, que os Ministros todos os adoram, mas ninguém os crê.” (Apólogos Dialogais, p. 7).

Idêntico enigma corre na Espanha, como o registra Francisco Rodriguez Marin, em Cantos Populares Españoles (Tomo I, p. 277): “Alto me veo / Como una mona; / Todos me creen, / Nadie me adora”. “En alto vive, / En alto mora; / En él se cree / y no se adora.” Para ambos a resposta é el reloj.

Também na Argentina, tem a adivinha esta última forma: “Alto vive y alto mora / en él se cree, mas no se adora”. Resposta: el reloj de ia torre (in Maravilla que será?, p. 46).

O segundo enigma (II) acima referido é também difundido em toda a parte. José Maria de Melo o registrou na sua coletânea (p. 76) em variantes diversas, entre as quais estas:

“Muitas moças num castelo
Vestidinhas de amarelo” (Paraíba)

“Que significam altos castelos,
verdes e amarelos?”
Resposta: — laranjal (Minas)

Aliás, esse “vestido amarelo” se repete em versões de Portugal, Espanha Argentina e São Domingos, conforme o refere o autor de Enigmas populares. Também o encontramos em Venezuela apontado no livro de R. Olivares Figueroa, Folklore Venezolano, tomo I:

“Cien niñas en un castillo,
y todas visten de amarillo”
Resposta: las naranjas

No citado livro de Rodriguez Marin, Cantos populares Españoles (tomo I, p. 277, n° 462) lê-se a versão possivelmente originária:

“Muchas damas en un castillo
y todas visten de amarillo”

Como ocorre com a adivinha anterior — a do sino — também nesta a conclusão pode variar. De fato, em certos lugares, a resposta ao enigma não é laranjas ou laranjeira — e sim bananas ou bananeira. Tal o que se vê no livro Adivinhas, de Veríssimo de Melo, onde se transcreve esta versão do Rio Grande do Norte: “Quatro moças na janela / Todas quatro de amarelo” (p. 35, n° 66).

O mesmo se dá com variantes de Alagoas, Paraíba, Amazonas e São Paulo, conforme registro em Enigmas Populares (p. 76-7).

Em nenhuma das coletâneas que conhecemos, a adivinha se apresenta com aquela segunda parte: Nem cozidos, / nem assados, / nem comidos com colher. Em outra adivinhação, porém, vamos deparar variante dessa complementação, embora o enigma seja bem outro. Veja-se:

“Jaboti, caboré,
Nem se come assado,
Nem de culé.
Resposta — jaboticaba

Dessa adivinha, que se encontra em Enigmas populares (p. 497), recolhemos variante aqui em Vitória, com a mesma resposta. Diz assim: Jaboti, / Caburé, / Nem cozido, / Nem assado, / Nem comido / Na colher.

Quanto à parte final da nossa adivinha das laranjas. é ela fecho conhecido, utilizado em várias outras, como esta, por exemplo, coletada aqui no Espírito Santo:

Chapéu sobre chapéu,
Chapéu do mesmo pano.
Vós não haveis de adivinhar
Nem neste ano,
Nem no outro que vier,
Enquanto não vos disser.
Resposta — cebola

Há dela, com o mesmo fecho e quase a mesma redação, variantes em Alagoas, Paraíba, Rio Grande do Norte, Minas, São Paulo, Distrito Federal. Também em Portugal se diz: “Capinha sobre capinha, / Capinha do mesmo pano; / Se tu não disseres agora, / Não adivinhas nem num ano.” (O livro das adivinhas, de Augusto Cesar Pires de Lima, n° 236). No grande Cancionero popular de Tucuman, do folclorista argentino Juan Alfonso Carrizo, se depara esta variante (Tomo II, p. 534, n° 2.253):

“Sombrero sobre sombrero,
Sombrero de rico pano;
Si no adivinas hoy día,
No adivinas en un ano”.
Resposta — la cebolla

E já que estamos ainda no vasto e curioso campo das adivinhas, queremos referir aqui mais duas delas, recolhidas ambas da mesma saudosa fonte oral.

A primeira é daqueles enigmas de duplo sentido, que envolvem certa malícia brejeira, só desfeita após se dar a verdadeira e clara resposta.

III
Enquanto meu compadre vai e vem,
Minha comadre mostra o que tem…

A resposta, como se sabe, é o mar, a praia e as conchinhas.

Está ela registrada em Enigmas populares, sob n° 441, na seguinte versão alagoana: “Enquanto meu pai vai e vem, / Minha mãe mostra o que tem”. Resposta: o mar e a praia.

Há tempos, recolhemos, aqui em Vitória, outra variante dessa mesma adivinhação. Deu-no-la um velho tapioqueiro de Camboapina, “seu” Leonídio Ataíde, e deve representar, talvez, a primeira versão da adivinha, como se vê do arcaico “mentre”, nela usado, em lugar do atual “enquanto”:

Mentre meu cumpade vai e vem,
Minha cumade amostra o que tem.

A outra adivinha é a mais singela de todas, talvez a primeira que, em criança, se aprende:

IV
O que é, o que é:
Uma casinha branca,
sem porta nem tranca?[ 3 ]

São inúmeras as adivinhações do ovo — que se conhecem por toda a parte. Basta, para o comprovar, o manuseio dos vários livros e estudos que versam esses enigmas populares. Veríssimo de Melo, em sua interessante coleção de Adivinhas, além da versão que recolheu em Natal: “Uma igrejinha branca, / Sem porta e sem tranca” — cita variantes de Belém, da Paraíba, e versões asturianas, galiciana, maiorquina, italiana, francesa e portuguesas; ao todo, 13 adivinhas do ovo. Augusto Pires de Lima, folclorista português, no O livro das adivinhas, divulga 11 adivinhações cuja resposta é ovo ou ovos. Manoel José de Andrade, em Folclore de la República Dominicana, transcreve igualmente 11 adivinhas sobre o ovo. Finalmente José Maria de Melo, na sua copiosa coletânea Enigmas populares, faz seguro estudo comparativo confrontando 43 adivinhas do ovo em versões brasileiras, portuguesas, francesas, espanholas, italianas, argentinas, uruguaias e dominicanas.

Das brasileiras que cita, há variantes de Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Pará, Amazonas, Sergipe e São Paulo. Nem uma só capixaba.

No entanto, cá por casa também corre número regular de adivinhações do ovo. Variante daquela tão sabida “Casinha branca”, recolhemos em Santa Leopoldina:

O que é, o que é:
uma igrejinha branca,
sem torre e sem janela?

A comparação do ovo com uma casa ou casinha branca é comum a outras adivinhas do mesmo tema, como, por exemplo, esta, ouvida aqui em Vitória:

O que é, o que é:
Uma casa caiada
com uma lagoa dentro?

que lembra esta outra, de Sergipe: “Casa caiada, / Lagoa água” (Sílvio Romero, Cantos Populares do Brasil, p. 376).

Outra, também de Vitória, parece completar a adivinha sergipana:

O que é:
Casa caiada,
lagoa d’água,
mina amarela —
ninguém mora nela?

Aliás essa “casa caiada” encontramo-la em adivinhas de Portugal: “Menina bonita, / Saia amarela. / Casa caiada / Ninguém entra nela”; e da Paraíba: “Casa caiada, / Bonina amarela, / Telhado de vidro, / Ninguém entre nela” (Enigmas populares, p. 372 e 374).

Cremos que essa “bonina amarela” deve ser a fonte natural da nossa “mina amarela”.

Também compara o ovo a uma casa esta adivinhação que recolhemos do velho “seu” Leonídio, de Camboapina:

No areá encontrei
ua casa povoada,
sem tê postigo nem porta,
de pinho toda forrada.

Não vimos esta versão, com tal forma, registrada em qualquer das coletâneas conhecidas. Com tal forma, ainda não; mas, variante afastada é a que cita Augusto Pires de Lima, em O Livro das Adivinhas, n° 188: “Que é o que é / uma torre abandonada, / Sem janela nem postigo? / Adivinha, não to digo…”

Muito comum entre nós é este outro enigma do ovo: Quando sobe é prata, quando desce é ouro, localizado em Santa Leopoldina e também corrente, em variantes, v.g.: jogando pra cima é prata, jogando no chão é ouro (Vitória, Vila Velha, Santa Leopoldina etc.). É adivinhação difundida em vários pontos de Portugal e Brasil. No Livro das adivinhas, n° 182, há esta versão lusa: “Qual é a cousa, qual é ela, / Que é branca e, caindo ao chão fica amarela?”, Em lugar da prata o branco; em vez do ouro o amarelo.

Estas são as quatro adivinhações que a memória me lembra ter ouvido à querida Mãezinha. Todas são de procedência lusitana, onde ela as aprendeu, lá em Leça da Palmeira, frente a Matosinhos, no Porto, e de lá trouxe para o Brasil, como tantas outras migalhas do opulento e rico folclore de sua terra natal.

NOTAS

[ 1 ] Albina da Silva Neves, de Leça da Palmeira, a cuja memória é dedicada esta “plaquette”.

[ 2 ] Informação colhida de Albina da Silva Neves, mãe do autor.

[ 3 ] Idem.

[Alto está e alto mora — Nótulas de folclore. Vitória: edição do autor, 1954.]

Guilherme Santos Neves foi pesquisador do folclore capixaba com vários livros e artigos publicados. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

1 Comment

  • Anônimo
    17/03/2017

    gostaria de saber a resposta sobre uma charada……O que calça o chapéu quando se usa

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