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Natal (um certo instante)

Abro a televisão e lá está o filme Esqueceram de mim.

Até hoje não consegui ver o filme todo, mas vejo que a TV insiste tanto em reapresentá-lo que, um dia, quem sabe? O menino lourinho é o neto com que todo avô sonha, mas a história, me parece, é aquele chute de ingenuidade pasteurizada. No entanto, nesta vez em que o filme me tocaia pela televisão vou vendo cenários inéditos. Não os vi nos outros pedaços de filme em que a televisão me pegou desprevenido. E, agora, a confissão: tenho um fraco por decoração de Natal. Falou em decoração e enfeites de Natal, preciso me segurar para não cair no exagero e mesmo que os limites da sensatez sejam ultrapassados não apresento qualquer desculpa nem peço condescendências. É um fato da vida. Neste momento, a TV está exatamente mostrando belíssimas decorações de Natal dessa cidadezinha onde se desenvolve a ação do Esqueceram de mim.

Ruas semi-iluminadas, com bolas coloridas que imitam o gelo escorrendo das árvores. Pingentes como gotas de orvalho cristalizadas, surgidas na madrugada anterior, nos preparativos da Noite.

Pela vidraça da janela de uma casa, como no velho poema de um poeta português, vultos de pessoas que se abraçam e trocam presentes. Guardiã atenta, a árvore de Natal num canto da sala, com suas luzes intermitentes, sinaliza emergências de fraternidade.

Creio que o instante do encontro daquelas pessoas, como se vê pela vidraça, pode bem traduzir o Natal. Ah, mas você não sabe, aquele cunhado detesta a mãe que, por seu lado, detesta a filha do genro que… há apenas interesses… rosna o antagonista.

Acontece que, como sempre, a hipótese desses instantes nem mesmo pode ser representada numa unidade de tempo. Suas incursões são fulminantes na selva selvaggia do quotidiano. Os efeitos que causa não são mais problema do instante. Mas é fácil compreender que, ali, o conflito é estrangeiro e não tem visto de entrada.

Tudo isso é possível ver através dessa vidraça mostrada no filme. Sim, mas…

Ocorre que nesse momento de duração fugaz nem mesmo é possível articular o “mas”. Quando acontecer, o momento passou, o “mas” já era e uma nova estrela foi adicionada aos céus de Belém como nas mais óbvias canções da Noite Feliz. O “mas” que tente recuperar-se nos dias e séculos seguintes. O desfecho não pode ser previsto porque os “instantes” precisam se livrar do cerco implacável do terrorismo, das guerras e da violência em geral. Além de precisar desmentir diagnósticos como o de Susan Sontag, para quem a guerra seria um antídoto contra o tédio. Por isso não vai acabar nunca porque o tédio cresce em termos de média geométrica. Entretanto, embora não exista nenhuma estatística disponível para quantificar esses “instantes”, por algumas e escassas evidências, é possível admitir que, apesar de tudo, eles furam a barreira da violência e persistem. E mais não digo para não ser pretensioso, já que o mistério permeia os instantes, com ocorrências imprevisíveis ao menos para este pobre mortal.

Em todo caso, creio que cada um de nós tem experiência de instantes assim. Talvez não os valorizemos devidamente porque sua identificação não é tão imediata. Por exemplo, para citar um cuja importância cresceu muito com o passar do tempo. Estou vendo o presépio da infância. Vejo minha mãe cortando as figuras do Almanaque do Tico-Tico que vão sendo coladas numa cartolina. As casas no estilo do deserto são fáceis de cortar porque são blocos de figuras geométricas regulares. Mas as figuras da Sagrada Família exigem uma habilidade maior com a tesoura. A cola era de farinha de trigo e água, o que causava uma certa dificuldade na colagem das peças. Quando finalmente conseguimos colocar o menino Jesus na manjedoura, surgiu o instante similar ao visto através daquela vidraça do Esqueceram de mim e então, mensagem recebida, a estrela de Belém brilhou mais.

[Crônicas de 2004.]

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© 2004 Texto com direitos autorais em vigor. A utilização / divulgação sem autorização expressa dos detentores configura violação à lei de direitos autorais e desrespeito aos serviços de preparação para publicação.
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Ivan Anacleto Lorenzoni Borgo é cronista e nasceu em Castelo, ES, em 21 de fevereiro de 1929. Formado em Direito pela Faculdade de Direito do Espírito Santo (Ufes), com especialização em Economia pelo Conselho Nacional de Economia em convênio com o MEC. Foi professor da Ufes de 1961 a 1989 e diretor regional do Senai/ES de 1969 a 1990. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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