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Nos caminhos da montanha

Num fundo distante a montanha enorme e azul embalada em nuvens de papelão branco. No cenário, trilhos de aço ao sol, triturados e comidos pela Ramona, a locomotiva resfolegante, expelindo fumaças contundentes e sufocantes, subindo a serra com grande senso profissional.

Em Guiomar, pastel de palmito com café torrado em casa. Mas o ponto de almoço era em Virgínia. (Para que planeta foram Guiomar e Virgínia depois de guilhotinadas pela foice certeira dos mudancistas vigilantes, dos adaptadores, dos quê?)

A fuligem numerosa entrava pela janela do vagão mas os experientes viajantes das casas comerciais do Rio de Janeiro, que faziam a praça de Vitória, se preveniam vestindo guarda-pós e dormiam a viagem inteira, indiferentes à paisagem. Nem mesmo se interessavam pelos abismos dos viadutos e pontilhões de Soturno.

Perto do infinito, gravatás e manchas brancas nas pedras, bem lá no alto, sumiam no céu e a Ramona, em marcha lenta, pisava em ovos para atravessar os despenhadeiros mais perigosos da estrada. De vez em quando uma pedra pequena se desprendia da rocha, se precipitava nos espaços abissais e caía lá no fundo onde se avistava uma nesga d’água que logo sumia pela vegetação.

* * *

A estrada de ferro passava a seis quilômetros da vila. Para apanhar encomendas era necessário andar cerca de uma hora, por um caminho íngreme, até chegar à estação onde, naquele dia memorável, haveria uma encomenda especial.

Olhava na direção do céu acima do morro do Bautz e se impacientava com a falta de sinais da chegada da aurora. Pouco mais tarde, a alegria de ver fiapos de luz manchando as árvores e, enfim, pé na estrada de chão batido rumo à estação. Sempre haverá de lembrar-se dos perfumes silvestres ativados pelo orvalho da madrugada. No barranco, amoras vermelhas contra o amarelo ocre, e nem falo dos pássaros porque senão me perco em difusas divagações e me esqueço do que realmente quero falar.

Na verdade quero falar da encomenda especial que deveria receber naquele dia pelo trem expresso vindo do Rio. Vou pulando detalhes e apresso-me em me ver na plataforma da estação construída nos primórdios da Leopoldina Railway. Agora observo que a arquitetura da estação permanece a mesma, a original do tempo do velho imperialismo inglês, e podem ser encontradas similares em várias partes do mundo como marca de uma época.

Uma luz vermelha se acende e logo me dou conta que a lembrança pode ser perigosa. Não sei se para alguns não seria bom mencioná-la com um gesto qualquer de desprezo. Não sei se é conveniente achar belo esse prédio da estação. Mas a indecisão dura uma misérrima fração de segundo. Na minha memória, a estação é o lugar onde se materializa o sonho e isto basta para concluir que o lugar é belíssimo.

O sino da estação já bateu e o trem vem chegando. Vem se aproximando manso e com suas fumaças controladas dentro do poderoso peito de ferro da locomotiva. Barulho de engrenagens rangentes, trancos e, finalmente, o trem estaciona aqui na plataforma, justo na minha frente. A ansiedade e a dúvida se aguçam. Terá chegado a encomenda?

Passam fardos de objetos desconhecidos carregados por carrinhos compridos que vão para o depósito da estação, um cômodo frio e lajeado onde há uma cobertura semicircular no topo fechada por uma grade de ferro. Mais cargas entrando no armazém. Uma batida de sino, um apito e o trem volta a se movimentar. Mais um pouco e some ali na frente.

Pergunta ao homem que tem duas listras douradas no boné se a sua encomenda chegou. O homem diz que vai ver e se dirige para o armazém onde predomina um cheiro de café em grão.

O homem volta em seguida com um pacote e me entrega a encomenda esperada: o primeiro número de uma assinatura do Tico-Tico que meu pai fizera para mim. Recebo o exemplar da revista e a alegria é tão grande que não sei se agüento.

Não vou falar do Tico-Tico que isso é conversa comprida, mas devo dizer que no Natal armamos um presépio muito bonito com as gravuras que vieram num anexo da revista.

[Transcrito de Crônicas de Roberto Mazzini, SPDC/Ufes, 1995.]

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Ivan Anacleto Lorenzoni Borgo é cronista e nasceu em Castelo, ES, em 21 de fevereiro de 1929. Formado em Direito pela Faculdade de Direito do Espírito Santo (Ufes), com especialização em Economia pelo Conselho Nacional de Economia em convênio com o MEC. Foi professor da Ufes de 1961 a 1989 e diretor regional do Senai/ES de 1969 a 1990. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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