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Nós, os capixabas

Até o final da década de 50 (no século XX, é claro), a tal globalização da comunicação não havia chegado ao Brasil. Salvo a Rádio Nacional do Rio e o programa A voz do Brasil (um horror, este), não existia em nosso país qualquer outro instrumento de massificação cultural. Isto favorecia o desenvolvimento e a permanência das culturas locais, mais ou menos definidas.

No caso do Espírito Santo, isolado ao norte pelas matas densas que existiam do rio Doce para cima, isolado (ou quase) a oeste pela serra dos Aimorés e outros contrafortes da serra da Mantiqueira e apenas tenuemente ligado ao estado do Rio, ao sul, pelo fio metálico da Leopoldina Railway e, depois, pela faixa asfáltica que, com sua coragem e ousadia, Jones dos Santos Neves construiu.

Naquela época, o Espírito Santo tinha dentro do seu território alguns bolsões bem identificados de cultura própria, de certa forma independentes entre si.

Em talvez metade de seus 43.000km², o Espírito Santo se caracterizava por uma população tipicamente pequeno-agricultora, até certo ponto uma gente que se parecia com o mineiro, sem ser tão desconfiada ou retraída. Na região que ficava no entorno de Cachoeiro (aí incluídas cidades como Castelo, Alegre, Rio Novo, Iconha, Muqui e Mimoso) vivia um capixaba com acentuado gosto pela migração. De lá saíram os capixabas que foram povoar algumas áreas suburbanas do Rio de Janeiro e, em escala menor, ocupar funções na burocracia oficial da capital da República. Finalmente, na região que hoje tem o apelido de “Grande Vitória”, ficava e vivia o capixaba mais típico, o traço predominante da gente que se forjou nesta terra de Vasco Fernandes Coutinho. E é exatamente desse último que gostaria de me ocupar, por entender que aí se produziu a maior descaracterização cultural.

Éramos ilhéus ou canelas-verdes. Os poucos que sobravam estavam em Cariacica ou Serra. Mas tínhamos uma certa unidade de cultura e de caráter. E absorvíamos com muita velocidade os estranhos que por aqui chegavam. Que o digam os ingleses da Companhia Central Brasileira de Força Elétrica, da Leopoldina e de outras empresas de Sua Majestade. Mr. Burns e Mr. Haynes viraram capixabas e nunca mais sequer consideraram voltar para o fog e para os prados verdes da Inglaterra.

Absorvíamos os que chegavam, mas não perdíamos o nosso jeito e a nossa filosofia. Uma final entre Rio Branco e Vitória empolgava mais que qualquer Fla-Flu de hoje. E, [nas regatas], a eterna pendenga entre o Álvares e o Saldanha atraía para o forte de São João verdadeiras multidões.

Aí veio a década de 60. Com ela, a crise do café (criminosamente substituído pelas boiadas e pelo desmatamento feroz) e o início dos chamados “Grandes Projetos”. O porto de Tubarão, as usinas de pelotização, mais tarde, a CST e, logo, a Aracruz Celulose atraíram para a região um verdadeiro exército de ocupação. Os baianos e mineiros provendo a mão-de-obra não-especializada da construção civil, os cariocas e paulistas para suprirem a falta de experiência capixaba na função gerencial, e assim por diante.

Li, há cerca de dois anos, numa publicação do IBGE, que, no ano de 1992 (se não estou enganado), 52% da população da Grande Vitória estavam constituídos por pessoas que haviam nascido fora do Espírito Santo. Isto explica, creio eu, as grandes modificações sofridas pela cultura capixaba. Hoje incorporamos o trio elétrico, a música sertaneja paulista (que na minha época de rapaz se chamava “música de zona”), o culto a Iemanjá (que aportou a Vitória pela mão dos cariocas) e até em nossa moqueca já botaram molho de camarão.

Como ato final, uma verdadeira mortalha, tal como todos os brasileiros, o capixaba vê novelas pela televisão. E lá se vai definhando, devagarinho, a cultura capixaba.

Esquece-se a história do Estado, perdem-se as estórias e vamos adotando, aos poucos, hábitos e linguajares que nada têm a ver com nossas origens.

Já se deram conta de um fato? Toda a orla de praias da ilha de Vitória se chama Praia do Canto. A denominação geral dominou e matou a Praia de Santa Helena, a Praia Comprida, até o canto da Praia. Praia do Barracão ou Praia do Trampolim, então, nem pensar… Também pudera! Os atuais moradores não estavam aí há trinta anos.

TRISTE? Nem tanto! Todo o Brasil passa pelo mesmo fenômeno. Misturam-se as culturas internamente e essas, por seu turno, sofrem pesadas influências do exterior. C’est la vie, mon cher ami.

O que se pode fazer? Exatamente o que alguns estão fazendo: pelo relato, pelo depoimento, manter viva a história dos capixabas. Fizemos isso, em 1994, no livro Espírito Santo, Brasil. Muitos outros fazem o mesmo. O tema está em discussão. Pelo menos a memória capixaba insiste em não ser enterrada! Deus a abençoe! É uma empreitada que conta com muita gente de talento, disposta ao bom combate.

Fiquei muito satisfeito ao ver que coisa séria ainda encontra espaço para discussão e, como um modesto observador, não resisti à tentação de fixar no papel alguns pensamentos que me vieram à cabeça sobre o assunto.

Concordo com a afirmação, feita por diversos estudiosos, de que nenhum depoimento, até hoje, foi capaz de explicar o “capixaba”. Até porque é preciso admitir que a grande diversidade étnica que originou o povo que habita o Espírito Santo não permite generalizações. O capixaba de Vitória é razoavelmente diferente do capixaba de Pedro Canário e de Guaçuí.

Mas insisto em que o Espírito Santo ainda está vivendo um período de intensa transformação cultural. De exportador de população nas décadas de 40 a 60, passou a importador. E os que chegam trazem novos hábitos, culturas distintas. O impacto dos recém-chegados não é desprezível. Pelo fato de o Espírito Santo possuir uma população total muito pequena, essa transformação, quem sabe?, deva ser objeto de investigação.

[SALLES, Carlos Augusto. Nós, os capixabas. Revista Você, Vitória: Ufes, n.42, set. 1996. Reprodução autorizada pelo autor.]

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Carlos Augusto Salles foi presidente da Xerox do Brasil.

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