Pelo menos dois marinheiros ingleses, documentadamente, navegaram, em diferentes épocas, o litoral do Espírito Santo, deixando registros de viagem. O primeiro foi Anthony Knivet, grumete na expedição que o célebre corsário Thomas Cavendish empreendeu ao Brasil no começo da última década do século XVI; o outro, o aspirante a oficial de marinha Edward Wilberforce, integrante da oficialidade da corveta de guerra Geyser que esteve no Espírito Santo na primavera de 1851 sob o comando do capitão de fragata Edward Tatham, em missão repressiva ao contrabando de africanos.
Distanciados entre si cerca de dois séculos e meio, súditos, respectivamente, das notáveis rainhas Elizabeth II e Vitória, da Inglaterra, Knivet e Wilberforce deixaram-se tomar por idêntico impulso narrativo pondo no papel as principais impressões que colheram de suas passagens pelo litoral brasileiro. Contribuíram, desta forma, para que seus apontamentos e registros se tornassem documentos de valor para a historiografia como fontes de informação de nossa história.
No relato de Knivet, que cobre a navegação de corso que Cavendish empreendeu, em 1591, nos mares da costa sul brasileira, a parte relativa ao Espírito Santo é bastante sucinta. Nela o marujo limita-se a narrar, como testemunha participante, a frustrada tentativa de saque ensaiada pelos ingleses contra a vila de Vitória. Seu depoimento foi editado sob o título “Vária fortuna e estranhos fados” pela Editora Brasiliense Limitada (São Paulo, 1947) em versão do original inglês feita por Guiomar de Carvalho Franco, da qual se transcreve o trecho que trata da investida contra Vitória:
“No nosso navio havia um português que recolhêramos da embarcação apreendida, em Cabo Frio; este português, que fora conosco ao estreito de Magalhães, e aí testemunhara a nossa falência, falou-nos duma vila chamada Espírito Santo, dizendo-nos que poderíamos chegar à frente da mesma com os nossos navios, e aí, sem perigo, lograríamos tomar muitos engenhos de açúcar e boa quantidade de gado.
As palavras deste português fizeram-nos renunciar ao projeto de ida a São Sebastião, tomando o rumo do Espírito Santo; em oito dias chegamos à embocadura do porto, acabando por lançar âncora na baía e mandar nossos botes sondar o canal; não encontrando estes nem a metade da profundidade que o português nos dissera que encontraríamos, supôs o general que o luso nos havia traído e, sem nenhuma comprovação, fê-lo enforcar de imediato. Neste local, todos os fidalgos que restavam a bordo manifestaram desejo de ir à terra tomar a povoação. O general não o queria de modo nenhum, objetando-lhes diversos inconvenientes; nenhum argumento porém os convenceu, e foram os moços tão insistentes que o general, escolhendo cento e vinte homens dentre os melhores que possuía em ambos os navios, enviou ao capitão Morgan, praça de terra singularmente boa, e ao tenente Royden, como comandantes neste empreendimento. Desembarcaram, pois, diante dum pequeno forte, com um dos seus botes e dele expulsaram os portugueses; o outro bote seguiu mais além, onde houve uma escaramuça muito violenta, e a vida desses moços depressa se abreviou, pois apearam num rochedo fronteiro ao forte e à medida que saltavam fora do bote, escorregavam com suas armas para dentro do mar; assim a grande maioria deles pereceu afogada. Em conclusão, perdemos oitenta homens neste lugar, e dos quarenta que se salvaram, nem um só voltou sem uma flechada em seu corpo, chegando alguns a ter cinco e seis ferimentos.”
O depoimento de Wilberforce sobre o Espírito Santo é bem mais extenso e informativo do que o de Anthony Knivet. o marinheiro vitoriano levou, sobre seu compatriota e antecessor, a vantagem de contacto mais demorado com a costa capixaba ao sul de Vitória, tanto com o litoral em si, por onde navegou em patrulhamento vigilante, quanto com algumas localidades que conheceu, inclusive a própria sede da então Província. Aliás, é a partir da cidade de Vitória que Wilberforce começa seus informes sobre o Espírito Santo.
Fica-se sabendo, assim, que os ingleses tiveram oportunidade de visitar a cidade, acanhada e sem conforto, renitentemente colonial embora aprazível em suas condições naturais. Aproveitando folgas e criando momentos de lazer, a oficialidade da Geyser percorreu os arredores de Vitória, enfiou-se por florestas e rios cujos nomes Wilberforce não registrou, enfrentou chuvas torrenciais, adquiriu peças de rendas e redes de dormir, viu como se fabricavam as redes de algodão cru. No palácio do governo os oficiais britânicos foram recebidos pelo presidente da Província, o bacharel José Bonifácio Nascente de Azambuja.
Impedido, por motivo de saúde e por proibição médica, de ir ao Convento da Penha, dele Wilberforce recebeu singela descrição feita por seus companheiros de bordo que não convenceu ao cronista, tendo-a atribuído ao espírito herético dos informantes.
Vê-se, por aí, que o escritor marinheiro entremeia informações de sua observação pessoal com outras, resultantes do testemunho de terceiros, chegando até a transcrever notícia de jornal brasileiro, cujo nome não cita, sobre a recepção que houve a bordo da Geyser reunindo personalidades da Província e que terminou sob o clarão de rojões.
Junto com os registros sobre a terra e seus habitantes, seus costumes e produção, Wilberforce, dando mostra de sua formação de oficial de marinha, anota referências, com valor de orientação náutica, sobre localidades do litoral espírito-santense para uso dos navegantes da época nas quais as indicações utilizadas são prosaicos identificadores da costa.
Olhos postos nos escravos contrabandeados, a eles faz diversas menções inclusive acerca dos locais em que se davam desembarques clandestinos, como em Guarapari e Piúma, por exemplo.
Como convinha a observador crítico dotado ainda de pendores literários, Wilberforce incluiu em sua narrativa pitadas de ironia e humor bem mais interessantes do que os extravasamentos líricos a que dá vazão ante a beleza natural da baía de Vitória que ele verteu em marolas poéticas de discutível qualidade literária.
Depois do regresso à Inglaterra, o texto de Wilberforce foi editado pela primeira vez, em Londres, em 1856, sob o título Brazil viewed through a naval glass with notes on slavery and the slavetrade (Brasil visto através de uma luneta com notas sobre escravidão e tráfico de escravos). A esta edição fez referência o escritor Norbertino Bahiense na obra O Convento da Penha (Vitória, Escola Técnica de Vitória, 1952), reportando-se ao ensaio crítico publicado por Afonso de E. Taunay no Jornal do Comércio, de 26 de agosto de 1945, denominado “Impressões de Vitória e seus arredores”.
Impressões do Espírito Santo de 1851 foi bem o que captou Wilberforce através de sua esquadrinhadora luneta de oficial de marinha, e que se contêm nos capítulos XV e XVI do texto original, ora publicados em separata, visando-se a colocar ao alcance do público interessado mais um relato de um viajante estrangeiro que esteve em terras e mares capixabas no século XIX.
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Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)