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O canto do galo ou o descante do delegado

“Parece praga do Tinhoso, mas quando Dr. Digital vem de terno verde, sempre sobra bronca pra mim,” costumava dizer Lenilda, a faxineira da delegacia.

Naquele dia o delegado estava de terno verde, camisa marrom e gravata branca de crochê, que combinava com o boné também branco, do tipo chofer. Esses bonés eram uma das manias do delegado, que os tinha de várias cores, muitos dos quais deixava pendurados num cabideiro da delegacia, na Chapot Presvot, 272. Seu sentido de elegância, porém, não ia além de combinar as cores dos bonés com as das poucas gravatas que possuía, estreitas e de uma só tonalidade.

“Dona Lenilda, apresente-se à minha sala,” gritou Digital assim que entrou em seu gabinete.

“É hoje,” pensou Lenilda, que terminara de regar o pé de maracujá e varria o quintal da delegacia quando o delegado chegou, verde-oliva como uma esperança.

“Pronto, doutor,” disse ela, apresentando-se a Digital, depois de ter deixado a vassoura de piaçava invertida atrás da porta dos fundos. “Dona Lenilda, a senhora sabia que temos agora um cata-vento com um galo de latão aí no nosso telhado?” indagou o delegado como se a faxineira fosse a responsável pela novidade.

“Sabia, doutor. Ele foi colocado domingo passado,” respondeu a funcionária.

“E a senhora não me disse nada? Um pirulito desses é espetado sem a minha autorização no cocuruto do meu antro de trabalho e sou o último a saber? Me sinto como um marido enganado.”

“Mas eu pensei que tinha sido o senhor que mandou colocar…”, justificou-se Lenilda.

“Eu lá tenho tempo a perder com uma besteira dessas? Sua obrigação de faxineira, e faxineira para mim é a dona da casa, da merda de casa onde funciona esta delegacia, era ter me avisado. Agora me responde: Quem a senhora acha que mandou botar o cata-vento?”

“Bem, doutor, se não foi o senhor, eu acho que só pode ter sido seu Pedrinho…” titubeou a mulher, forçada a declarar sua suspeita para com o amigo escrivão.

“Pois chame o seu Pedro ao meu gabinete,” ordenou Digital de cenho enfarruscado.

Lenilda passou pela sala do escrivão, que limpava com um lenço amarelo as lentes redondas dos óculos, e depositou o recado:

“Seu Pedro, o homem está te chamando. E olha que ele veio de terno verde,” preveniu para o amigo que já conhecia a cisma da faxineira.

Pedro entrou na sala de Digital, que o recebeu de viseira baixa. O delegado acabara de agitar um pesa-papéis de cristal onde flocos de neve caíam lentamente sobre uma cabana na montanha.

“Foi idéia sua esta de pregar um cata-vento aí nos cornos da delegacia?” atacou o Digital.

“Foi, delegado. Por quê?”

“Por quê? Qual é a sua, Pedro? O que você está querendo?”

O escrivão teve vontade de responder com os versos de Bandeira:

“Quero o moreno de Estela
Quero a brancura de Elisa
Quero o sabor de Bela
Quero as sardas de Adalgisa”,

mas limitou-se a assumir a sua responsabilidade:

“Também fui eu que paguei a instalação do cata-vento. Quem fez o serviço foi um pedreiro amigo meu.”

“Quem é o seu amigo cancuncaracha?” rosnou Digital.

“Não é cancuncaracha, delegado. A palavra certa é cucaracha,” gozou Pedro com o seu sorriso nativo de Ibitirama.

“Eu pensei que fosse cacucaracha,” retrucou o delegado.

“Então por que você disse cancuncaracha?” indagou Pedro, com a peculiaridade nativa ainda florindo nos lábios.

“Porque eu quis inovar…”

“Pois inovou mal…” reprovou o escrivão.

“Mas entre cancuncaracha e cacucaracha, qual você prefere?” retornou o delegado. (Não estava brincando, estava desafiante.)

“Se é para inovar, eu prefiro caracucaracha…” embarcou Pedro no diálogo imbecil.

“Gostei desta… Então me responde: [continuava desafiante] Quem era o tal caracucaracha que você arrumou para instalar o cata-vento?”

“Já lhe disse, Digital, que foi um pedreiro amigo meu. Se eu disser o nome você é capaz de querer cobri-lo de porradas. Ele me fez um favor pessoal. Cometi algum crime, por acaso?”

“Só que eu sinto como se tivesse um chifre na cabeça,” protestou Digital. “E já que você mandou botar a geringonça no telhado, trate de tirá-la o quanto antes.”

“Posso pelo menos explicar por que tomei essa iniciativa?” arriscou-se Pedro a uma reação imprevisível, já que Digital provocava outra tempestade nos Alpes agitando com a manopla a bolota de cristal.

O delegado apertou os dedos sobre a tempestade em andamento, olhou para o escrivão com olhos de urso branco flechado no lado canhoto do peito, refreou a vontade de o mandar escafeder-se da sala, mas acabou consentindo no pedido.

“Você tem dois minutos para se explicar,” disse, feroz, marcando no rolex de ouro, com a unha longa do dedo mínimo, o tempo concedido ao escrivão.

Pedro viu a tempestade de flocos ir se arrefecendo dentro do meio-ambiente de cristal e começou a sua conversa mole:

“Eu tenho o hábito de jantar no Restaurante Casa Velha, sabe onde é?”

“E eu com isso?” arreganhou-se Digital.

“É que nesse restaurante está havendo uma exposição de fotos de Vitória antiga. Uma das fotos é desta delegacia quando ainda era uma residência novinha, na Praia Comprida. No telhado da casa aparece o cata-vento com o galo. Então eu tive a idéia de mandar fazer um novo para substituir o antigo, destruído pelo tempo. Nada mais do que um resgate histórico.”

“Você não acha que essa idéia de resgate histórico é a frescura das frescuras?” fuzilou o delegado, imprimindo na cara um riso forçado. “Isso é coisa do tempo de Adão cacete…”

“Não é Adão cacete, delegado, é Adão cadete,” aproveitou-se Pedro para ir novamente à forra, o risinho implacável de Ibitirama reincidindo-lhe nos lábios.

“Lá vem você outra vez com a mania de corrigir os outros… E por que é Adão cadete e não Adão sargento, ou Adão tenente, ou Adão capitão? Aliás, Adão capitão, com seu cacete na mão, seria mais lógico…” decretou o delegado.

“E por que mais lógico?” tornou a provocá-lo Pedro.

“Não enche o saco, pícolas! Pra mim é mais lógico e pronto. Como é mais lógico falar Adão cacete. Acabou a sua explicação?”

“Tem mais uma informaçãozinha que eu gostaria de dar, embora você não valorize essas coisas,” disse Pedro. “O cata-vento e o galo têm um sentido simbólico: a seta, que serve de poleiro, indica o sentido da vida, o destino dos homens; o galo significa o Sol, a inteligência, boas novas…” (e outra vez desenha-se o risinho torpe em seus lábios finos).

“Ah, é! Que bela viadagem a sua! Quanta untopia pra merda nenhuma! Mas já que você puxou essa sua inútil cultura de falcudade, você se esqueceu de traição…”

“Traição?!” surpreendeu-se Pedro.

“O galo não significa traição a Cristo?”

“Pelo amor de Deus, Digital! Quem traiu Cristo foi São Pedro, o santo meu xará, antes que o pobre do galo trinasse três vezes. Você ouviu o bicho cantar mas não sabe aonde…”

“Pois foda-se o galo, foda-se São Pedro, foda-se o seu cata-vento. Seu tempo de explicação se esgotou, portanto, faça-me o favor de enxotar a bosta deste garnisé aí de cima do telhado o mais depressa possível, está entendido…?”

“Está bem, delegado,” conformou-se Pedro, preparando-se para abandonar a sala quando o telefone tocou. Digital fez-lhe sinal para que aguardasse.

“Alhou… Pois não, secretário, como tem passado? É mesmo? A primeira-dama gostou?… Eu fico satisfeito com esta informação… [Digital falava provocando mais uma nevasca dentro do pesa-papéis.] Pois foi uma idéia que nós tivemos para resgatar a história da delegacia… É verdade, secretário… Tem sentido também simbólico… [Digital falava sem olhar para Pedro.] O galo significa boas notícias, inteligência… Como? Apolo também?! Ah, é verdade… Muito bem lembrado, secretário… E muito obrigado pelo seu telefonema. Agradeça, por favor, os elogios da primeira-dama e ligue sempre que precisar.”

Quando desligou o telefone, Digital voltou-se para Pedro, que o observava com sarcasmo, e perguntou, enquanto dentro da bola alpina o sol parecia raiar sobre a Suíça:

“Pô, Pedrinho, o que é que o galo tem a ver com um tal de Apolo?”

[Este texto integra a série intitulada CHAPOT PRESVOT 272, de Luiz Guilherme Santos Neves]

Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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