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O dedo mindinho

Cjhegando a Ponto Belo. Foto Gilson Soares, 2014.
Cjhegando a Ponto Belo. Foto Gilson Soares, 2014.

Enquanto vadiava, no rastro da deusa, ia observando que a tarde já afrouxara suas rédeas de luz e permitia, agora, que a noite começasse a assombrear as longínquas auréolas vespertinas que esmaeciam, então, pelos montanhosos beirais do Torreão.

E aí – eu me perguntava ali – que caminho você seguirá amanhã cedinho?
Enquanto procurava uma resposta, ia vendo a noite, agora, se apropriar lentamente da cidade nanica, que ainda tentava reagir, acendendo luminárias – umas tímidas, outras exaltadas – no alto de postes fincados à beira de ruas e largos.

Eu, sedento de informação, caçava interlocutores.

No centro de uma praça que abriga equipamentos recreativos e ruazinhas sinuosas que circulam pelo seu interior sem levar a lugar algum, um quiosque despertou meu interesse.

Em torno dele quatro caras aproveitavam aquele fim de domingo pra uma conversa frugal regida pelo brando teor da cerveja e pelo clima ameno de uma noite de outono tropical.

Um dos caras – o dono do quiosque – tratou logo de servir a cerveja que cheguei pedindo.

Consciente da minha condição de forasteiro ficaria por ali, bebendo calado, até que uma oportunidade me fosse oferecida pra começar a desfiar a ladainha de dúvidas, digamos, geotopográficas que trazia – àquela altura, martelando – na minha cabeça.

– Cadê a bicicleta?

Eu não tinha ainda nem acabado de engolir o primeiro copo da cerveja gelada, que sorvia com silente prazer, quando vi essa pergunta vindo na minha direção: era o dono do quiosque que, olhando pra mim, lançara a indagação e já explicava que tinha me visto pela manhã pedalando pela cidade (que supunha abandonada, arrematei em silêncio).

Nem me lembro mais sobre o quê eles conversavam quando aterrissei ali.

Só sei que a partir daí, aquele trio (um dos caras debandou logo depois que eu cheguei) me serviu de todas as informações de que precisava.

O desfecho da conversa, já adianto pro ansioso leitor, não trouxe a orientação que eu gostaria de ter ouvido: eles foram unânimes em desaconselhar qualquer proximidade do meu trajeto com o desenho cartográfico do Torreão.

Mas o encontro foi muito proveitoso e agradável.

Não dá pra afirmar que foi só o acaso que conseguiu reunir aquela regência trina, ali, para me atender.

Olha os caras : um era o Adalberto – o único nome que me ficou da tríade – que é ecoporanguense, como eu, e trabalha nos Correios.

Esse, além do natural interesse de ajudar um conterrâneo desgarrado, demonstrou um conhecimento apaixonado da região.

Conhecimento que, percebi, agrega à atividade profissional sua própria biografia, cuja trama se desenvolve praticamente toda no noroeste capixaba, em idas e vindas que ele foi relatando naturalmente, enquanto ministrava com segurança sua aula de geografia local pra um aluno muito atento e interessado.

O outro, era um cara mais velho: um ponto-belense que saiu, rodou pelo mundo e voltou pra sua terra, que ele conhece integralmente – pude ver – com o coração.

E o terceiro – que talvez seja o primeiro, na verdade não há ordem nisso – era o dono do quiosque.

Não é que o cara tem um irmão que há coisa de uns cinco anos – contados até então – tinha pegado uma bicicleta e caído no mundo?

Dele, do tal irmão, só chegavam pra família, em Ponto Belo, notícias soltas, casuais, vadias.

Ao me ver, naquela manhã, pedalando pela cidade vazia, com bagagem de viajante sobre a bicicleta, ele disse que se lembrou do irmão fugidio.

Quando falei meu nome pro grupo, destacou-se a sua cara de alegre surpresa.

Sabe o nome do irmão nômade do dono do quiosque?

Gilson!

Pronto: estava eu, ali, ao fim daquele domingo de outono tropical, tomando uma desapressada cerveja com três velhos amigos – que acabara de conhecer – no centro da praça mais ampla, daquela cidade exígua.

Não sei, repito, se devo atribuir ao acaso aquele encontro que foi decisivo para o desenvolvimento do meu inexato roteiro de viagem.

Pois acredito firmemente, confesso, que o que aconteceu ali teve a interferência de, pelo menos, um dedinho – o mindinho, que seja – da deusa parda, singela e fugaz, cuja anunciação me ocorrera ao meio-dia daquele dia.

Mas se você, incréu leitor, prefere creditar ao acaso aquele encontro, não tenho porque me opor.

Esteja à vontade.

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Gilson Soares é poeta e nasceu em Ecoporanga, no extremo noroeste do Estado do Espírito Santo, em 10 de fevereiro de 1955. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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