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O desbravamento das selvas do Rio Doce (Memórias) – Rio Doce V

Rio Doce

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CAPÍTULO V

Porto Final. Franqueada a navegação do Rio Doce? Problema não resolvido. Entrega de novas florestas. Cachoeira das Escadinhas. Saint-Hilaire esclarece. Registros e destacamentos. Rui Barbosa, patrono do Espírito Santo. A Constituição de 1937. “Lembrem-se de que sou mineiro”.

Em 1905 era estabelecido em Porto Final o Sr. José Viana. Mantinha um empório comercial de suma importância.

Pouco além, no Porto de Sousa “o vale do rio é muito estreito, e o rio (…) não media mais do que duzentos e cinqüenta pés de largura em frente ao porto”,[ 107 ] aí, até aonde pode ir um gaiola, é o ponto terminal da navegação, em qualquer época do ano.

Outrora, principalmente, no princípio do século dezenove, quando o Governador Silva Pontes anunciou, com estardalhaço, achar-se “franqueada a navegação do Rio Doce”, as cargas vindas do interior de Minas Gerais tinham que ser transportadas por terra da Ilha de Natividade,[ 108 ] sita nas proximidades da foz do Manhuaçu, até ao Porto de Sousa e tais eram as dificuldades em todo o percurso, acima das Escadinhas, que Eschwege as ressaltou assim: “o governador carregava de sal algumas canoas que com extrema dificuldade subiram o rio, sendo as canoas e a carga postas em terra vinte e três vezes a fim de contornar as cachoeiras e sofrendo a gente da expedição os ferozes ataques dos botocudos. Chegadas as canoas a Minas, após mil perigos, vendeu-se o sal, carregou-se algum algodão e iniciou-se a jornada de regresso com os mesmos riscos, a ponto de ninguém mais se abalançar a semelhante cometimento, batizado solenemente de abertura de navegação para Minas.”[ 109 ]

Muitas vezes ouvimos de velhos moradores de Baixo Guandu, de Natividade (hoje Aimorés) e de Barra do Manhuaçu, quando o transporte já era feito por animais cargueiros, a confirmação dos estorvos, dos obstáculos, que se opunham à navegação do rio entre Porto de Sousa e a Ilha de Natividade e daí para cima.

Decerto, o problema por demais complexo, que ainda hoje está de pé preocupando técnicos de capacidades excepcionais, como Décio da Fonseca e Bittencourt Sampaio[ 110 ] e outros, não foi resolvido e nem podia ser naquela época, pelo Governador Antônio Pires da Silva Pontes Pais Leme e Camargo,[ 111 ] apesar de todos os seus títulos científicos,[ 112 ] da sua alta linhagem e dos bons serviços prestados principalmente “na demarcação de nossas fronteiras”.[ 113 ] A solução da navegação do Rio Doce não seria dada, como não foi, pela simpatia, amizade ou proteção de D. Rodrigo de Sousa Coutinho ao seu valido, natural de Mariana.

Entretanto, Silva Pontes, um dia, talvez venha a ter o reconhecimento de Minas Gerais (o que será de inteira justiça) quando mandar erigir, em sua memória, sobre a serreta que separa as águas do Manhuaçu das do Rio Guandu,[ 114 ] ou sobre a Serra do Sousa, ou sobre a Pedra do Lorena um monumento que o represente encarapitado no alto como recordação do celebérrimo auto de oito de outubro de 1800.

Esse auto no entender da gente espírito-santense e do advogado João Chagas Ribeiro é

equivalente a uma escritura de doação de mais de oitocentas léguas quadradas de terras pertencentes à Capitania do Espírito Santo, que o respectivo governo fez à sua família…[ 115 ]

Do ajuste feito entre o protegido de D. Rodrigo Coutinho e dissoluto Governador de Minas Gerais Bernardo José de Lorena,[ 116 ] evidencia-se que se concretizara o plano de D. Rodrigo José de Meneses[ 117 ] de entregar a seus jurisdicionados “novas florestas” e de chegar às “Escadinhas” conforme esclarece Auguste de Saint-Hilaire:

…Já no fim do século XVIII os mineiros lastimavam o esgotamento de suas minas e o de suas terras em cultura. D. Rodrigo José de Menezes, governador da província, se comoveu com as lamentações dos seus administrados e quis entregar a estes novas florestas. Era um homem corajoso e empreendedor; ele próprio se internou, em 1781, nos desertos onde correm os afluentes do Rio Doce e deu a seu ajudante de campo, José Joaquim Siqueira e Almeida, ordem de descer esse rio até aos rápidos das Escadinhas, [e Saint-Hilaire continua:] Cerca de 25 anos mais tarde, foi o Rio Doce explorado de maneira mais regular, pelo Governador Pontes, que, malgrado suas bizarrias, prestou ao Brasil, sua pátria, relevantes serviços por seus sábios trabalhos.[ 118 ]

Do conluio de Antônio Pires da Silva Pontes, “o astuto filho das Alterosas”,[ 119 ] com Bernardo José de Lorena, “de escandalosa memória”,[ 120 ] segundo o Dr. Joaquim Felício dos Santos, nasceu o auto de 8 de outubro de 1800, que, mais tarde, seria invocado por Minas Gerais como regulador das fronteiras entre as duas unidades da Federação, muito embora,

na hora em que foi assinado visava, apenas, os efeitos de se estabelecerem os registros e destacamentos respectivos segundo as reais ordens do P.R.N.S. (Príncipe Real Nosso Senhor) e a vantajosa comunicação de correios para os povos do interior com as regiões marítimas.[ 121 ]

Tal auto, na opinião do desembargador Carlos Xavier, era um “ato puramente administrativo e de caráter provisório”.[ 122 ]

Baseado nesse ajuste capcioso Minas desapossou, premeditadamente, o Espírito Santo de grande parte de seu território e em sua constante aspiração de se aproximar do mar,[ 123 ] em 1914, testemunhou Vitória, a capital do Estado, a passagem de tropas mineiras deslocando-se para efetivar manu militari a sentença de um tribunal arbitral de tal forma injusta, que o maior jurista brasileiro — Rui Barbosa — não hesitou em ser o patrono do Espírito Santo para anulá-la.[ 124 ]

A constituição federal de 1937 da lavra do ilustre constitucionalista Francisco de Campos, mineiro, estabeleceu certo dispositivo pelo qual, pacificamente, ficou garantida a posse definitiva de Minas ao contestado, ao sul do Rio Doce. Essa mesma constituição fixou que o Estado-Maior do Exército seria órgão competente para, na hipótese, marcar os limites ao norte do citado rio.

O laudo da Comissão do Exército aceito pelo Espírito Santo foi, entretanto, impugnado por Minas Gerais e quando, por ocasião da votação da vigente Carta Magna… constitucionalistas submeteram à mesa um pedido de preferência para a votação de certa emenda, que reconhecia o laudo da referida Comissão do Exército, o presidente da Assembléia Constituinte indeferiu o requerimento de pedido do destaque da emenda sob o fundamento, resumo de seu modo de pensar: “Lembrem-se de que sou mineiro”.

E do aludido laudo recorreu Minas Gerais para o Colendo Supremo Tribunal.

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NOTAS

[ 107 ] Charles Frederico Hartt, obra citada, p. 118.
[ 108 ] Idem, ibidem, p. 117.
[ 109 ] José Teixeira de Oliveira, obra citada, p. 269, nota 1, p. 251, transcrita de Oliveira Lima.
[ 110 ] Atílio Vivacqua, A nova política do subsolo, p. 234.
[ 111 ] Carlos Xavier, História Espírito-santense, p. 144, Esquema GenealógicoJosé Teixeira de Oliveira, obra citada, p. 248.
[ 112 ] José Teixeira de Oliveira, obra citada, p. 248.
[ 113 ] Gastão Cruls, obra citada, p. 265.
[ 114 ] Erro histórico, porque em todo o curso do Rio Natividade, que “deságua” no “Rio Doce”, a “Serreta” separa as águas do Natividade (e não as do Manhuaçu) das do Rio Guandu.
[ 115 ] José Teixeira de Oliveira, apud Mário Freire, Capitania do Espírito Santo, p. 129.
[ 116 ] Joaquim Felício dos Santos, Memórias do Distrito Diamantino, p. 236: “…Já se conheciam de fama os costumes devassos e dissolutos de Bernardo José de Lorena e sua comitiva: era gente que não poupava a violência, quando falsas promessas e astúcias não bastavam para a corrupção de donzelas incautas. Quando Lorena veio da capitania de São Paulo, que acabava de governar, em 1795, trouxe duas amásias paulistas com as quais vivia, publicamente, em São Paulo…”
[ 117 ] Joaquim Felício dos Santos, obra citada, p. 172-4, faz acerbas críticas a D. Rodrigo de Meneses. Considera-o vaidoso e, talvez, com a pretensão a ser um general guerreiro de fama.
[ 118 ] Auguste de Saint-Hilaire, obra citada, p. 178.
[ 119 ] Norbertino Bahiense, Os Limites do Espírito Santo na voz da História, p. 16.
[ 120 ] Joaquim Felício dos Santos, obra citada, p. 225.
[ 121 ] José Teixeira de Oliveira, obra citada, p. 249.
[ 122 ] Carlos Xavier, obra citada, p. 142.
[ 123 ] Norbertino Babiense, obra citada, p. 77. A pretexto de estabelecer um posto de fronteira para cobrança de impostos, o que Silva Pontes fez foi descer Minas Gerais pelo Rio Doce abaixo, atingindo o Porto de Sousa, de onde o rio é navegável até à barra, apenas a poucas léguas abaixo.
[ 124 ] Norbertino Bahiense, obra citada, p. 20.

[Reprodução da primeira edição publicada pela Livraria e Editora José Olympio, Rio de Janeiro, em 1959, como parte da Coleção Documentos Brasileiros. Publicado originalmente no site em 2004.]

Ceciliano Abel de Almeida (autor) foi engenheiro da Estrada de Ferro Vitória a Minas, tendo trabalhado nos primórdios de sua construção, sendo também responsável por importantes obras de infraestrutura no Estado. Foi o primeiro prefeito de Vitória, ES, professor de ensino secundário no Ginásio Espírito Santo e primeiro reitor da Universidade do Espírito Santo, quando de sua fundação como instituição estadual.

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