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O desbravamento das selvas do Rio Doce (Memórias) – Rio Doce I

Paisagem na margem do rio Doce, 1910. Acervo Arquivo Público do Espírito Santo.
Paisagem na margem do rio Doce, 1910. Acervo Arquivo Público do Espírito Santo.


Rio Doce

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Estendendo-se por detrás da zona marítima, numa distância variável a partir do litoral, o sertão oferece um aspecto físico bem diferente e bem distinto nas duas principais secções em que o país naturalmente se divide: a região Norte e a região Sul, mais ou menos delimitadas pelo paralelo de 18 de latitude meridional. Em uma e outra região, o aspecto físico, a característica do sertão é um fenômeno em íntima dependência com o relevo e altitude das montanhas, a constituição do solo, e a grande umidade do clima continental. Para o Norte o relevo do país é muito menos acentuado; o solo menos variado na sua constituição geológica, se levanta sem grandes e bruscos desnivelamentos, assumindo as montanhas o aspecto das planícies elevadas, ou chapadas de margens íngremes, que as correntes fluviais, nem sempre perenes, rasgam e atravessam, deixando de permeio as lombadas largas que a erosão secular modelou. Aqui e ali, na planura que se desdobra a perder de vista, levantam-se serros curtos, pontiagudos, espelhando o sol nas encostas nuas, brancas da rocha… O país é, no geral, seco e monótono. A vegetação, por vastíssima zona, é sempre a mesma, raquítica, espinhenta, retorcida, caracteristicamente acentuada nas espécies que constituem o tipo da ‘catinga’, onde em solo pedregoso e quente sobressaem as acácias, os sísifos e os cereus variadíssimos…
Bem diversa é a zona Sul. A mata do litoral vai aí se fazendo mais estreita. As montanhas abeiram-se do oceano, e em mais de um ponto mergulham em suas águas as encostas alcantiladas que avançam em promontório. O relevo do solo é aqui mais variado, e, por isso mesmo, mais belo.[ 2 ]

CAPÍTULO I

O Rio Doce no tempo de Cabral. Lendas. Entradas. Ouro. Comunicações. Estrada geral. Embarcação a vapor. Liberta-se do vento a navegação. Farol. Regência Augusta. Padre Anchieta. Navegação fluvial. A barra do Rio Doce. Flora e fauna. A madrugada. Retiram as pranchas. Rio acima. Suínos. A benzedeira. Lenha. Ilha das Frecheiras. Grupo das Carapuças. Energia do brasileiro. Cabas-tatu. Fechava o corpo.

Em maio de 1501 deixa Lisboa a esquadrilha despachada por D. Manuel… “o mais bem afortunado rei da Cristandade”…[ 3 ] para fazer o reconhecimento da terra de Vera Cruz, apossada para a Coroa Portuguesa, por Pedro Álvares Cabral. Comanda-a André Gonçalves que reconhece a embocadura do Rio Doce a 13 de dezembro do mesmo ano. Calcula sua latitude Américo Vespúcio que acha 19°, 20′.[ 4 ]

Nessa época toda a bacia do Rio Doce é resguardada por mata virgem, prolongamentos daqueles… “arvoredos” que “são muitos e grandes e de infindas maneiras”…[ 5 ] assinaladas na carta de Pero Vaz de Caminha e é, ainda, durante esse primeiro século do descobrimento do Brasil que ela é, em parte, visitada, penetrada, devassada pela expedição Navarro-Espinosa,[ 6 ] organizada por Tomé de Sousa e por outros que, de volta, despertaram ambições e produziram lendas de riquezas inexauríveis.

Essas entradas, essas penetrações na zona dessa bacia também noticiam e propalam a opulência de espessas florestas,[ 7 ] assim nas planícies como nos sopés, nas encostas, nos cumes das montanhas, só havendo exceções quando as rochas se exibem, superficialmente, descascadas, temporizadas. Os devassamentos da região prosseguem nos séculos dezessete e dezoito pelos paulistas que afoitos, audazes e resolutos vingam divisores de águas de outras bacias e surgem na do Rio Doce invadindo o matagal, derribando-o, queimando-o, coivarando-o, preparando, enfim, a terra para receber a semente que produzirá o sustento, o alimento para aquela plêiade de destemidos, de bravos, de aventureiros.

E no limiar do século dezoito que aparece, em profusão, nas cabeceiras do rio, o ouro, e o governo colonial acorda, alvoroça-se e toma medidas drásticas para impedir a fuga das pepitas ambicionadas.

O governo para impedir a sua evasão, proíbe a abertura de trilhos, picadas ou caminhos, e barra a navegação das canoas isolando assim a parte alta da bacia e circunscrevendo os reflexos exaustadores da faina da mineração.[ 8 ]

Da adoção de tais providências resultou o insulamento dos trechos baixo e médio do rio, do do alto,[ 9 ] insulação que se estendeu até ao princípio do século vinte. Em 1900, era, ainda, muito incipiente, muito precário o progresso do baixo Rio Doce e de uma grande parte do médio.

Emprestamos de 1905 a 1930, ao desbravamento do vale do Rio Doce, como engenheiro da Companhia Estrada de Ferro Vitória a Minas todo o esforço no cumprimento de nossos deveres de profissional e de brasileiro. Há neste livro páginas arrimadas em historiadores e publicistas de alto renome, outras por nós testemunhadas e por nós vividas.

* * *

Durante o governo colonial as comunicações do Norte do país com o Sul são feitas por navios de vela, e por terra, pela praia, ouvindo-se o bramido do mar, desviando-se das ondas espumejantes, porque o único empecilho sério que se encontra é a travessia dos rios. É a estrada real, segundo Thomé Couceiro de Abreu, e “comua desde a Bahia até o Rio de Janeiro…”[ 10 ] dependendo, apenas, de moradores com canoas que aceitem o encargo de dar passagem mediante paga. Assim há, por parte dos ouvidores, a preocupação de povoar os rios nas vizinhanças do mar. Nem sempre, porém, permaneciam as famílias aí colocadas. Retiravam-se por causa dos ataques dos indígenas. Nessa situação precária, também a barra do Rio Doce teve os seus moradores pelo menos no meado do século dezoito. Antes, porém, em 1650, já se topa notícia de ser feito o percurso entre a capitania e Salvador, “por mar ou por terra”, muito embora não haja “uma indicação que fosse sobre construção de estrada entre Vitória e a cidade de Salvador durante o período colonial.”[ 11 ] Em 1836 aparece referência ao mau estado da estrada geral que liga Vitória ao Rio e à Bahia o qual “entorpece a marcha dos viajantes e estafetas”.[ 12 ]

No fim do século passado e princípio deste, percorremos a cavalo grande parte do caminho da beira-mar, entre S. Mateus e Regência e, muitas vezes, o de Vitória a Santa Cruz-Linhares-S. Mateus, denominado Estrada da Linha.[ 13 ]

Se a comunicação entre o Norte e Sul do país era penosa, por terra, oferecendo o transpor do Rio Doce a maior dificuldade, no Espírito Santo, também não era facilmente acessível a barra desse rio, fato registrado por diversos memorialistas.[ 14 ] Todavia José Teixeira de Oliveira, baseando-se em depoimento de José Marcelino, afirma que “pela primeira vez, um vapor sulcou o celebrado Rio Doce […] entre 1836 e 41” e recorda, ainda, “que a primeira embarcação a vapor que tocou em Vitória foi o Correio Brasileiro em 1826”. Por aqueles tempos não há, na terra de Maria Ortiz, navegação de longo curso, mas a máquina a vapor aplicada aos navios vai fazendo desaparecer a influência do “fresco vento” que tanto preocupava os capitães ousados e previdentes, e ressaltada pelo poeta:

Mas vendo o capitão que se detinha
Já mais do que devia, e o fresco vento
O convida que parta e tome asinha
Os pilotos da terra e mantimento,
Não se quer mais deter que ainda tinha
Muito para cortar do salso argento.[ 15 ]

Desenvolve-se o país. Crescem suas forças econômicas. Avoluma-se o comércio. Impõe-se a intensidade da circulação das riquezas. Multiplicam-se os barcos a vapor, e a navegação costeira estabelece o intercâmbio entre os portos nacionais. Disseminam-se os faróis e o Ministério da Marinha resolve, também, mandar construir um na barra do Rio Doce, o qual é inaugurado em 1895, no pontal do Norte, sendo doze anos depois “transferido para o pontal do Sul[ 16 ] e está situado na latitude de 19°, 37′, 5″ e na longitude de 39°, 48′, 5″.”[ 17 ]

Em 1905 o primitivo farol é inspecionado e fotografado, pelo Capitão-de-Corveta Veríssimo Costa, a 24 de novembro[ 18 ] que atribui a origem! do nome do Rio Doce ao fato de haverem “alguns navegantes portugueses encontrado no mar água doce defronte deste rio a seis milhas da barra”.[ 19 ] Está a povoação de Regência Augusta[ 20 ] à margem direita do rio, distante de sua foz seiscentos metros, trinta e três da do Rio Preto e três quilômetros do povoado de Cacimbas.[ 21 ] É aqui, segundo a lenda, que o Padre Anchieta, em dia calmoso, caminhando no areal reverberante de calor e de luz, cujas cintilações quase o endoidam, cansado, exausto, sente que vai cair e rezando… rezando conturbado, perde os sentidos e quando os recupera, está à beira da Lagoa das Cacimbas,[ 22 ] sucessão de “pequenos lagos contornados de brancos e graciosos areais”…[ 23 ]

* * *

Em Regência Augusta a largura do rio atinge mais de dois quilômetros.[ 24 ] É, em 1905, a sede da navegação fluvial, cuja flotilha, vistoriada pelo Capitão-de-Corveta Veríssimo Costa, é constituída pelos vapores Muniz, de Viana e Cia., e Milagre e Santa Maria, subvencionados pelo governo do Espírito Santo, da firma Mascarenhas, Costa e Cia.

Transportou-se esse oficial de Marinha, que tão bem descreveu suas viagens pelos rios navegáveis do Espírito Santo, de Vitória a Regência Augusta, a bordo do pequeno vapor União, pertencente a Carlos Pinheiro Azevedo. Também vapores da Companhia de São João da Barra e Campos e da firma J. Zinzen e Cia.[ 25 ] faziam o serviço de cabotagem de Regência a outras praças e vice-versa. E, antes, o relatório apresentado à Assembléia, em 9 de julho de 1888, declara que Miranda Jordão e Cia. “mandaram ultimamente para os serviços de transporte do Rio Doce a esta Capital o Rio São João (a vapor) que tem servido regularmente”.[ 26 ]

Salienta o Capitão-de-Corveta Veríssimo Costa que “fora do cordão tem 8 a 9 braças (a barra) e dentro até os pontais 6 braças”. E acrescenta: “como barra de rio já é bastante funda e com o prático que ela possui, não posso classificá-la de perigosa, quanto mais que, quando se acha ela impraticável, é logo pelo telégrafo avisado para Vitória.”

Regência Augusta “teve uma época de muita prosperidade” segundo informações obtidas pelo Capitão-de-Corveta Veríssimo Costa, que nota o repontar de sua decadência[ 27 ] quando, referindo-se à capelinha, construída por ingentes esforços do Professor Pio Pedrinha, já falecido, e por todos os habitantes da localidade, escreve: “atualmente está ela bem decadente, necessitando de grandes obras e pinturas”.[ 28 ]

Não faz exceção a flora da beira-mar, próxima à foz do Rio Doce, em confronto com a dos outros rios da costa espírito-santense. Lá estão, sucessivamente, as salsas da praia, os guriris, o emaranhado de uma vegetação rasteira, castigada pelos ventos marítimos, depois, as castanheiras, as grumixameiras, as pitangueiras, as almesqueiras, as aroeiras, as ingás-mirins que sombreiam os gravatazais… E essa capoeira rala, que se parece com a caatinga, vai-se modificando para oeste até se apresentar de caules volumosos,[ 29 ] de troncos seculares: são as afamadas, as decantadas matas virgens do Rio Doce. E como este não está sujeito às marés, há completa ausência de mangais.

Nessas praias, nesses matagais de árvores de portes retorcidos, de caules estirados de mistura com espinheiros, cardos e macambiras, nessas florestas de essências preciosas, aí, nesse recinto agreste reina uma fauna opulenta do beija-flor ao juruaçu barulhento, do tico-tico à arara espalhafatosa, do tié ao aracuão assustadiço, da jaçanã ao mutum sussurrante, do saí ao surucuá pacífico, do ananaí ao pato grasnador, do cancã à juriti plangente, da rola ao bem-te-vi rezingão, do sanhaço à garça-branca, da cambaxirra ao sabiá melodioso…

Nele erram o papa-mel, a raposa de astúcia requintada, o ouriço de pêlos agressivos, a jaguatirica de pele apreciada, o catingueiro, tímido e veloz, o jaguaritaca, “estranho e fedorento”,[ 30 ] a paca encafuada, o cágado prudente e velhaco, o tatu cauteloso, o teiú rapinante e valentão, o sagüi-caratinga saltador e mimoso… o caititu, o queixada, a cutia, a capivara, a anta, a onça-vermelha e a pintada.

Nos lugares sombreados, nas beiradas de lagoas, nas galhadas de árvores,[ 31 ] lá demoram serpenteando em busca de presas, ou parados, enrodilhados, de bote preparado, à espera de ratos e preás, o jararacuçu, a ouricana, a surucucu, a caiçaca, a coral… Há dessas serpentes algumas que deslizam no chão e nas árvores como bem registrou Gabriel Soares.[ 32 ] A surucucu-patioba tem esse nome porque, geralmente, é encontrada sobre a folha dessa palmeira.[ 33 ] Também são abundantes as cobras-cipó, caninanas e muitas outras que não são venenosas.

Infestam a bacia do Rio Doce, miríades de rãs, sapos, aranhas, escorpiões, mosquitos e vespas. Borboletas e abelhas nela se desenvolvem, abundantemente, e, também, peixes e moluscos.

* * *

Há em Regência Augusta, na tarde daquele dia, um movimento desusado, uma animação incomum, e tudo porque, pela madrugada do dia subseqüente, há de partir, rio acima, o navio que se acha carregado com mercadorias, que abastecerão os povoados ribeirinhos até ao último porto da navegação fluvial.

A agitação generaliza-se. Impetuoso o vento nordeste encapela as ondas de preamar, na embocadura do rio, que não bastam, porém, para formar pororoca. Açoitados por ele arbustos e árvores obliquam-se, folhas são arrancadas e galhos se atritam, gemem e roçam, fortemente, uns de encontro aos outros. Balouçam as catenárias do fio telegráfico, e as andorinhas, aos milhares, pousam nele e nos telhados das casas e da velha capelinha, soltando grasnidos,[ 34 ] trissos, na chilrada múltipla, confusa, nervosa e rápida. Depois anoitece e, brando, sopra o terral.

Amiúdam os galos. Os primeiros sinais da aurora apontam. O passaredo, talvez, num misto de medo e de alegria, pia, aqui, nos quintais, a corruíra, o canário, o sanhaço empoleirados na goiabeira, na laranjeira, no cajueiro; lá, na capoeira, o inamu, o tururim, a pariri, e, além, na mata, o macuco, a maitaca, o tucano. Galinhas, meio cegas pela escassez de claridade, perseguem às tontas, na grama orvalhada, insetos que não acertaram com o esconderijo e fogem para salvar-se. Outros animais domésticos: patos, gansos, perus, cavalos, asnos, bois, todos se movimentam e emitem, suas vozes. Aparece, agora, uma calota do sol, embora esteja ele, ainda, abaixo do horizonte. É hora da partida. Já o mestre do navio apitou, mais de uma vez, e quando der o terceiro apito manda, sem mais espera, desatracar.

Precipitam-se sobre a embarcação os passageiros. Ouve-se o último apito e a voz de comando: “retirem as pranchas!”

* * *

Franca é a navegação do rio nas primeiras horas de viagem, e exuberantes são as florestas de suas margens. Chega-se, sem incidente, à Povoação, situada à margem esquerda. É nesse lugar que residia no primeiro quartel do século passado, segundo Francisco Alberto Rubim, Antônio José Martins, de cuja casa “segue pela costa do mar a estrada geral desta capitania para a Bahia…” Povoação que, agora, está decadente, foi, entretanto, o primeiro ponto do rio, nas cercanias do mar, em que o indígena travou relações com o europeu estabelecendo paz duradoura, graças ao trabalho de catequese dos missionários; e se dedicou, por fim, ao amanho da gleba.[ 35 ]

Em Povoação a criação de suínos faz-se com facilidade e são eles vendidos em pequenas partidas para os portos de montante, conforme as encomendas feitas. Terminando o embarque de alguns desses animais grunhidores, que ato,:doam e ensurdecem os passageiros, está o navio prestes a partir, quando um rapazola dele se avizinha e grita: “Seu mestre! Por favor, espere um nadinha! A benzedeira já vem. A mulher que ela benzeu estava endoidecendo de dor de cabeça e ela rezou e disse “tenha fé que a dor passa”. “Lá vem a benzedeira, seu mestre.”

Que remédio senão esperar que ela embarque, para retirar as pranchas.

Ela faz muito benefício. Benze e cura. A gente não sabe explicar, mas que a reza dela faz milagre, faz.[ 36 ]

* * *

Deixadas atrás as ilhas que defrontavam com a Povoação abica o “caixa-de-fósforo” à Boa Vista para se prover de lenha. No Rio Doce, e em outros rios brasileiros, como o S. Francisco[ 37 ] e os da bacia amazônica,[ 38 ] o combustível, geralmente usado na fornalha é a madeira.

Feito o carregamento, larga as amarras o barco e não demora fronteia com a Ilha das Frecheiras. Na margem sul do rio ainda se percebe a entrada do canal para o Rio dos Comboios, cuja construção foi iniciada pelo norte-americano Mac-Irven, que não a prosseguiu, por causa dos embaraços que o assaltaram, muito embora contasse com o apoio do governo provincial, que o auxiliou com a quantia de dois contos de réis, em cumprimento da lei número dois de 1860.[ 39 ] No quadriênio (1920-1924) do governo do Coronel Nestor Gomes foi, novamente, tentada a realização dessa obra, sob a direção do Sr. Lastênio Calmon, que não poupou esforços para conseguir o êxito desejado.

Na Ilha das Frecheiras o aspecto da mata virgem destaca-se pela sua grandiosidade. Aí ela forma “uma densa muralha ao longo do rio”, na expressão feliz de Charles Hartt, e, além dessa muralha, desse véu espesso, que, só “armado de forte facão de mato”, se pode nela penetrar, estão os gigantes dessa floresta tropical — jequitibás, vinháticos, sapucaias, ipês, cedros, canelas…

Antes de se transpor a Ilha das Frecheiras, uma das maiores do rio, já se divisa, ao longe, um grupo de ilhotas retratando fortalezas, como sentinelas avançadas, que tentassem impedir a passagem de embarcações. Em se aproximando, porém, algumas delas parecem transformar-se em “igrejas com. as suas cúpulas e outras imitam carapuças”.[ 40 ] Por isto são assim nomeadas. Nas enchentes ficam as Carapuças imersas.

Além desses ilhéus, situa-se a Ilha do Jacarandá, espaçosa e de vegetação magnificente, seguindo-se-lhe o grupo das três ilhas em que se sobressai, por ser mais extensa, a de Coimbra.

Defrontando com esta, fica uma terra elevada, que não é submersa pelas cheias do rio, denominada Ilha de Domingos Sousa,[ 41 ] por ser esse agricultor o primeiro que a desmaninhou.

* * *

Atinge-se o princípio de um labirinto intricado que forma o canal através do qual a navegação se faz penosamente. As margens do rio continuam, sem! interrupção, cobertas de matas virgens inigualáveis.[ 42 ] Nesse solo prodigioso, mais tarde surgirão as lavouras de cacau. Multiplicar-se-ão as fazendas, e o Espírito Santo passará a ser produtor e exportador da apreciada amêndoa. A fertilidade do Vale do Rio Doce, proclamada desde os tempos coloniais, tornar-se-á confirmada, e mais um produto agrícola encontrará nesse vale o seu ambiente natural.

O devassamento das florestas, o viço dos cacaueiros, as fazendas, as escolas, as estradas, o saneamento, a civilização enfim, atestarão a inteligência, a pujança do brasileiro, “do homo dinamicus, no conceito ratzeliano”, e provocarão admiração e registros elogiosos, assim de brasileiros[ 43 ] como de estrangeiros.[ 44 ]

* * *

Vingada a passagem do barco, nesse trecho de águas rasas, abica-se ao barranco da margem esquerda, no sítio de Gorgonha, para abastecer a lenha. Enquanto se enfileiram os tripulantes para embarcá-la passando as achas, os tocos, de mão em mão, para empilhá-los no vapor. Um dos passageiros, na esperança de encontrar alguns frutos, afasta-se em direção a uma cajazeira em cujo tronco há um semi-elipsóide pardo parecendo-se com o corpo de um tatu, espécie de cortiço, onde vivem associadas as cabastatu. Pressentem-no os vespídeos e atacam-no. Pira-se o incauto e a bordo apresenta-se ofegante, de rosto, lábios e mãos intumescidos, crivados de roséolas, sentindo dores lancinantes.

Vendo-o naquele estado lastimável, de orelhas esbraseantes, de olhos injetados, de chapéu à cabeça em que ainda está embaraçada uma vespa, alguém sugere chamem a benzedeira para rezar e as dores cessarão.

— Não rezo contra veneno de cobra nem de marimbondos. Há tempos esteve em Regência vindo dos sertões de Conceição da Barra ou de São Mateus um homem rezador, que fechava o corpo. Era um cearense de nome Raimundo Mergulhão. Sabia toda espécie de reza. Pedi-lhe que me ensinasse e ele, parece, não gostou de meu pedido, e disse enfadado: “Mulher não pode aprender benzimentos contra picadas dos bichos, pois que o doente piora quando ela se achega dele.” Ponham nas mordidas um dente de alho socado e se quiserem mezinhas de farmácia o óleo elétrico é muito bom, e o pronto alívio é um santo remédio.

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NOTAS

[ 2 ] Teodoro Sampaio, in Rocha Pombo, História do Brasil, Vol. VI. p. 11.
[ 3 ] João de Barros, Ásia, apud José Teixeira de Oliveira, História do Estado do Espírito Santo, p. 9.
[ 4 ] Ceciliano de Almeida, Revista do IHGES, n. 7, março de 1934, p. 64.
[ 5 ] Rocha Pombo, Trasladação da carta de Pero Vaz de Caminha, Vol. 1, p. 171.
[ 6 ] Salm de Miranda, Rio Doce (Impressões de uma época), p. 25.
[ 7 ] Capistrano de Abreu, Capítulos da história colonial, p. 17.
[ 8 ] Esclarece Salm de Miranda.
[ 9 ] Adotamos a divisão indicada por Salm de Miranda, Rio Doce (Impressões de uma época), p. 18.
[ 10 ] Bernardes Sobrinho, Espírito Santo-Bahia, p. 64.
[ 11 ] José Teixeira de Oliveira, História do Estado do Espírito Santo, p. 152.
[ 12 ] Idem, ibidem, p. 324.
[ 13 ] Xenócrates Calmon, “O centenário do município de Colatina”, in Revista do IHGES, n. 7, p. 192.
[ 14 ] Saint-Hilaire e muitos outros.
[ 15 ] Camões, Lusíadas, Canto VI, 3.
[ 16 ] Norbertino Bahiense, O caboclo Bernardo, p. 531.
[ 17 ] Dados fornecidos pela Capitania de Portos do Espírito Santo em 22/01/1952.
[ 18 ] Viagens pelos rios navegáveis do Estado do Espírito Santo — Viagem ao Rio Doce, Revista do IHGES, n. 7, p. 213.
[ 19 ] Veríssimo Costa, obra citada, Revista do IHGES, n.7, p. 214.
[ 20 ] Nome adotado “para perpetuar o do Príncipe Regente, depois D. João VI”, Veríssimo Costa, obra cit., Revista do IHGES, n. 7, p. 212.
[ 21 ] Veríssimo Costa, obra cit., Revista do IHGES, n. 7, p. 212.
[ 22 ] Beresford Moreira, O Rio Doce, obra inédita, p. 111.
[ 23 ] Veríssimo Costa, obra cit., Revista do IHGES, n. 7, p. 213.
[ 24 ] Idem, ibidem, p. 212.
[ 25 ]  Idem, ibidem, n. 7, p. 212.
[ 26 ] José Teixeira de Oliveira, História do Estado do Espírito Santo, p. 359.
[ 27 ] Talvez esteja o leitor notando as múltiplas citações à obra do Capitão-de-Corveta Veríssimo Costa, fato que assim se explica: Chegamos ao Rio Doce, como engenheiro da Companhia Estrada de Ferro Vitória a Minas em agosto de 1905, e em novembro do mesmo ano, o Capitão-de-Corveta Veríssimo visitou o Rio Doce, viajando a bordo do Milagre, o que só fizemos em 1916, havendo a maioria de nossas observações coincidido com as do distinto oficial da Marinha.
[ 28 ] D. José Casais, Um turista en el Brasil, 1940 [p. 217], “Regencia es una aldeita insignificante, e […] navio naufragado.”
[ 29 ] Auguste de Saint-Hilaire, Segunda viagem ao interior do Brasil (Espírito Santo), tradução de Carlos Madeira, p. 183.
[ 30 ] Na mata, Coelho Neto: “…Sagüis silvavam, trilavam passarinhos: essas vozes, porém, tornavam mais misterioso o silêncio — eram como vaga-lumes, na sombra, vaga-lumes que cintilam, sem, todavia, iluminar…” [Crestomatia, Taborda, p. 140].
[ 31 ] O ninho e a cobra, Alberto de Oliveira: A ave vê enroscado o repelente corpo no ninho e então:
“Grita, inutilmente grita:
voa, inutilmente aflita:
Entrou a cobra em teu ninho,
Passarinho.”
[ 32 ] Citação de Rocha Pombo, História do Brasil, Vol. 1, p. 547.
[ 33 ] É de Wappoeus a seguinte observação: “Grande número de cobras (ofídios), de lagartos (sáurios) e de rãs (ranídeos) vivem nas árvores.”
[ 34 ] Radagásio Taborda, Crestomatia, nota 9, p. 145. Rui Barbosa, As andorinhas de Campinas.
[ 35 ] “Os primitivos habitantes destas povoações eram selvagens, que depois foram se domesticando e se entrelaçando com diversos europeus por aí trazidos pelos missionários encarregados da catequese, e hoje os seus descendentes são lavradores” [Veríssimo Costa, Revista IHGES, n.7, p. 220.
[ 36 ] Beresford Moreira, O Rio Doce, obra inédita, p. 32: Reza para dores de cabeça:
Jesus, espinho de rosa
Coração de Serafim
Ajuntai esses miolos
Que andam fora de mim.
[ 37 ] D. José Casais, obra cit., p. 113: “Llegamos al primer embarcadero ‘puerto de lelia’. Durante la travesia encontraremos muchos. La caldera del vapor consume gran cantidad de este combustible.”
[ 38 ] Angyone Costa, Indiologia, p. 260: “…De súbito o navio pára a tomar lenha, demora horas, meio dia, às vezes mais…”
[ 39 ] Veríssimo Costa, obra citada, p. 221.
[ 40 ] Idem, ibidem, p. 221.
[ 41 ] Idem, ibidem, p. 222.
[ 42 ] Saint-Hilaire, obra citada, p. 189, registrou: “o rio corria majestosamente entre as sombrias florestas que o margeiam.”
[ 43 ] Beresford Moreira, obra citada, pp. 122-5.
[ 44 ] Dr. José Casais, obra citada, pp. 219-21.

[Reprodução da primeira edição publicada pela Livraria e Editora José Olympio, Rio de Janeiro, em 1959, como parte da Coleção Documentos Brasileiros. Publicado originalmente no site em 2004.]

Ceciliano Abel de Almeida (autor) foi engenheiro da Estrada de Ferro Vitória a Minas, tendo trabalhado nos primórdios de sua construção, sendo também responsável por importantes obras de infraestrutura no Estado. Foi o primeiro prefeito de Vitória, ES, professor de ensino secundário no Ginásio Espírito Santo e primeiro reitor da Universidade do Espírito Santo, quando de sua fundação como instituição estadual.

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