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O desbravamento das selvas do Rio Doce (Memórias) – Rio Doce III

Rio Doce

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CAPÍTULO III

Confronto das florestas. Rio Juparanã-Mirim. Encalhou: o barqueiro. Satisfação a bordo. O homem da carabina. “Olhe a carniça”. “Na cabeça não entra bala”. Terra Alta. Colônias de caçaremas. Quadro bucólico. Respeitável poeta. Exuberância da floresta. Garças estudam? Gastão Cruls e as perspectivas do Rio Doce. Guaribas. A. Wallace e Humboldt. O orgulho do barbado e a arrogância do caracu. Um “mimo” das matas. É “desinfeliz” na caçada. O condenado da ninhada. Um “revés”. A terra adormece. O grito do quero-quero.

Salientou-se que a flora do Rio Doce se modificava engrossando os caules à medida que se afastava do mar para oeste. Nota-se, a partir do Rio São Francisco para o sul, que a mata rivaliza com a do Amazonas e até a excede sob certos aspectos.[ 72 ]

No Rio Doce, cuja bacia em sua parte ocidental chega a abranger uma região proximamente limitada pelos paralelos 18° e 21°, suas florestas se patenteiam com opulência singular .Troncos eretos de espécies várias servem de suportes a epífitos de flores belíssimas.

Não só as do litoral como todas as matas do Brasil são de “uma riqueza fenomenal”. São “comparáveis em vigor e beleza às do Amazonas”.

Sente-se na Hiléia Amazônica, o cansaço, a insipidez, a monofonia, quando se observa a uniformidade irritante das selvas equatoriais, em planícies ilimitadas em que, segundo Angyone Costa, a paisagem é aquela mesma descrita por tantas penas. Águas escuras, rolantes, massa pesada, amedrontadora, limitada por uma terra coberta de mata, de cor igualmente escura aparada, como se imensa tesoura houvesse podado com um só golpe a floresta. Não há festa de cores, não há policromias, nem efeito de luz criando quadros de beleza. Tudo triste, despertando no homem um vago sentimento de temor diante das forças estranhas da natureza.[ 73 ]

Entretanto, no Rio Doce as matas tumultuárias, desordenadas, na diversidade de seus gêneros, de suas famílias, em que se encontram troncos gigantescos, de portes variados, de copas floridas, erguidos em solo prodigioso de topografia movimentada, revelam contrastes inesperados que agradam, enlevam e dominam.

É o que assunta o excursionista quando, embarcado, parte de Linhares, e segue o álveo do rio, ao arrepio das águas. Então a cada instante, a cada momento, surgem cenários admiráveis: aqui, em pequeno cotovelo da margem do rio, descobre ele o caule esbranquiçado de um jenipapeiro e, bem ao lado, altaneiro, o fuste elegante de um jequitibá e, junto ao barranco, uma, imbaubeira retorcida, em busca de luz, já com raízes descobertas, sem apoio. Breve, mais um bloco de terra se desprenderá e, depois, mais outro. E a cecrópia, a umbaúba, cairá, levando a colônia numerosa das astecas guerreiras e vitoriosas, e deslocar-se-á, rio abaixo, ou se afundará, quando o tronco oco, dividido em diafragmas transversais, estiver invadido pelas águas.

Adiante, oculta por uma cortina verde formada de capins-açus, urtigas, cipós, canas-bravas, está a ribanceira, seguindo-se-lhe a várzea, o altiplano, em que os arbustos e as grandes árvores linheiras são os arrimos dos gravatás, das barbas-de-velho, das três-marias…

Desviando-se de ilhas pitorescas que mais parecem sedes de encantamentos, pelas belezas que ostentam, do que recentes formações geológicas, revestidas de vegetação deslumbrante, navega a embarcação graças à perícia do mestre que, a cada passo, revela a sua prática em perlustrar aqueles meandros. E, além de atrafegar-se ele com as obrigações de bordo, ainda lhe compete providenciar o abastecimento de combustível para a fornalha. Atraca. A lenha está empilhada no sopé de um araxá em tudo semelhante ao terciário do barranco de Linhares, na vizinhança da foz do Rio Juparanã-Mirim, que deságua no Rio Doce em forma de paralelepípedo retângulo sendo o metro cúbico ou o estere a unidade adotada. Ela é transportada para o convés e arrumada.

Continua o navio a derrota evitando as praias, contornando os baixios. Respeitam-nos os barqueiros. Mas de repente aparece a dificuldade: é o banco de areia. Procura-se evitá-lo e retrocede-se em busca de “águas fundas”.

Desculpa-se, justifica-se o mestre, o homem prático, daquela navegação de súbito estorvada. Adverte-lhe, todavia, ressaltando-lhe a imprevidência, sem azedume e quase paternal, o contramestre, compadre e amigo: “Vancê não arreparou prá riba nas água crespa. Quis avisá mas vancê é o mestre…”

Recua o gaiola e cerca de um quarto de quilômetro toma nova direção e, assim, vai ziguezagueando.

Discutem os passageiros o recuo da embarcação. Uns conhecem as águas do rio desde crianças, não podem admitir a imperícia do mestre e arriscam: é possível que esteja doente ou talvez…. ainda tão cedo, já terá bebido!? Outros exculpam-no com os sequeiros, que, nessa quadra, torturam a navegação e com a luz, pela manhã, que não a favorece.

As opiniões sucedem os receios de ficar o navio retido, durante horas, no travessão. É ali o canal pouco profundo. E ficar no meio do rio, no “caixa-de-fósforo” o resto do dia e, possivelmente, toda a noite é uma hipótese aflitiva. Inteiram-se as senhoras dessas apreensões e impacientes, agitadas, vão falar ao mestre, ouvir-lhe esclarecimentos, que lhes são dados desfazendo-lhes os desassossegos:

Quá donas que o rio tá munto seco, tá, que a sequidão é grande, é; mais nóis passa. Os marinheiros são bom; nóis truvemos pá e enxada. Eles trabaiam bem, e nóis passa, cum Deus.[ 74 ]

De fato com uma rota sinuosa atinge-se o Travessão. A curiosidade é grande, a preocupação ainda maior. Navega o barco no canal caprichoso e raso, tangenciando bancos, evitando baixios, afastando-se de coroas e, apesar de todas as precauções, sente-se um estremeção. Em seguida ouvem-se muitas vozes: “encalhou!”

Não há tempo para rebuliço. Na água, de pronto estão aqueles homens acaboclados que antes, descuidosamente, cochilavam. Um, por certo, interpretando o sentir dos outros, dirige-se ao mestre e diz-lhe: não se esqueça de lhes dar a branquinha e atira-se ao trabalho, mergulhado até aos joelhos.

A faina generaliza-se a bordo e dentro do rio. Escora-se o barco do convés com varas de pindaíba, reforçadas, apoiadas em fundo resistente, além das camadas movediças de areia. Pás e enxadas empunhadas por mãos calejadas removem o lodo que a corrente arrasta. Impulsiona o motor as palhetas da roda, e o gaiola lentamente vai deslizando e pára adiante. Novos esforços redobrados empregam os batalhadores e outros avanços são conseguidos. Embora não se queira, tem que se parodiar o famoso autor de Os sertões — o caboclo, o barqueiro do Rio Doce é, antes de tudo, um forte.[ 75 ] Esse trabalho de escavar, de arredar detritos estratificados no fundo da água é rude, é árduo, é estafante. Triunfa-se depois de muito batalhar e alcança-se o fim do sequeiro. E, então, avança, livre, em canal franco, o navio que, pouco a pouco, toma a direção paralela à margem esquerda do rio. Que alívio! Espera-se pernoitar em Colatina. Serve-se o almoço. São onze horas. Quatro de viagem a partir de Linhares.

* * *

É completa a satisfação a bordo. Cardápio variado e guisados suculentos. Conversa-se animadamente quando alguém anuncia, atinge-se, agora, o rabo da Ilha das Palmas.[ 76 ] E logo após, um viajante aflito, indaga: — “Minha carabina, onde terei deixado minha carabina? Vou atirar aos jacarés.”

Abre nas águas a proa da embarcação vasto bigode, o eixo da roda com movimento acelerado impele as palhetas, que produzem no líquido ruído característico. Não mede mais de oitenta metros a distância da ribanceira do rio à ilha. Aquém e além desse intervalo, arvoredos altos, aprumados, gigantescos, vitoriosos em seu heliotropismo, formam, com as lianas, cipós e arbustos, um emaranhamento indevassável, intransponível. Nessa floresta exuberante desenvolvida em solo aluvial, coberto por espessa camada de humo, há um admirável contraste entre o verde de tonalidades múltiplas e as flores das cássias, das trepadeiras, das orquídeas, das bromeliáceas ou das folhas de belíssimos matizes como as das sapucaieiras ou das primaveras.

De repente muda o barco de direção, corta de esguelha a correnteza. Desvia-se da árvore submersa, atravessada de esconso, que constitui perigo para a navegação. Elogia-se a destreza do mestre. E retoma o navio o rumo, costeando o barranco da ilha.

Espanta-se a ariramba[ 77 ] pousada no ramo do arbusto, e com vôo ligeiro, rio acima, desaparece. Ouve-se a gralhada de araras de plumagem vermelha dominante, de mistura com a verde e amarela, de tucanos de papos de ouro, de araçaris, rajados de branco e de esverdeado escuro, de papagaios em que bem se destacam! as cores primitivas.[ 78 ] Há fruteiras na ilha. Isso explica à aglomeração de tantos pássaros.

Está vigilante o homem da carabina. Observa, nervosamente, as araras, os papagaios, os tucanos, os araçaris, leva a arma ao ombro, mas não encontra alvo. Os bandos dispersam-se, retiram-se. Resta-lhe, ainda, a esperança de atirar aos jacarés e narra:

Quis o patrão que fizesse eu a praça de São Mateus. Numa lancha lá cheguei. Poucos negócios fiz. Temendo a viagem por mar resolvi voltar por Linhares e ir a Colatina e, daí, alugando, novamente, animais, transportar-me a Vitória, passando por São João de Petrópolis, e fazendo as praças, de Santa Teresa, e de Santa Leopoldina. Amigos de São Mateus aconselharam-me — ‘vá em companhia do estafeta e teve boa arma de fogo. O caminho é ruim, um trilho por debaixo da linha telegráfica que passa através de matas virgens. Há animais ferozes’.

De fato em certa altura daquele ermo o estafeta gritou: “uma onça-pintada! Olhe a carniça!” Apenas de relance pude vê-la. Um veado mateiro, já quase devorado, era a presDSRD Apeei ontem, à tarde, em Linhares, depois de haver passado por não pequenos sustos.

E, hoje, ao partir, um marinheiro avisou-me: “moço, prepare a carabina para matar jacaré na Ilha das Palmas, e até agora…” Nesse momento, de mansinho, aproxima-se do narrador o embarcadiço e cicia: “Venha comigo, na proa já si inxerga u bichu nu barrero, atire nu meio dele na cabeça não entra bala.” Para a proa parte, à pressa, o improvisado caçador e, na mesma direção, algazarrando correm outros passageiros: “moço é aquele bichu escuro cumpridu, ele tá quentandu sol, na cabeça da ia, ele tá dromindu. Vancê atire depressa ante que ele sacordi e vá simbóra.” Rápido, o cometa engatilha a arma, mas não há o disparo. Esquecera-se de colocar o pente. Gargalhadas espalhafatosas. A algazarra culmina. Tresvariam. Descarregam revólveres. E o caimão escamuge-se.

* * *

Avizinha-se o barco da Terra Alta. Da popa enxergam-se, ainda, as cabeças das Ilhas das Palmas, do Travessão, e de outras. As formações ou associações hidrófilas perdem, pouco a pouco, suas principais características e as matas da Terra Alta são “firmes”.[ 79 ] Não se alagam, periodicamente, como as das ilhas ou das cercanias das margens do rio, a jusante, assemelhando-se, assim, aos igapós do Norte. Filiam-se ao sistema de “províncias florísticas”,[ 80 ] zona das matas costeiras — opulentas em troncos seculares, lianas, orquídeas, bromélias, pteridófitos, palmeiras, musgos e himenofiláceas.

* * *

Desenvolve o “caixa-de-fósforo” boa marcha, embora ainda esteja a navegação sujeita a mudanças sucessivas do canal. Renovam-se as paisagens de beleza indescritível. Aqui, bem próximo do barranco, se ostenta um bonito guarabu, ao lado, uma farinha-seca de altura respeitável; distante, dentro da mata, mal revela a ramagem um vinhático de porte elegantíssimo e, a montante, arredada, destaca-se uma ingazeira em flor. E adiante, ainda outra igualmente florida carregada de ninhos de japira. O navio afastando-se do barranco do rio vai rentear um banco de areia. É que o mestre abarruntou, nas forquilhas do ingá, colônias de caçaremas, formigas que vivem segundo afirmam, em simbiose com as vespas ou marimbondos-tapiucabas, cujas picadas causam dores lancinantes e inchação imediata.

Vai-se atracar em um porto de lenha. Dirige-se o barco para ele. Há um desflorestado, uma clareira na mata secular. Canta um galo garboso, atrevido e armado de longos esporões. Rodeiam-no galinhas de cristas coradas. Uma, porém, foge espavorida, resguardando a ninhada de supostos perigos e desaparece no enredado de plantas rasteiras.

Num plano que não é, por certo, atingido pelas águas assoberbadas de enchentes periódicas há um mocambo, uma choupana de paredes de taipa. Apoiada no portal tosco, uma cabrocha, muito moça, amamenta uma criança, enquanto o marido se esfalfa empilhando lenha na embarcação.

Surde no tombadilho uma jovem alourada e bela, de olhos esmeraldinos, empolga-se pelo quadro bucólico, de realidade singular. Esguarda-o.

Vagueia o pensamento, cisma e observa: não é a casinha branca da serra, mas a casinha barrenta do rio. Como são felizes! E aquele galo triunfante, e aquelas galinhas cacarejantes, e o cachorro malhado que rosna de pêlo eriçado! Mas quanta poesia! E quanta ventura que faria inveja a muita gente da cidade!…

* * *

— Olá! Peixe, caça! da lagoa da Terra Alta. — Assim oferecem dois mestiços ladinos, robustos e decididos, popeiro e proeiro de uma canoinha que acostam ao navio — traíras, pacas, capivara e um mutum. Entabulam negócio a tripulação e alguns passageiros.

* * *

Prossegue a viagem. Estamos agora costeando o núcleo de Moniz Freire,[ 81 ] distante 27 km de Linhares. Já não há ali vestígios do barracão que abrigou colonos italianos. Toda a área em que foi derribada a mata virgem se transformou em capoeira. Retiraram-se os imigrantes e isso acarretou ao presidente do Estado preocupações, aborrecimentos.[ 82 ]

Aceirando a capoeira demoram as grandes árvores que sobrepujam o mato de caboroca. Naquela, piam os inambus, e ouvem-se, neste, os jaós que gemem de contínuo. Lembra esse concerto enternecedor a linda poesia de saudoso e respeitável poeta em que o jaó clama incessante: “vem cá perdiz!” e esta responde: “não! nunca mais!”[ 83 ]

Focalizam-se no barranco do rio os arrulhos das juritis que ameigam, quiçá, os borrachos gulosos, insaciáveis.

No ar trissam as andorinhas em volteios velozes, caprichosos. E, em terra, cricrilam grilos vagabundos, saltitantes, ou aglomerados, em ramos, como se fossem soldados em formatura.

Acerca-se o gaiola do sangradouro da Lagoa do Limão. Depara-se ao observador nos arredores desse riacho de curso intermitente, floresta opulenta, altaneira, frondosa e de viço espantoso que lhe é infiltrado por solo fertilíssimo, de umidade sobejante, e por temperatura adequada que lhe estimula crescimento assombroso, gigantesco.

Foi, por certo, diante de quadros como esse, que C. F. Hartt proclamou jamais ter visto, nem mesmo no Pará, floresta mais exuberante do que a do Rio Doce.[ 84 ]

Distingue-se na ribanceira um manacá em flor, cujo perfume, à noite, excede o das cássias que o rodeiam e o das orquídeas acavaladas nas dicotomias daqueles troncos verticais.

Extenuados os passageiros dormiam, enquanto não lhes servem o café. Assusta-se um socó-boi, esvoaça e lá se vai, rio acima, emitindo sua voz berrante.

Vislumbra-se, à direita, numa praia de forma curva, um bando de garças-brancas. Algumas mariscam na água rasa e andam ou passeiam garbosas, elegantes. Outras mantêm-se imóveis, repousam ou, talvez, estudem como os quartaus nordestinos no linguajar do matuto.

Está perto a foz do Rio Pau Gigante. Ouvindo o ruído do motor da embarcação mutuns alvoroçados esgarabulham através da ramagem dando a seu modo, pios roufenhos, abafados, e amoitam-se. Atento o caçador panema de jacarés aparece empunhando a carabina reluzente, mas não lhe foi, ainda, possível estreá-la. Os vultosos galináceos já se haviam embrenhado.

* * *

Transposto o Rio Pau Gigante ficam, atrás, as lagoas vizinhas das margens do Rio Doce e, à esquerda, situa-se o Morro do Feijoal, de constituição arqueana. Morre ele no rio, começando a vegetação xerófila, que o reveste, pouco acima da marca da máxima enchente, e à medida que se vence o clivo rochoso e enrugado do elipsóide, beijado pelas águas em borbotões, encontram-se tipos vegetais que bem caracterizam as famílias das bromeliáceas, cactáceas e outras. Aqui são caules reduzidos dos caraguatás conchegados, protegendo-se, de folhas lanceoladas com acúleos recurvos nos bordos, adiante moitas de xiquexiques, de pêlos eriçados, hirsutos, além, e por toda parte, arbustos tortuosos de galhaça enfezada entrelaçada por sarmentos espinhentos de folhas urticáceas.

Transforma-se a topografia da região percorrida pelo rio e este apresenta, de quando em quando, estirões francamente navegáveis. Vão-se rareando as ilhas, embora ele continue largo, e apareçam ainda bonitas coroas freqüentadas por aves aquáticas e crivadas de rastros de capivaras, de veados, de onças…

Perdem as ilhas sua portentosa vegetação, que arranca de Gastão Cruls, na A Amazônia que eu vi, descrevendo um trecho do Cuminá os períodos abaixo:

O rio, logo à saída dos Porcos, é bastante largo e alegram-no ilhas de vegetação possante. Lembro-me de um trecho do Rio Doce que percorri em 1925, e cujas belas perspectivas jamais se apagaram de meus olhos.
Como a manhã está muito clara, as massas de vegetação destacam-se em vários planos e há um quê de cenário teatral nesses amplos panos de verdura e bambolinas muito verdes recortadas sobre o azul do céu.

* * *

Adentrando-se no Morro do Feijoal para leste, para o norte ou para oeste — sucedem-se, coroadas por matagal vigoroso, colinas, por entre as quais há grotas que terminam em córregos humildes.

Suas águas murmurejam ruídos que se casam com o leve ciciar das folhas de palmeiras movidas por aragem que se escapa devagarinho, mansamente.

Aí nessas ravinas, nesses vales apertados, nessas rugas da terra, a condensação cresce, a umidade revela-se intensa e a floresta alteia-se ensoberbecida. Viçam as perobas, as sapucaias, os jequitibás, os vinháticos, os guarabus, as copaíbas, os cedros, os ipês, os jacarandás, as braúnas, as canelas, as maçarandubas, as imbaúbas… Saracoteiam pelas galhaças dessas árvores, micos, sagüis, e guaribas, além de caxinguelês e quatis. De viveza extraordinária, de movimentos rapidíssimos, trepando, correndo, dando saltos admiráveis, os primeiros guincham, assoviam, associam-se nos pulos, vencendo distâncias entre as ramagens dos arvoredos. Mais pesados, fazem os guaribas suas piruetas com menos precipitação, tornando-se notáveis, mormente, pelos seus roncos em que há requebros de voz. Andam em bandos e reúnem-se no momento da orquestração interessante e triunfal. A. Wallace, contrapondo-se à opinião de Humboldt, que explica ser o barulho causado por eles devido à reunião de muitos, afirma:

O ronco que é certamente profundo, volumoso e esquisitamente modulado, é produzido por um só indivíduo; pois, prestando-se muita atenção à rapidez com que pára e começa outra vez, evidencia-se que o ronco é produzido por um só animal que é quase sempre um macho idoso.[ 85 ]

* * *

Nas matas do Rio Doce o bugio, o guariba, ou o barbado estadeia o seu ronco com orgulho, com ritmo inigualável, com o mesmo e soberano desembaraço que o touro curraleiro, caracu, ou pé-duro solta o seu berro com garbo e com arrogância desmedida, no Pico da Bandeira, como testemunhamos em 1911. Um blasona da copa da árvore mais alta do Brasil, o outro brame do cume da serra mais elevada.

O caxinguelê é um mimo das matas. É um roedor da família dos ciurídeos, também chamado caxixe, caiteté, cutia-de-pau, papacoco ou quati-coco. No meio das florestas passa ele das arvoretas para os cipós, e sobe por estes ou pelos caules volumosos até às grimpas.

O quati é um procionídeo. Domestica-se, facilmente, tornando-se buliçoso e até daninho, se ficar solto. É carnívoro e, por isso, não há dificuldade em alimentá-lo.

O caçador inexperiente quando depara com um bando de quatis experimenta, geralmente, surpresas e desapontamentos. Na galhada, nas forquilhas das árvores gigantescas, aí se escondem. Alvejado um, ao disparo da arma caem todos e, após a queda brusca, safam-se. A fuga é desabalada. O imprevisto desaponta. O caçador é chasqueado pelos veteranos. É “desinfeliz” na caçada.[ 86 ] Nessas famosas selvas habitam: queixadas, caititus, veados, cutias, pacas, capivaras, tatus, felinos, tapires, tamanduás, preguiças… macucos, zabelês, capoeiras, jacus, tucanos, pica-paus, papagaios, araras, periquitos, lagartos, cameleões, jabutis… cobras várias, destacando-se entre as venenosas, a jararaca, o jararacuçu, o surucucu pico-de-jaca…

* * *

denominado Boa Vista.[ 87 ] Por detrás, pouco além da choupana, jaz, aflorada, a rocha gnáissica em forma de laje, atestando o trabalho dos processos naturais dependentes do tempo para produzir o desgaste na superfície.

A bela senhorinha da comparação da casinha branca da serra com a barrenta do rio está fatigada. Olha sem observar o novo quadro quiçá mais realístico. Além do galo vitorioso, das galinhas amorosas, do cão mosqueado, há a porca deitada grunhindo feliz, dando de mamar aos bacorinhos, que gulosos se fartam, pouco a pouco. Só um não acerta com uma teta túrgida que o farte. Para este a luta pela vida é desesperante. Ele é o fraco, o perrengue, o doente, o languento, o condenado enfim.

O navio demora em retomar à rota. O empilhamento da lenha a bordo está custando. A tripulação esbofa-se nesse trabalho, mas a pilha, em terra, está retirada. Ilumina o sol os cabeços ou os torreões das nuvens no poente e dele se vai aproximando. O mestre inquieta-se, gunguna de zanga e, finalmente, desabafa contra o empreiteiro, o tirador de lenha:

— Deixa a famía, muié e fios, aqui nesta bera do riu i vai pra lagoa du Pau Gigante pescá, caçá… Lá apanha tremedera e tá agora na tarimba istiradu gemendu, quenti cumo boca di chalera… i a viagi qui satrasi pru fartá ele na fila da axas… Aqueli, demonhu daquele marinheru, o Antônhu, tõbem tá duenti ou fíngi…

No fim do inverno o Rio Doce é salubre, ficando as vizinhanças de suas margens cobertas de matas espessas, escuras. Nas lagoas, cercadas pelo matagal, de beiradas pantanosas, porém, os anófeles não desaparecem de todo, e nos ranchos de pescadores lá estão eles sequiosos nas palhas da coberta. Anseiam pela chegada fortuita do incauto, para dar-lhe as boas-vindas ferretoando-o e deixando-lhe incubada a infecção palustre.

* * *

Fartamente abastecido de combustível, continua o barco o seu roteiro. Alcança o Rio Baunilha e em seguida a fazenda de Santo Antônio. A essa hora o sobrado, sede da fazenda, projeta uma sombra alongada. Os raios solares nele incidem obliquamente. Começa a avermelhar-se o ocidente.

No campo de grama baixa, muito tosquiada pelos animais, em bandos, rolinhas ciscam. Revolvem excreções à cata de resíduos não digeridos que as alimentam. Na orla da capoeira fina, existente na ribanceira do rio, anus-brancos, ariscos, assustados, fogem gritando, lamentam-se soltando ais, enquanto os pretos encarapitados nas vacas de úberes cheios as acariciam. Quieto, encolhido no topo de uma braúna seca, um gavião-pega-pinto espreita o esgaravatar de uma galinha com a ninhada, e aguarda o retarde ou a perdida de um pintinho descuidado para acertar o bote.

É pequena a detença do navio em Santo Antônio e ele prossegue desviando a direção para evitar um “revés”.[ 88 ] Livre desse escolho, cai no canal em que a navegação é desembaraçada até abicar em Porto Alegre, fazenda próspera do Sr. Virgínio Fernandes. Olhando, rio acima, depara-se o sol, grande esfera rubra, que então, fracamente cintila. Já se aproxima do ocaso mergulhado num longo esbatido em que o vermelho se vem desmaiando, quase, até ao zênite. A viração encrespa, ligeiro, às águas, e reflete nelas um quadro amplo e magnífico. Parece o rio com uma colossal sucuri que expele do seu dorso ondulações coloridas em cambiantes de rubi, estacando em faixas escurentadas pelo crepúsculo iminente, nas proximidades dos barrancos.

* * *

Saltou a maioria dos passageiros para visitar o estabelecimento comercial do Sr. Virgínio.

Depois da descarga e do carregamento feitos à pressa, está pronto o navio para partir. O mestre apita. O lusco-fusco está chegando. Fretine uma cigarra pousada no limoeiro da ribanceira perto da proa da embarcação. Cantam os galos despedindo-se do dia. Correm os carneiros balando e refugiam-se no telheiro. Berram as vacas porque se separam das crias e, até o jumento orneja, espetacularmente. Ladra a canzoada aos viajantes que embarcam e, do outro lado, na margem esquerda do rio, dentro da mataria o macuco vozeia seu pio longo e aflautado, o bando de capoeiras guizalha, abafadamente; o mutum e o guariba roncam, cada qual a seu jeito. Vai-se fazendo ao largo o navio, e “apresentam despedidas” gansos nervosos e audazes, e, bem junto da água, estridulam grilos e coaxam rãs. No morro, os casais de saracura desmandam-se em cantarolar: “três potes, três potes, três potes… um coco, um coco, um coco…”

No dizer do poeta “já toda a terra adormece”.[ 89 ] É a hora de brilharem as estrelas, no céu, as quais ele ouvia e, também, a dos luze-luzes nômades, na terra, a que ele se referiu na expressiva quadra:

“A flor da noite abre o cálice…
E, soltos, os pirilampos
Cobrem a face dos campos
Enchem o seio dos vales.”

A lua esparge seus raios enfraquecidos sobre o leito do rio. As florestas seculares vão entrar na calada da noite, no quiriri misterioso de seu domínio indevassável. No alto, no firmamento, apenas lucilam alguns astros. E o mestre com perícia extraordinária governa o barco acautelando-se contra os reveses. Na mudança do roteiro aproxima-se ora de uma, ora de outra margem. Afugentam-se bramando veados, capivaras… Nas coroas, nas praias, lobriga-se, raramente, o tremeluzir do fogo do rancho de um caçador ou pescador.

* * *

Um bando de quero-queros grita em uma praia, desesperada, estridentemente. Ao ouvirmos, naquela hora em que a mata do rio parece povoada de duendes, o alarido da ave importuna, recordamo-nos de nossa infância, quando nos campos de Santo Antônio, no Rio de São Mateus, íamos com o vaqueiro campear, e éramos assediados nas malhadas pelos seus protetores — os quero-queros. Eram ameaçadores e temíamo-los receando suas bicadas de tão perto que passavam sobre nós em vôos rápidos e arrojados.

Olivério Pinto, o grande comentador da Viagem ao Brasil, de Maximiliano, Príncipe de Wied-Neuwied, escreveu de modo especial na Revista do Museu Paulista sobre essas aves, que se revelam nas estâncias do Rio Grande do Sul vigilantes e angustiadas — verdadeiros gansos do Capitólio[ 90 ] — e que têm o seu grito realçado no belo soneto de Vargas Neto:

“QUERO-QUERO”

Que é que tu queres, quero-quero. Implico
Com teu grito, que aos tímidos maneia,
Pois vêem fantasmas, de que o pampa é rico,
Quando tu gritas numa noite feia.

Aborrecido quando te ouço, fico,
E uma grande saudade me esporeia,
Porque dizem que gemem em teu bico
Os gaúchos que morrem na peleia.

És a ronda do pampa com teu bando…
A noite toda passas denunciando
Cruzada de viajante ou de índio vago.

E os mistérios das lendas entropilhas
Quando gritas nas dobras das cochilhas
Sentinela perdida do meu pago.

* * *

“Barbados! Ilha dos Barbados!” Exclamam. Os passageiros querem distingui-la, ao tempo em que o navio passa em canal estreito coleando entre a ilha, que é um penedo revestido de rala vegetação, e o barranco direito do rio de rocha compacta e de forte aclive. Mais um estirão de boa navegabilidade e o gaiola atinge a foz do Rio Pancas. O mestre apita uma e mais vezes e aproa para Colatina. Fez-se a viagem em treze horas e meia.

Muita gente aguarda o atracar do vapor; e de terra vem a pergunta: — Qual o motivo de tamanho atraso?

— Atrasaram-na os sequeiros, as demoras nas tomadas de lenha e, depois, anoiteceu e o mestre veio com muito cuidado. Treze e meia horas de lutas, mas tudo correu bem. Viagem boa, divertida.

Desembarcam os passageiros: cumprimentos, abraços, apresentações e oferecimentos de hospedagem. A hospitalidade, espírito-santense culmina. D. Andrélina Pereira, a professora, de bondade extrema recebe, fidalgamente, famílias amigas e as que lhe são apresentadas. Imitam-na outros moradores de Colatina.

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NOTAS

[ 72 ] Rocha Pombo, Vol. I, p. 502; Rocha Pombo, Vol. I, p. 50. Por Wappoeus, citação de Rocha Pombo, Vol. I, p. 502.
[ 73 ] Angyone Costa, lndiologia, p. 255.
[ 74 ] Gladstone Chaves de Meio, A Língua do Brasil, p. 89. Depois de se referir a Florival Sereine, respiga: “Assim, não haverá no rigor do termo, um dialeto gaúcho, um dialeto fluminense, paraense etc., mas tão-só alguns fatos isolados peculiares a esta ou àquela região e ausentes em outras.”
[ 75 ] Euclides da Cunha, Os sertões.
[ 76 ] A Ilha das Palmas é uma das mais notáveis do Rio Doce.
[ 77 ] Gastão Cruls, A Amazônia que eu vi, 1931.
[ 78 ] Verde, Alaranjado e Roxo, F.T.D., 3.a série colegial, p. 198.
[ 79 ] João Siegfried Decker, Aspectos biológicos da flora brasileira, p. 602.
[ 80 ] Sistema criado pelo Professor Engler, ampliado pelo Professor Sampaio referido por J. Siegfried, obra citada, p. 612.
[ 81 ] Artur E. M. Torres Filho, O Espírito Santo e seu desenvolvimento econômico, p. 358.
[ 82 ] Idem, ibidem, p. 362.
[ 83 ] D. Aquino Correia.
[ 84 ] Charles Frederico Hartt, Geologia e Geografia física do Brasil, p. 120.
[ 85 ] Os Símios da Amazônia, citação de Rocha Pombo, Vol. 1, p. 527.
[ 86 ] No Espírito Santo é corrente ouvir-se da gente inculta “desinfeliz” substituindo “infeliz”.
[ 87 ] Em 1912 o autor ocupou a casa quando explorou a Estrada de Ferro Santa Cruz. Depois fundou o Cel. Pego uma fazenda. Nas imediações está edificada a estação de Maria Ortiz.
[ 88 ] No Rio Doce o “revés” é o trecho do rio em que as águas correm com celeridade. É a corredeira, a carreira, o rápido, a corrida.
[ 89 ] Olavo Bilac.
[ 90 ] Wolfgang Hoffmann Harnisch, O Rio Grande do Sul, p. 271.

[Reprodução da primeira edição publicada pela Livraria e Editora José Olympio, Rio de Janeiro, em 1959, como parte da Coleção Documentos Brasileiros. Publicado originalmente no site em 2004.]

Ceciliano Abel de Almeida (autor) foi engenheiro da Estrada de Ferro Vitória a Minas, tendo trabalhado nos primórdios de sua construção, sendo também responsável por importantes obras de infraestrutura no Estado. Foi o primeiro prefeito de Vitória, ES, professor de ensino secundário no Ginásio Espírito Santo e primeiro reitor da Universidade do Espírito Santo, quando de sua fundação como instituição estadual.

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