Voltar às postagens

O desbravamento das selvas do Rio Doce (Memórias) – EFVM V

Estrada de Ferro Vitória a Minas

___________________________________________

CAPÍTULO V

O emissário. O chefe da exploração. Viminas. Advertências e deveres. Início do trabalho. O sol descai. “Alto!” Vamos bem. Travessia de Manhuaçu. Dez quilômetros explorados. Pedra da Vaca. O abarracamento. O cuca, palmito e surubim. Coruja, macuco e curiango. Cobra na barraca. Correição de guaju-guajus. “Não é homem, é arsenal.” Ribeirão dos Quatis. Luz, muita luz. Trabalho leve. A gulodice da Morena. A foice do Lopinho. “Não quero brigas.” Tolerância do chefe. Lopinho mofino. Rezas e penitência. Galo músico. “Olhem! Que perigo!” O caburé. “Basta!” O velho Moisés. O avejão. “Ele sou eu.”

Somos avisados de que alguém nos procurava e acudindo ao chamado que se nos fazia achamo-nos diante de um elegante moço, calçando meias botas amarelas e pantalonas de riscado, vestindo paletó do mesmo tecido e camisa branca, e trazendo um lenço grande matizado de cores diversas, amarrado ao pescoço, Rosto cheio e varonil, corado, olhos azulados, espargia saúde de sua figura impressionante. E logo que falou despertou-nos simpatia.

— Deixei o Dr. Pedro Versiani em Colatina. Determinou-me encontrar-me com o senhor, onde estivesse, e participasse-lhe que ele vem amanhã e pretende começar a exploração no dia primeiro. Manda pedir-lhe o favor de estar pronto para acompanhá-lo até a Barra do Manhuaçu, onde será o abarracamento da turma.

Vou pernoitar lá e espero dar cumprimento às ordens do chefe alugando uma casa para evitar as barracas de lona. Alimento a fiúza de achar em Marra do Manhuaçu um casebre onde se possa ficar uma quinzena. Levo ao Sr. Antônio Bittencourt, o comerciante mais forte do lugar, uma carta de apresentação e confio no êxito da providência que me foi reservada.

Presente, o Sr. Buriche aparteia:

— Se o senhor me permite recomendo-o, também, ao Bittencourt. É quase certo que o senhor obterá o que deseja. Aquele meu freguês vai a Barra do Manhuaçu e lá pernoitará regressando amanhã. Por ele pode comunicar-nos se conseguiu a casa e isso se dirá ao chefe quando aqui chegar.

O emissário, que nos abalara, Sr. José Masserano, era um dos auxiliares da turma e deu-nos, ainda, outras informações. Em canoa chegariam naquele dia ou no outro, de manhã, a bagagem, instrumentos e ferramentas. Estava, também, incumbido de providenciar animais cargueiros para o transporte até Barra do Manhuaçu. Disso espontaneamente se encarregou o Sr. Buriche.

A xícara de café que, de praxe, se oferecia ao viajante, tomou-a o Sr. Masserano e continuou sua derrota.

Ao jantar, o nosso magnânimo hospedeiro, satisfeito, desabafa:

— A gente não pode mais duvidar, a estrada vai ser construída, e adeus dificuldades do Rio Doce!

* * *

Percebe-se, ao longe, o tropear da cavalgata que, dentro de pouco tempo, embarafusta pelo terreiro situado na frente da casa. É o Dr .Pedro Versiani que chega, acompanhado dos auxiliares Laurindo Macedo e Cleto Nunes Filho. Acompanha-os Antônio Amorim, o tratador dos animais.

— Apeiem — diz-lhes o Sr. Buriche. — Apeiem. Apeiem todos. E cumprimentando-os passa pelos muares suarentos que o tropeiro vai amarrando às estacas.

— Entrem. Não façam cerimônias. — E, quando na sala, faz as apresentações e comunica ao chefe:

— A casa em Barra do Manhuaçu está alugada, a canoa trazendo a bagagem não abicou ainda, mas como já deram quatro horas não deve tardar a aproar para o porto, e a tropa está à espera da carga para transportá-la. Pernoitarão hoje, aqui, e amanhã seguirão depois do almoço que será servido cedo. Boa medida será que se verifique, depois da descarga da canoa, se há alguma falta do que a gente possa remediar.

O chefe afastou-se, acertou com o Amorim e deu-lhe ordens para a viagem do dia imediato.

Depois tocou a nossa vez de ter a necessária entrevista com o Dr .Pedro Versiani. Sabíamos um homem bom, um engenheiro competente, um profissional honesto. Antes de o conhecer já o acatávamos, não só pela sua posição hierárquica em relação à nossa, como, principalmente, pela sua fama de chefe leal, de bondade infinita e de respeitabilidade singular.

Dotado de singeleza atraente, cativava os que tinham a. felicidade de se aproximar dele. Não nos passou despercebida a deferência com que o tratavam os auxiliares e como lhes retribuía ele as delicadezas recebidas. Nessa primeira conversa senhoreou-se o Dr. Versiani de nossa amizade, de nossa veneração. Fomos seu ajudante e temos certeza de que jamais lhe causamos contrariedades. Ele não as merecia.

* * *

Oito horas marcava o nosso relógio. Já caminhamos cinco quilômetros, distância que medeia entre os Rios Natividade e Manhuaçu. Vamos estrear a realização de nossos sonhos.

Rodeamos uma estaca encimada por uma cruzeta, que estava sumida na capoeira fina, sita no sopé do espigão que olha o Natividade até as vizinhanças do seu desaguar no Rio Doce. Os foiceiros, rápido esfrançaram os arbustos e lemos a legenda “Viminas” escrita no braço da cruzeta. Esse marco era o ponto terminal da linha de exploração estudada até ali pelo engenheiro que nos precedeu.

“Viminas” era o endereço telegráfico da Companhia. Desrelvada a terra procuramos o piquete que, oculto no chão, deveria ter no topo uma tacha de cobre. Encontramo-lo.

— Esse aparelho -recomendou o Dr. Versiani -só pode ser retirado da caixa ou nela colocado pelo engenheiro. Nenhum trabalhador tem licença para pegá-lo e esta proibição abrange, também, o feitor. Mais tarde, se for cuidadoso, cumpridor de ordens e respeitado pela turma poderá, como prêmio, consentir-se a que faça esse trabalho delicado.

Depois caçou na algibeira a chave, abriu a caixa que acomodava o instrumento e assentou-o no tripé. Em seguida verificou se estava bem atarraxado e centrou-o, de maneira que a extremidade afunilada do prumo quase encostasse na brocha pregada na piqueta.

Ainda há de se retificar o trânsito antes de começar o serviço e enquanto ele, caprichosamente, fazia a retificação o feitor orientava os trabalhadores que aviventavam a linha até deparar outro piquete com prego.

Auxiliares e trabalhadores convergiram, à chamada do chefe, para junto do aparelho e ele fez-lhes oportuna advertência.

Esperava que todos se esforçassem para que no serviço houvesse ordem, respeito, obediência, porque só com boa organização poderia ele apresentar produção recomendável, que os trabalhadores não podiam carregar armas, porque na turma era indispensável cordialidade mútua e, também, para evitar acidente motivado por um disparo inesperado. Era proibido o uso de aguardente. Aquele que se embriagasse seria despedido. Deviam acatar as ordens dos superiores. Quem tivesse alguma reclamação a fazer devia levá-la ao engenheiro ajudante. A este competia providenciar sobre as queixas, sobre a alimentação para todos e tomar medidas para o bom andamento dos trabalhos.

Os auxiliares, também, cumpririam as ordens ou instruções emanadas do ajudante, que agiria de acordo com ele e que tinha a obrigação de lhe cientificar toda anormalidade que surgisse.

Depois desses esclarecimentos ordenou o Dr. Pedro Versiani ao imediato do feitor que fosse aprumar uma baliza no piquete de ré, visou-a, inverteu a. luneta, deu a deflexão adequada, fez o cálculo indispensável e, entregando-nos a caderneta de alinhamentos, declarou-nos:

— o senhor é o responsável por ela, e, portanto, pela parte técnica. Exija do nivelador as cotas. Farei os reconhecimentos parciais. Conduzirei a linha conforme as observações que me fornecer. — E, resoluto, anunciou: — O trabalho está iniciado. Vamos. Todos a postos. — E encarando um trabalhador de boa aparência:

— O senhor, que é o primeiro baliza, que está fazendo? Peça a direção ao doutor. Guie os outros. Vamos. Já perdemos muito tempo. Precisamos recuperá-lo.

Minutos após, a labuta estava ordenada. O feitor alinhava olhando para a baliza de ré de modo que ocultasse com a sua a luneta do trânsito. O foiceiro de guia apenas abria uma trilha que lhe desse passagem, e dois outros a alargavam e aperfeiçoavam-na.

O primeiro baliza fiscalizava-os e, depois de estimar a distância da picada aberta, estendia a trena de vinte metros, dávamos-lhe a direção exata e, então, ele procedia à medição. O estaqueiro retirava de um saco um piquete, enterrava-o, até rentear o terreno no lugar indicado pela ponta da baliza do feitor e a trinta centímetros à esquerda, afincava uma estaca chanfrada e numerada. Era a testemunha. Terminada a operação, gritava o feitor o número da estaca e prosseguia no mesmo ritmo.

Íamos anotando a caderneta e, na folha à direita figurávamos o esboço do relevo do solo que mais tarde, no escritório, facilitaria a construção do desenho topográfico, em que seria projetado o traçado da estrada de ferro.

A estaca chantada ao lado da de nome “Viminas”, ponto inicial de nosso alinhamento, foi marcada com um zero. A segunda testemunha recebeu o número um, a terceira o dois, a quarta o três e, assim, por diante. Medidos duzentos metros assinalados pela estaca dez foi cravada uma tacha de cobre na piqueta e para aí se fez a mudança do instrumento. Centrado e posto em plano horizontal o prato do aparelho, obramos como o chek na estaca zero, na primeira estação, e sem tardança continuamos o trabalho.

Enquanto assim procedíamos os auxiliares marcavam as normais ao alinhamento e com clinômetro mediam os ângulos de inclinação do solo abrangendo uma faixa de cento e sessenta metros. O nivelador já ao lado do trânsito havia nivelado e contranivelado as dez vintenas de metros da linha corrida.

Não havíamos reparado na pessoa do Dr. Pedro Versiani ao nosso lado. Estava satisfeito e recomendou-nos que mandássemos colocar um piquete de prego, acrescentando:

— As marmitas estão debaixo daquela árvore frondosa, em frente — e apontou-a. — Os caldeirões dos trabalhadores também estão, lá. Vamos almoçar. Tudo vai bem e o senhor está se impondo à turma sem estardalhaço.

O exercício havia estimulado o apetite. O almoço, sem ser de forno e fogão, agradava a todos. Saboreávamo-lo. O cardápio não era variado mas arraigado na tradição da terra: feijão, charque, arroz, farinha de mandioca e café. O dos trabalhadores não era inferior ao nosso e só se diferençava pelos utensílios. O deles em panelas, e o nosso em marmitas. Naquele tempo não falavam em vitaminas. Não eram ainda conjeturadas.

Finda nossa refeição, com fumaças de banquete pelo deleite de comer jabá com tutu, cigarramos, cavaqueamos entre bafarodas do petume e, depois de curta delonga, partimos para retomar nossas obrigações.

Instalado o trânsito, recomeçou a azáfama com alegria.

O chefe arredou-se da picada. Foi percorrer o alinhamento desde o ponto inicial. Encontrou os auxiliares labutando nas’ instruções, que lhes havíamos transmitido. As cadernetas em ordem. Os camaradas que abriam as ordenadas puxaram pelas foices e não se desviavam da direção marcada, com o esquadro pelo seccionista. Assim nos participava o resultado de sua inspeção:

— A turma é diligente e se não houver dispersão de bons elementos exploraremos os sessenta quilômetros em três meses, conforme os desejos da Companhia.

Passaram horas e, agora, já o sol descai e seus raios dardejam na objetiva da luneta do aparelho, obrigando-nos a protegê-la com o quebra-luz apropriado, quando, de novo, o Dr. Versiani aparece e manifesta-nos a intenção de suspender os trabalhos com uma pergunta:

— Não acha o senhor que basta? Concordamos.

Colocado o piquete com a tacha de cobre fizemos ao primeiro baliza o sinal convencionado de “Alto!” E ele transmitiu-o a toda a turma.

Guardado por nós na caixa o trânsito, montamos a cavalo e rumamos para o abarracamento.

Em caminho indagou-nos o chefe o número da última estaca. “Quarenta”, dissemos-lhe.

Foi ótimo o serviço do primeiro dia e no quinto ou sexto deveremos atravessar o Manhuaçu e ganhar a mata.

* * *

Quando mandamos percutir o piquete e a última estaca, faltaria, talvez, uma hora para o sol pardar .O Manhuaçu estava a olhos visto e o Dr. Versiani preveniu-nos de que já havia escolhido a reta da travessia e que, aberta a picada e esfrançados os arbustos da beirada do rio, descortinaríamos a bandeirola que seria colocada na margem oposta.

— Este alinhamento — acrescentou — será o do projeto. Na caderneta o senhor observará o que lhe estou esclarecendo para que o projetador não mude o eixo da ponte. A rocha compacta nos barrancos está quase aflorada. O custo da construção dos pegões vai ser baratíssimo. Quanto ao vão exato da ponte, o senhor calculará amanhã.

Alcançamos o quinto dia de nossos trabalhos. Vamos bem.

* * *

Íamos transpor o Manhuaçu.

Medimos, rio acima, um segmento retilíneo. Era o cateto de um triângulo em que o outro era o prolongamento da linha de exploração, que passaria na bandeirola situada do outro lado do rio.

Esboçamos a topografia da faixa que nos interessava. Nela figuramos o triângulo com os elementos conhecidos e quando nos dispúnhamos a fazer a avaliação trigonométrica, utilizando-nos da caderneta do campo de Pereira Passos, o Dr. Versiani ponderou-nos:

— O senhor poderá fazer o cálculo na canoa durante o tempo da travessia.

— Achamos boa a sugestão e ele rematou:

— Dê-me a distância e eu me incumbirei de fiscalizar a numeração das estacas, sua chantadura e a dos marcos de referência do nivelamento em ambas as margens.

O porta-instrumento entra na canoa com o trânsito. Sentamo-nos no banco e lá fomos calculando e verificando cuidadosamente as operações, enquanto os canoeiros mupicavam obedecendo às reiteradas recomendações do chefe: — “vamos depressa”.

Saltamos. O Dr. Versiani instala, sem detença, o aparelho, visa à baliza apoiada no piquete da margem direita e mantida verticalmente e indaga que comprimento encontramos. Demos-lho e ele sentencia:

— A ponte deverá ter oitenta metros de vão. Será, até aqui, a de maiores dimensões da estrada. — Depois reflete, enfrenta-nos, serenamente, e interroga-nos:

— Está certo o cálculo?

— Está. Tiramos a prova. — E apresentamos-lhe a caderneta de alinhamentos.

— Empregou logaritmos? Mas no “Passos” não há logaritmos. — Usamos a tabela de senos, co-senos e tangentes naturais e verificamos tirando os logaritmos do Mémorial Téchnique de L. Mazzochi. Ei-lo.

— É um excelente aide-mémoire e o senhor é cauteloso. Muito bem.

Prolongamos em plena mataria a reta da travessia do rio até a fralda do espigão que separa o Manhuaçu do Rio Doce. Aí inclinamos para a direita e subimos suavemente a uma pequena garganta, na ponta do morro, onde a vegetação mirrada rodeava uma tapera. Divisamos, então, a temporizada Pedra do Lorena, sita à margem esquerda do Rio Doce, olhando imponente a foz do Manhuaçu.

Despedimo-nos, depois, do sítio abandonado, penetramos em cheio a mata virgem e fomos coleando entre o rio e a montanha, adstringindo-nos, entretanto, às condições técnicas da linha, que não podíamos relaxar.

As araras galreavam e a brisa da tarde cantava nas copas das árvores, quando deixamos o serviço. O Dr. Pedro estava alegre e, apesar dos magníficos óculos que usava. tropeçava nos tocos da picada com suas pesadas botas. Acompanhávamo-lo com solicitude, como era de nossa obrigação, enquanto os trabalhadores se safavam da floresta, bazofiando suas proezas ou taramelando impensadamente.

* * *

Dias límpidos sucediam-se. Não havia sinal de chuvas. Diarizávamos nossos trabalhos sem interrupção. Já estavam explorados quatro quilômetros, além do Manhuaçu. Notávamos que a turma não afracava a disposição de vingar as dificuldades, nem a entibiava a solidão do matagal. E, então, houve por bem o chefe levar avante a exploração mais um dia. Depois, os trabalhadores abririam as ordenadas, os auxiliares fariam o levantamento altimétrico. Nós e o nivelador copiaríamos as cadernetas que, com as dos seccionistas, seriam remetidas ao primeiro engenheiro em Vitória.

Dentro de três dias todas as cópias referentes aos dez primeiros quilômetros, inclusive a do perfil da linha com a indicação do grade, deveriam estar concluídas e mudaríamos para as vizinhanças do local da margem do Rio Doce denominado Pedra da Vaca.

A bagagem seria transportada em canoa.

* * *

Abarracamo-nos perto do rio, na mata virgem, cabrocada pelos foiceiros, que roçaram, também, lianas e cipós enrolados ou presos nos troncos grossos.

As árvores existentes no círculo em que estava o abarracamento e em seus arredores foram examinadas e abatidas as ocas, porque enfraquecidas poderiam cair.

O alinhamento progredia através da mata fechada. Os trabalhadores foiceavam e machadavam, o picadão ia sendo estaqueado e os técnicos colhiam os dados necessários, para desenhar a topografia da faixa do terreno, em que se projetaria a estrada.

Maravilhávamo-nos da faina daqueles jornaleiros. O destruir uma jaibara, o derrubar um pau-ferro ou o dominar qualquer outro obstáculo, que se lhes apresentasse, mais e mais os incitava à vitória. Quando crescia a peleja não se percebia nenhum vozear mas ouviam-se o tinir das ferramentas e o ruído da queda dos arbustos e das árvores decepadas.

* * *

Habituamo-nos àquele labor cotidiano, dentro do matagal, enlevavam-nos o gemido do zabelê e o grazinar dos periquitos em bando. À tarde, quando regressávamos, caminhando no trilho que beirava o rio, deparávamos, amiúde, com os mutuns ariscos, que se embrenhavam nas dicotomias das frondes e piavam medos. Chegando à barraca antes que o sol pardejasse íamos restaurar nas águas do caudal as energias diminuídas e, depois, distraíamo-nos com o coaxar das rãs e com o cantar dos pássaros anunciando as ave-marias.

Anoitecia. Era a hora do jantar e da cordialidade máxima. O chefe perguntava ao cozinheiro: — Há novidade? — A negativa importava na confirmação do conhecido cardápio: feijão, charque, arroz, farinha de mandioca e café. Se a resposta, porém, fosse positiva, havia um acréscimo, ao trivial, de palmito ou de peixe. E o cuca narrava a história, sempre muito enfeitada, da reboleira de palmitos casualmente descoberta, ou do surubim vasqueiro por ele pescado.

Depois da refeição a luz da lanterna de querosene ia amortecendo até que um dos auxiliares se decidisse a apagá-la, após autorização do chefe. Engolfávamo-nos em sono salutar, dormindo oito e nove horas seguidas. Noite havia, entretanto, que despertávamos com o farfalhar do vento, com o ranger das árvores umas de encontro às outras, ou com os baques dos paus velhos e das galhadas. Nessas ocasiões desapareciam o chirriar da coruja, o pio aflautado do macuco e a promessa — amanhã eu vou — sempre renovada, do curiango.

Certa noite deitado na rede, onde dormíamos, acendemos uma vela e colocamo-la no chão, enquanto nos dispúnhamos a levantar . De repente surgiu uma cobra, serpeou por baixo de nosso leito, renteou a estearina e desapareceu. Todos a viram e, à uma, puseram-se de pé. Queriam saber se o ofídio nos havia mordido. Tranqüilizamo-los. Agradecemos-lhes a cortesia e o interesse tão prontamente manifestados.

O chefe convidou-nos para procurar a cobra, que lhe pareceu venenosa.

Removemos, cautelosamente, canastras, sacos e calçados. Nossa vozearia acordou a turma. Compareceram o feitor e alguns trabalhadores, que nos ajudaram a esquadrinhar toda a barraca e não se achou o réptil.

Choveram os comentários e por fim acabamos por nos aquietar. Restabelecido o silêncio escutamos um sussurro longínquo, uma trisca indefinida ou, antes, tique-tiques, crepitações e estalidos estranhos que pareciam aproximar-se e, simultaneamente, chegavam à nossa barraca e atravessavam-na numerosos animalejos: ratos, baratas, grilos, rãs… e, de novo apareceu o feitor com um tição fazendo com ele cruzes no chão, dentro e fora da barraca, e disse-nos:

— Está explicado o aparecimento da bicha. Ela fugia das guaju-guajus, que já atingiram o nosso arranchamento. Lá deixei um homem riscando o solo com um pau aceso. Não saiam de suas camas. Vou buscar rescaldo e cerco a barraca de vosmecês e elas hão de procurar outro carreiro. Dizem os mais velhos que estas formigas guerreiras adivinham chuva, quando andam em correição. Mas isto nem sempre acontece. A noite está estrelada. Não acredito em mudança de tempo tão cedo.

O primeiro baliza voltou com cinza quente e brasas. Espalhou-as, conforme nos havia prevenido, e não fomos incomodados pelas guaju-guajus.

Conversamos sobre a correição, formiga do gênero Eciton. Esforçamo-nos por nos recordar do pouco que já havíamos sabido das corredeiras, que formam colunas de ataques a todos os animais, como acabamos de ter a confirmação.

A tertúlia alongava-se, além de nossos hábitos, e todos concordaram em finalizá-la com as boas-noites.

* * *

Já cogitávamos em mandar à casa comercial do Senhor Antônio Bittencourt, em Barra do Manhuaçu, uma canoa buscar mantimentos quando ecoaram na picada sons repetidos de um búzio. Os trabalhadores conjeturaram ser canoeiros que buzinavam descendo o rio e responderam-lhes gritando prolongadamente. No fim de poucos minutos nada mais escutamos. Só se percebiam o roçagar das foices e os golpes dos machados.

Assentado na caixa do trânsito, ao nosso lado, estava o Dr. Versiani, quando surgiu no alinhamento um curiboca de porte avantajado e veio, guiado pelo primeiro baliza, entender-se com ele.

Tirou da cabeça o chapéu de couro, saudou o Dr. Pedro e ofereceu-lhe carne de porco salgada, toucinho, rapadura, farinha de milho, feijão e arroz. O chefe observou o oferente demoradamente e passou a fazer-lhe perguntas. “Quem é o amigo?” “De onde vem e para onde vai?” “Por que nos procurou?”

E a esquisita personagem respondeu-lhe:

— Sou mineiro de Santa Maria de São Félix; venho de Figueira numa canoa carregada, que muito trabalho me deu para a transpor, vazia, nas cachoeiras, porque eu e os companheiros carregávamos os volumes passando na mata; e vou à venda do seu Bittencourt. Mas soube que a turma de engenheiros estava subindo o rio, acompanhando os morros, e vim indagar se os senhores querem ficar com os meus mantimentos, porque com o dinheiro na mão posso comprar a meu jeito em Barra do Manhuaçu.

Durante o tempo em que o homem falava o chefe fleumaticamente o analisava e, depois de seus informes, disse-lhe:

— Patrício, também sou mineiro. — E sentenciou: — O meu amigo não é um homem; é um arsenal. — O caboclo arregalou os olhos e não atinou. E o Dr. Versiani, mansamente, insistiu: — Não há dúvida, o meu patrício é um arsenal — e apontou-lhe o tronco enumerando: — Uma carabina a tiracolo, uma garrucha, uma espada, um facão, e uma faca à cintura e não sei se o amigo carrega ocultamente outras armas. É. Este homem é um arsenal!

— Seu doutô me perdoe. Eu devia ter deixado na canoa o arsená e vir falá com o doutô desarmado. Seu doutô me descurpe. A gente é obrigado a ser arsená, porque anda nestes ocos do mundo e não sabe o que se vai encontrá e nem quando há de se defendê. Me perdoe seu doutô.

— Gente de Santa Maria de São Félix é boa e ordeira. O meu amigo não faz exceção. Aproxime-se. Venha conversar comigo. Hoje vão ser nossos hóspedes o senhor e os seus companheiros. Um pouco abaixo de Pedra da Vaca é o nosso arranchamento. Esperem-nos lá. Esse moço que está perto do instrumento é quem vai comprar ao senhor e pagar-lhe imediatamente. Se as suas mercadorias não estiverem em perfeito estado e não forem de boa qualidade, ele não as adquirirá. Avise o cozinheiro da turma de que os senhores jantarão hoje com os camaradas. Está bem assim?

— Está, sim senhô. E o senhô me descurpe, seu doutô. Vou guardá o arsená.

A aquisição de mantimentos que fizemos, em ótimas condições, resolveu o problema de alimentação quase até o fim do serviço.

* * *

— Temos mais de quatro quilômetros explorados além do abarracamento. Precisamos mudar-nos para um lugar em que haja pasto para os animais — diz-nos o chefe — Chega de pernoite em mata virgem. Amanhã é sexta-feira. Toda a turma vai abrir secções e levantá-las. Eu e o senhor vamos observar o que está na frente e escolher o local para a mudança. Estou informado de que no ribeirão dos Quatis há abundância de capim-gordura e creio que possamos armar lá as nossas tendas. No primeiro dia de trabalho caminharemos para trás oito quilômetros ou um pouco mais, entretanto nos dias subseqüentes nos iremos aproximando do pouso. Parece que o lugar é saudável e convém que o reconheçamos. No domingo de madrugada a bagagem será transportada em canoa e na segunda-feira prosseguiremos a exploração.

Achamos o sítio excelente e tudo foi providenciado de acordo com a orientação do Dr. Versiani.

* * *

O desmatamento do terreno permitia-nos distinguir o leito do riacho até o seu desaguar no Rio Doce. De nossa barraca glorificávamos a natureza em seus belíssimos panoramas. Situava-se perto excelente piscina, cavada no álveo do ribeirão, na qual o banhista dificilmente se arriscava a perder a vida.

A noite ou o dia, banhados pela luz frouxa da lua ou pela reverberante do sol, causavam-nos um bem-estar infinito, que contrastava com a opressão, que sentíramos, quando cercados pela floresta secular em clareira limitadíssima.

Amávamos, exaltadamente, a terra com seus rios, serras, fauna e flora, mas reconhecíamos, talvez com amargor, não poder rivalizar com o botocudo na perfeita adaptação ao meio, vivendo feliz em seu quejeme.

Carecíamos de muita luz lânguida ou ardente, e no lugar do nosso arranchamento tínhamo-la sem restrição. Nela, nossa alma aprazia-se com a paisagem que nos rodeava.

* * *

O mês de setembro havia findado.

Ao primeiro engenheiro já havia o Dr. Pedro Versiani encaminhado os perfis e as cadernetas da exploração até a estaca mil. Assim colhia os frutos de um trabalho organizado que aumentava suas credenciais perante a Companhia. Não se envaidecia por isso, mas considerava-se, por certo, compensado por ser querido e respeitado pelo pessoal técnico e pelos jornaleiros.

Alegramo-nos no dia em que concluímos os vinte quilômetros a partir do Manhuaçu, percorridos na floresta. Muitos trabalhadores, porém, preferiam abrir a trilha do alinhamento e as ordenadas em mata virgem. O trabalho é mais leve — é mais “manero” —,diziam, do que no capoeirão, no cerrado fechado e na capoeira, cheios de espinhos, urtigas, cobras e marimbondos. E quando deparavam com uma ponta de mata grossa consideravam-se afortunados.

* * *

Estamos no último piquete cravado na véspera diante da choupana do Senhor José Lopes ou Lopinho, como era conhecido, preto de ruim catadura, chefe de numerosa família.

Centramos o trânsito e começamos a alinhar. Depois mudamos o aparelho para cento e vinte metros além e o Dr. Pedro, que havia saído de Quatis conosco, não aparecia.

Resolvemos despachar um próprio ao seu encontro quando lobrigamos um vulto. Cedo reconhecemo-lo. Chegou, abeirou-se ao instrumento e esclareceu-nos sobre o seu retarde em fala que revelava sua bondade inimitável.

— A Morena viu, à margem da vereda, viçosa moita de capim-gordura. A gramínea estava orvalhada, os raios do sol atingindo-a produziam fugaz irisação. A besta estacou, o capim acendeu-lhe o apetite, comia-o apressadamente, mas o freio atrapalhava-a. Sabia que o meu atraso não prejudicava o serviço porque o senhor não se embaraça. Apeei-me, tirei o freio da mula e admirei a gulodice do bruto que não se fartava.

Labutamos nesse dia como nos outros e o Dr. Versiani prevenimos da transferência do arranchamento. Procederíamos como anteriormente. Iríamos reconhecer o terreno adiante e escolher o local para nova instalação de nossas tendas.

Era o momento do regresso, quando o Amorim acabrunhado se avizinha do chefe e participa-lhe:

— Dr. Pedro, a Morena foi cortada pelo Lopinho. Rastejei os três: o Queimado, a Belquis e a Morena. Enxerguei-os de longe caminhando no trilho que leva à roça do homem desalmado. De repente a Morena dá um salto, e volta em disparada, o Queimado e a Belquis acompanham-na e o demônio, empunhando uma foice, persegue-os para os golpear. Dei passagem à récua, vi, de relance, o golpe e o sangue escorrendo, e enfrentei o malvado.

“Por que o senhor feriu a mula de sela de meu amo?”

“Porque ia devastar minha lavoura”.

“E ela comeu alguma plantação?”

“Não, porque não deixei. Fiquei de tocaia esperando estes animais para os matar se me dessem prejuízos. Estou informado de que estrada de ferro não respeita a propriedade de ninguém. Arrasa tudo. Mas comigo não há de ser como estão pensando”.

“Mas a besta é do engenheiro, é do chefe. Sou o arrieiro. Sou o responsável”.

“Pois então fique sabendo. Meti a foice na mula. E mato a você ou a qualquer trabalhador que surrupie cana, banana ou outro produto de minha roça. E o engenheiro também será repelido e morto se quiser abusar”.

E o Amorim continuou:

— Seu doutor Pedro, quando ouvi estas barbaridades enraiveci-me tanto que o senhor não pode imaginar. Tive vontade de esganar o atrevido com as cordas que tinha nas mãos. Não tenho medo de valentão, e não o fiz, porque vossa senhoria proíbe que a gente faça certas coisas e por isso me obriga a ouvir desaforos de um tinhoso como esse Lopinho.

— Fez bem em não reagir. Você e todos estão proibidos de entrar na roça do homem. Não quero brigas. A turma é decente. Está estudando o traçado da estrada e tem o propósito de não questionar com o Senhor José Lopes ou com outro. O Masserano vai verificar se há estrago e, se houver, por menor que seja, é justo a indenização ao lavrador, perdido com sua família neste ermo. Você, Amorim, não deve zangar-se com o sucedido. E diga-me, pôde selar a Morena ou o corte impediu que você pusesse nela o selim?

— J á está arreada. O talho é grande mas é raso. Dentro de oito dias a ferida estará cicatrizada e o senhor poderá viajar nela diariamente.

— O Senhor Lopes é o primeiro morador depois do Manhuaçu. Está indisposto contra o pessoal da estrada. Se o tratarmos bem, com paciência e com justiça, ele ainda poderá transformar-se em amigo. E é o que nos cumpre fazer.

Admiramos a prudência do Dr. Pedro Versiani, Só a sua experiência podia dar-nos esse exemplo de tamanha tolerância. Jamais nos esquecemos dessa passagem e, freqüentemente, a temos recordado, inspirando-nos nela para resolver dificuldades. Suas palavras sensatas, sua mansidão invejável, sofreavam os ímpetos defensivos e, quiçá, agressivos do Amorim e, também, moderavam os exaltamentos momentâneos de quaisquer de seus auxiliares e dos trabalhadores.

À noite, depois do jantar, disse-nos ele pachorrenta e filosoficamente:

— Este foi o dia da Morena — pela gulodice asinina estimulada pelo gordura rociado, e pelo golpe na anca acertado pelo truculento ferrabrás. Esse Lopes, chamado Lopinho, é um lobinho mofino, que foiça a alimária por crueldade, não é lobo de nobreza que ataca, denta, mata e devora a presa para saciar a fome.

* * *

Tencionou o Dr. Pedro Versiani acampar a turma a jusante da cachoeira de Santana por ser em canoa mais conveniente o transporte da bagagem e das mercadorias.

Reconhecemos o terreno e depois de trotearem nossas cavalgaduras o caminho tortuoso pressagiamos a aproximação de uma itaipava porque percebêramos, embora indistintamente, o seu cachoar.

Na vereda estreita havia trechos em que os galhos se entrelaçavam, acima de nossas cabeças, e não lobrigávamos, sequer, a frente próxima, por isso nos surpreendemos, quando a poucos passos deparamos uma aglomeração de pessoas, homens, mulheres e crianças, talvez três dezenas, rodeando uma grande cruz de madeira fincada no chão no meio de um monte de pedras de tamanhos diversos.

Paramos e assuntamos a explicação que nos dera aquela gente de crença sublimada.

Distante daquela cruz e além do ribeirão de Santana havia uma capelinha e perto outro cruzeiro. Quando se prolongava a seca reuniam-se no oratório, rezavam a Maria Santíssima e a sua Mãe, Senhora Santana, e prometiam-lhes fazer penitência, carregando as pedras de um lugar para o outro. Atendida por Deus a intercessão das santas, caía a chuva desejada e necessária.

Acompanhamos o magote de fiéis, visitamos a modesta capela, relacionamo-nos com os presentes, cuja maioria morava afastada do rio, e contemplamos a cachoeira de Santana.

De volta, acercamo-nos de uma casa, sita na margem direita do ribeirão, na qual assistia uma viúva, a Dona Maria.

O Dr. Versiani conseguiu que ela lha alugasse. Marcou-lhe o dia da entrega que seria o da nossa mudança. Ela iria morar com um dos filhos. Levaria as galinhas e o papagaio falador.

Noticiamos, durante o jantar, aos auxiliares, essas combinações. Ficaríamos, por algum tempo, livres da barraca. Sorriram satisfeitos.

* * *

Dá ares de residir num palacete aquele que foi habitar um casebre, deixando a tenda de campanha.

Alojamo-nos na sala, que era extensa. Nela couberam as camas-de-vento do chefe, dos auxiliares e a nossa rede. Dois aposentos foram fechados pela proprietária, conforme a condição por ela estabelecida com o chefe. Além da sala nos servíamos, também, da cozinha.

Cada qual se sentia bem abrigado. A nossa residência era maravilhosa e o banho na cascata, deleitante.

Anoiteceu. Tínhamos a alma embrincada e antegozávamos o sono restaurador que dormiríamos. Isso, entretanto, fora ilusão, porque velamos, nervosamente, nessa noite de começo auspicioso.

No oitão da casa da banda de fora, próximo da cama do Dr. Pedro, estava o poleiro das aves que D. Maria não levara.

Antes de meia-noite um galo bem munido de esporões, garboso, reprodutor único daquele grupo de galinhas crioulas, emitiu a voz alta, longa, arrogante, da qual se evolavam modulações agradáveis, por certo, aos ouvidos de sua dona.

As horas escoavam, o galo amiudava e ninguém dormia. Ele espertar-nos-ia até ao amanhecer, se o Dr. Pedro não acertasse com a solução adequada. Gritou pelo Amorim, que acudiu ao chamado e dispôs-se a cumprir a ordem do Dr. Versiani:

— Retire esse galo e, ao romper do dia, leve-o com as galinhas à dona.

A noite está serena e estrelada. Da mata, do outro lado do rio, vinham pios espaçados, enquanto uma coruja chirriava ao longe. Poucos pirilampos luciluziam naquela hora.

E quando o Amorim, às tontas, se aproximava do poleiro, o galo iniciou um cocorocô. Quis pegá-lo mas não o conseguiu.

E o Amorim anuncia entusiasmado:

— Seu doutor, o galo caiu nos meus pés, continuou a cantar até encostar o bico no chão. É um animal de valor. É raro encontrar-se dessa espécie. É um galo músico.

Na picada, naquele dia, chefe e auxiliares bocejavam.

* * *

Diarizamos o perfil da linha explorada valendo-nos de uma vela esteárica para melhorar o aclaramento baço da lanterna de querosene, e da caixa do trânsito, como prancheta. Em seguida calculamos e traçamos o grade e submetemo-lo à apreciação do chefe.

Finda essa tarefa palestrávamos sobre assuntos variados, de preferência sobre as ocorrências do dia e, depois, dávamo-nos as boas-noites e repousávamos.

De uma feita, nessa hora de cavaco, o Dr. Versiani, deitado na cama, entretinha uma narração atraente e de repente a interrompe, aponta-nos as botas e exclama:

— Vejam! Olhem! Que perigo! Que horror! E todos observamos, estarrecidos, uma cobra que se enroscava em tomo de uma das botas, depois se desenroscou, insinuou-se por ela e escondeu-se às nossas vistas.

O nervosismo atingiu o auge. Ninguém se animou a levar a bota para fora de casa. E o chefe recorreu ao Amorim, que compareceu, à pressa, com o feitor, e outros trabalhadores, e inteiraram-se do ocorrido.

E, enquanto, o tropeiro vai, cautelosamente, transportar a bota, outros buscam varas, e preparam-se para varar o ofídio e tirar-lhe a vida.

O luar domina no terreiro, o que lhes vai permitir enxergar o réptil. Forma-se o círculo dos que se dispunham a dar varadas e a bicha foi despejada, açoitada e morta.

Era uma jararaca. Media pouco mais de metro.

Restabeleceu-se no acampamento a tranqüilidade e o Amorim foi premiado pelo chefe com uma obrigação a mais: à noite, tapar as botas para evitar a reprodução do acontecimento impressionante.

* * *

Diariamente progredia o trabalho. A turma diligenciava por adquirir boa recomendação. Na véspera já havíamos acompridado a linha de exploração, além do arranchamento, fraldejado um espigão, fronteado com a cachoeira de Santana e, cravado o último piquete, perto da margem direita do ribeirão do Barroso.

Na manhã do dia imediato atravessamo-lo e andamos por ampla encosta dando deflexões, à esquerda e à direita, medindo e estaqueando.

Em certa ocasião, quando centrávamos e nivelávamos o trânsito, um caburé imprudente veio, sutilmente, pousar num galho desfolhado de um arbusto. E tão manso se mostrava que parecia querer saudar-nos. Mirava-nos e remirava-nos, sem medo e, talvez, sem malícia. Os olhos perscrutadores, as penas bem ajustadas ao corpo e a sisudez própria davam-lhe um quê de boa linhagem e de elevada dignidade, que ainda mais se ressaltava por causa de sua quietude destemerosa.

Os trabalhadores descobriram-no, em seu desabrigado posto de observação, e lastimaram não haver uma espingarda para alvejá-lo e matá-lo.

Comentavam não a curiosidade, a imprevidência, ou a mansidão do desprevenido bubonídeo, mas o desafio, a ousadia ou o desaforo de tanto se avizinhar da turma. “Ele pensa, talvez, que somos besouro, camundongo ou pinto”, diziam, e constituíram um tribunal cruel, e condenaram-no.

E quando, preparado o aparelho, nos dispúnhamos a prosseguir, o primeiro baliza apresentou-nos o revólver, que guardávamos na caixa do instrumento, e disse-nos

— Por favor, seu doutor, atire-lhe.

— E que mal nos está fazendo ele?

— Atire-lhe, nós lhe pedimos. É um comedor de pinto.

— Aqui, neste ermo, não há pinto. Por que se há de matar o pobre?

— Atire-lhe, seu doutor. É um atrevido. Toda a turma lhe pede que atire ao sem-vergonha, que acerte um tiro nele.

— Não atiramos bem.

— Então atire-lhe para espantar.

— Pegamos do revólver. Atiramos ao caburé, que, morto, caiu.

— Muito bem! bonito tiro! — disseram.

Correram. Apanharam a ave. Examinaram-na.

— O doutor tem boa pontaria, ele não erra a cabeça de um homem e choveram os comentários, e fomos considerado como ótimo atirador.

Ficamos desapontado. Remoíamos de arrependimento. Resolutamente, ordenamos:

— Vamos, basta de caburé, basta!

E nunca mais disparamos o revólver diante da turma.

* * *

Era um domingo. Já estava espalhado que a turma, breve, mudar-se-ia para a Serra da Onça. Relacionamo-nos com os poucos moradores das redondezas e nesse dia recebemos visitas e os trabalhadores, também, e mais numerosas.

O velho Moisés, cafuzo de barbas compridas e grisalhas, compareceu ao nosso dormitório. Loquaz e cavaqueador foi ficando, sem falar no regresso. Anoiteceu e ele participou-nos:

— Vou esperar que a lua saia para ir para casa — e desandou a contar fatos de almas penadas e de assombrações. Eram histórias do nosso folclore, geralmente conhecidas.

Narrou-nos, porém, um episódio que vamos reproduzir.

Um conhecido costumava visitar um amigo e quase sempre se descuidava da volta; anoitecia e ele só retornava a desoras: Conhecia bem o trajeto. Não era medroso. Não acreditava em fantasmas.

Certa vez regressou quando já era alta noite. O noitão estava escuro como breu e, numa encosta escampa, lobrigou ele um vulto ainda mais preto. Foi andando. O caminho ia rente ar o bicho, que, visto de perto, parecia um porco negro, enorme, de pé, apoiando-se nas patas traseiras e balouçando o corpo de vez em quando.

Gritou, o espantalho não arredou. Trovejou ameaças e o estafermo está quieto. Bradou — “deixe-me livre o caminho!” — Nada. Não lhe dava passagem. E momentos havia em que o suíno crescia como se fosse um ouriço colossal.

Aquilo era um desafio. No lugar em que estava havia muitas pedras. Resolveu apedrejar o avejão.

Arremessou-lhe pedras e o bruto não se mexeu, mas ele teve a impressão de que a visonha ia reagir. E não se enganou. O monstro remexeu-se e frufulhou um rumor de folhas. Depois disso, o homem se arrepiou todo. Os cabelos eriçaram-se, abalou de onde estava e, tonto, abrigou-se numa casa abandonada, perto da do amigo. Velou o resto da noite angustiado, apavorado.

Apontavam as barras da madrugada, quando se afastou da choupana velha. Caminhava depressa, queria ver os rastros do lobisomem, o sangue do encantado, porque tantos foram os calhaus atirados que, por certo, ele fora ferido e lá estariam as manchas de sangue para atestar sua luta, sua valentia. De que foi uma aparição, estava convencido. E agora ele acreditava em visão, em visagem, em mula-sem-cabeça e em tudo.

Com o coração aos pulos, avizinhou-se do local do evento horripilante. Não achou pegadas, nem sangue, nem vestígios. Novamente se engolfava no pavor quando, observando melhor, descobriu que uma arvoreta, uma orelha-de-burro, nascida na beira do caminho, estava em parte desramada e tinha várias folhas furadas, dilaceradas.

Atinou, então, na sua ilusão, no seu medo infundado e voltou a descrer de fantasmas, de lobisomens.

Dissemos-lhe que muito gostaríamos de conhecer o protagonista da curiosa narrativa. E imediatamente nos esclarece o caburé respeitável:

— O senhor conhece-o muito, porque ele sou eu.

E o Dr. Versiani, com sua invejável finura adverte:

— Então o meu patrício teve ares de D. Quixote de la Mancha; apedrejou a inofensiva orelha-de-burro e não se confundiu, de todo, com ele, porque fugiu.

— Foi isso mesmo, seu doutor. Fugi em disparada.

[Reprodução da primeira edição publicada pela Livraria e Editora José Olympio, Rio de Janeiro, em 1959, como parte da Coleção Documentos Brasileiros. Publicado originalmente no site em 2004.]

Ceciliano Abel de Almeida (autor) foi engenheiro da Estrada de Ferro Vitória a Minas, tendo trabalhado nos primórdios de sua construção, sendo também responsável por importantes obras de infraestrutura no Estado. Foi o primeiro prefeito de Vitória, ES, professor de ensino secundário no Ginásio Espírito Santo e primeiro reitor da Universidade do Espírito Santo, quando de sua fundação como instituição estadual.

Deixe um Comentário