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O desbravamento das selvas do Rio Doce (Memórias) – Rio Doce VI

Rio Doce

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CAPÍTULO VI

Observações de C. F. Hartt. Casebres. Pedras do Lorena, dos Cágados, do Resplendor e da Vaca. Serra da Onça. Cachoeira de Santana. Vasto anfiteatro. Moradores e cabras. Cachoeirão. Matas e lendas. Afluentes do Rio Doce. Cachoeiras e ilhas. Figueira. Ibituruna. Distrito de Peçanha. Os três pioneiros. Suaçuí Pequeno. Baguari. Pedra Corrida. Escura. Cachoeira perigosa. Antônio Dias.

No princípio deste século as matas da margem direita do Rio Doce, do Porto de Sousa à foz do Manhuaçu em parte, apresentavam clareiras, mais ou menos extensas. No leito do rio as águas correm agitadas, escavando rochas arqueanas, formando caldeirões, caindo de degrau em degrau produzindo rebojos, originando espumas terrosas, constituindo o conjunto a Cachoeira das Escadinhas. O terreno concertado é quase uma chanura, salpicado, antes do Rio Guandu, de blocos de quartzo leitoso que se assemelhavam, quando, lobrigados, a zebus esbranquiçados, imóveis como se estivessem ruminando. Carlos Frederico Hartt salienta que “as rochas expostas no canal do rio são gnaisses. Observei alguns veios duros de quartzo, mas não tive tempo de examiná-los bem”.[ 125 ] Transposto o Guandu numa ponte de madeira, cujas peças importantes tinham secções transversais avantajadas, chegava-se ao povoado. Daí para diante a planura se estreita, porque o encadeamento de uma série de colinas, que é o divisor de água entre o Rio Guandu e o Natividade, vai-se aproximando do Rio Doce terminando na serreta ou espigão assinalado no auto de oito de outubro de 1800.

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A partir de Baixo Guandu, cerca de cinco quilômetros para cima, topavam-se os primeiros casebres de Natividade e, a igual distância para diante, algumas cabanas nas cercanias da barra do Manhuaçu.

Situam-se, em frente, a Ilha de Natividade e a Pedra do Lorena, de forma elipsoidal, que apresenta o cume, o solais e o declive da banda do sul, superfície esfoliada, desgastada, temporizada. Seguem-se-lhe, também não distantes da ribanceira esquerda do Rio Doce, as pedras dos Cágados, duas, e a do Resplendor com aspectos semelhantes aos da primeira, possuindo, porém, nos seus sopés, mata virgem vigorosa.

É navegável por pequenas e grandes canoas o Rio Doce, do Manhuaçu para cima até à Cachoeira de Santana, antes da qual deságua o ribeirão do mesmo nome.

Nesse trecho de quarenta quilômetros a floresta cobria, sem interrupção, todas as pequenas bacias de seus tributários que nascem na Serra dos Aimorés, que se liga à do Sousa, abaixo da foz do Rio Guandu, prolongando-se com a direção geral paralela à do rio.

Na margem direita a Pedra da Vaca era o extremo da mata secular. Daí para diante dominam capoeiras e capoeirões até o Ribeirão da Lapa, que desemboca, cerca de seis quilômetros, além do córrego da Onça, situado próximo da atual estação de Crenaque, de pequeno curso, procedente da serra de igual nome, notável pelas suas profundas rugas e vastas esfoliações.

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Acima da Pedra da Vaca desemboca o Rio dos Quatis. Aí havia dois ou três hectares de capim-gordura. Seria provavelmente uma posse abandonada. Chega-se à vazante das Preguiças e depois a um sítio em que as flechas das ubás se confundiam com as das canas-de-açúcar.

Nele residia uma família de pretos. O seu chefe era o Sr. José Lopes ou o seu Lopinho, como era conhecido.

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Depois dos Lopes vêm as capoeiras e uma reboleira de mata virgem e, ainda, mais alguns hectares de capim-gordura entremeados por uma vegetação enfezada em que sobressaem os arre-diabos, as criciúmas, as primaveras. Esse lugar e a ilha fluvial defronte dele, têm a denominação de Boa Vista. Os sítios desolados seguem uns após outros. A atual cidade de Resplendor era um deles. Não há belezas naturais. Só o rio faz exceção.

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Agora os espigões avançam sobre o rio, o vale se reduz, estreita-se. Desapareceram os araxás. No encurvamento da montanha entram as águas do Ribeirão de Santana e precipita-se morro abaixo, refervendo num poço e disparando para o caudal.

Poucos metros de distância dessa piscina, secularmente cavada na pedra, mora uma viúva idosa, a D. Maria. Os filhos estão criados. Têm as suas habitações, não muito longe dali “no alto da serra” dizia ela. Faz-lhe companhia um papagaio falador, irrequieto. Conversa com o forasteiro com desembaraço sem esquecer, entretanto, de falar ao papagaio, sempre ensinando-lhe. Percebe-se, dentro em pouco, que é aquela ave querida a sua mascote e a sua única distração.

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Além do Ribeirão de Santana os espigões apartam-se e dão passagem ao córrego dos Carneiros. Nas fraldas dos morros antes e depois desse humilde curso, de inclinação suave, num alto plano há uma capelinha e várias casinholas espalhadas desordenadamente e, adiante desse recanto aprazível, a montanha dilata-se até à torrente que se escoa vingando uma garganta, formando a importante Cachoeira de Santana.

O espetáculo é grandioso, empolga e atemoriza. A massa líquida avança com violência, rola em declive forte, despedaça-se de encontro ao pedregulho, fervilha, espuma e catadupeja. É a luta entre os elementos da natureza, feroz e indomável, estimulada e turbilhonada. E quando os choques se entrecruzam, se repetem ou se associam, chofram escumas e gotículas que, atravessadas pela luz solar, apresentam irisação — fenômeno sempre belo e admirado.

Logo acima da cachoeira o Ribeirão do Barroso despenca-se pelo declive da rocha nua, refrescada pela água cristalina cascateante, e incorpora-se à corrente agitada do rio.

* * *

Vencido o cachoar das águas revoltas que batem, iradas, os rochedos em desagregação lenta, secular, o rio corre ora remansoso, ora encrespado, conforme a natureza do fundo ou o sopro que brinca na superfície.

Na margem direita, junto do barranco, começa a capoeira que se insinua no capoeirão, limitado pela mata virgem, galgando a montanha de encosta branda. É um vasto anfiteatro povoado de bem-me-queres, de arnicas, de assa-peixes… de andás-açus, janaúbas, jaracatiás… óleos-vermelhos, canelas, jatobás… Descuidados passeiam nesse recinto tatus, veados, antas… Fecha o arco longo desse espaço magnífico a ponta da mata virgem, ainda poupada, que vem findar-se no rio.

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E depois nova perspectiva se abre. Na beira do caudal, que agora flui tropeçando nos escolhos aflorados, viçam as candiubás vindo, em seguida, capim-gordura e outras gramíneas em concorrência com os arbustos da capoeira fina.

Dois ou três moradores aí mantêm pequena criação de cabras. A floresta, afastada, apenas se lobriga.

Um espigão vem aproximando-se do rio. Avizinha-se a foz do Ribeirão do Cachoeirão.

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O Ribeirão do Cachoeirão cascateia em parte de seu curso e, nas proximidades da foz, suas águas aos saltos atiram-se ao penhasco e turbilhonam escapando-se, por fim, para desaguar no rio.

Na margem direita encontrava-se a melhor casa das poucas existentes do Santana até à Serra da Onça. Era coberta de tabuinhas, tinha quatro cômodos, uma varanda e água perto da casinha trazida em bicas de imbaúba.

Daí para cima, de novo os espigões se distanciam e quando se acercam da torrente defrontam com a cachoeira do M (Eme) ampla e merecedora da atenção de diversos excursionistas. Passado esse estorvo o rio continua atormentado pelas itaipavas, apresentando, porém de espaço a espaço, trechos navegáveis. Logo depois do córrego da Onça percorre, célere, um valo profundo, trabalho milenar feito na rocha compacta.

Para diante, os belos quadros panorâmicos do caudal rareiam. Dominam as capoeiras pobres e a mata que muito se parece com um carrascal. O terreno é pedregoso, e a rocha dura aflora temporizada em muitos pontos. As cercanias do rio não ganham novo aspecto até um pouco acima do córrego da Lapa. Para frente, porém, surgem as matas admiráveis, portentosas.

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Depois de receber o córrego da Lapa o rio serpeia através de florestas de viço exuberante, as quais se prolongam além da foz do Piracicaba.

Nesse grande intervalo de mais de duzentos quilômetros, encontram-se as clareiras de Cuieté, Cachoeirinha, Derribadinha, Figueira, Baguari e Cachoeira Escura. A exceção de Figueira, as outras não são povoadas. É um deserto verde em que não habita homem civilizado. As abertas são os oásis para os poucos que aventuram a arriscada travessia, em canoas, navegando águas arrepiadas, ou contornando, arrastando-se por terra nas itaipavas e cachoeiras bravas e, de pé ou a cavalo, de facão em punho, rodeando árvores estendidas ou densas jaribaras.

Contam-se fatos, lendas arrepiantes: — A canoa carregada afundou. Ninguém sobreviveu. O remoinho todos engolfou nas águas espiraladas do rio. Ou: — O caixeiro-viajante, o cometa, levava dinheiro e o camarada sangrou-o de morte, saqueou-o e desapareceu…

* * *

Os afluentes do rio que varam a selva temida e respeitada, também por ele varada, são, entre outros: o João Pinto Grande, o Cuieté, o Capivara, o Batatas, o Traíras, o Eme, o Palmital, o Laranjeiras, o Santa Helena, o Suaçuí Grande, o Capim, o Figueirinha, o Suaçuí Pequeno, o Caramonho, o Corrente, o Santo Antônio, o Piracicaba. Alguns são de curso longo, de bacia ampla como: o Cuieté, os dois Suaçuí, o Corrente, o Santo Antônio e o Piracicaba.

As cachoeiras que não devem ser esquecidas são: a de Figueira, a de Baguari e a de Escura. Inúmeros são os rebojos, as itaipavas, os reveses.

As ilhas ponteiam o rio, sendo verdadeiramente notáveis a de derribadinha e a de Figueira.

* * *

Vimos que, no princípio deste século, dos oásis do deserto verde, só Figueira era habitada. Havia ali um punhado de casas, edificadas na margem esquerda do Rio Doce. Algumas cobertas de telhas. Os seus moradores usufruíam magnífico painel ímpar e grandioso. A jusante da cachoeira a areia da coroa beijada pelas águas batidas, arejadas, e descingidas do estrangulamento do fundo rochoso, que assoma aqui, ali, além e em toda parte do leito, e, depois, remansosas, oferecem banhos reconfortantes, inesquecíveis. Na margem oposta a floresta vai subindo o aclive que, mais e mais, se acentua até quando a montanha temporizada apenas permite vida aos talófitos. Trepado, porém, o solais atingindo o cume, volta a aparecer a mata virgem que viceja, encosta abaixo, em todas as outras direções.

E assim se caracteriza a serra de vastas proporções. É a decantada Ibituruna que, anos depois, inspirará ao poeta Osvaldo Soares da Cunha, “o moço que vive sob a ação da autocrítica, e este é que é o rumo certo”, segundo o Dr. Mário Matos, festejado escritor mineiro, o soneto:[ 126 ]

IBITURUNA

Alteroso penhasco de granito,
Ibituruna, fortaleza ingente,
A cuja face eu arrojei meu grito
De desafio, em minha infância ardente.

E a cujos pés em vão estruge, aflito,
O Rio Doce, em turbilhão fremente,
E sobre quem as raivas do Infinito
Tombam, desde a Criação, inutilmente:

Fosse eu qual tu, rochedo inacessível
Que com a fronte soberba a altura invades!
Tu que, sereno, intrépido, terrível,

Através, o fragor das tempestades,
Segues, sempre de pé, sempre invencível,
E hás de chegar ao termo das Idades!…

E a Ibituruna — a “terra, alta, preta ou Montanha Negra”,[ 127 ] conforme esclareceu o Capitão Cajé da tribo dos Botocudos — é marco milenar. É o mirante gigantesco de onde se dominam cenários inolvidáveis, incomparáveis.

Do alto da serra, a beleza do panorama é extraordinária. A vista projeta-se, no agudo esforço de penetração, em serranias longínquas envoltas em névoa violácea. Cimos alcantilados, batidos de sol, faiscando a dezenas de léguas. Daqui de cima tem-se uma idéia exata da opulência florestal do Vale do Rio Doce. Os maciços vegetais estendem seu tapete verde pelas planuras e serras sem fim.

E a montanha, resultado de transformações geológicas, ali está altaneira, sujeita, ela própria, a novas mudanças para testificar impassível o desfilar lento de fenômenos de toda natureza. Desgasta-se, secularmente, por ações físicas, químicas e biológicas, e presencia o que se passa em seu derredor no tempo e no espaço.

Não há muito testemunhou as hordas selvagens pelejarem umas contra as outras, ou contra os invasores — os civilizados — e estes, agora, lutam, peleam para estabelecer a civilização invadindo, devassando e ateando fogo para tudo comburir. Também ela será, em sua superfície, devorada pelas chamas, mas dar-lhe-ão uma ficha de consolação que é a voz do progresso — o apito da locomotiva.

* * *

No primeiro decênio deste século, quando o Engenheiro Schnoor fez o reconhecimento do traçado da estrada de ferro, passou pelo arraial de Figueira que já era um longínquo distrito de Peçanha, criado em 1888, sob a denominação de Santo Antônio do Bom Sucesso. O mameluco Antônio Máximo de Oliveira, o Cabo Máximo, foi o benemérito fundador do povoado, encravado na mata, mas não perdido, porque o caudal mestre e a montanha negra de notável elevação marcavam o caminho seguro e o rumo certo para atingi-lo e eram suas amarrações naturais e indestrutíveis.

Cabo Máximo era homem forte, tenaz e perseverante. Provinha de mestiçagem luso-botocuda. Conseguiu arredar o gentio que habitava o Rio Doce entre o Suaçuí Grande e o Corrente. Com a pacificação da zona chantou ele a baliza, a estaca que brotou vacilante, originando, todavia, os primeiros lampejos de desenvolvimento social.

Não tardou e o Cabo Máximo conquista o apoio do Tenente João Coelho e do Professor Ilídio que, vindo de Guanhães, parou no núcleo de Chonin, sob a direção do Padre Joaquim Gomes da Silva Coelho.

Em relação a esses três vultos pioneiros de obra tão meritória registra o cronista de Figueira, Joaquim Campos do Amaral: “Entre o Professor Ilídio, o Tenente João Coelho e o Cabo Máximo formou-se uma forte corrente em prol da catequese e civilização dos indígenas e proteção aos exploradores que procuravam se fixar à terra.” Cada qual labutava a seu jeito por um mesmo ideal. O mameluco atraindo os indígenas para o arraial que surgia; o tenente, servidor da pátria na Guerra do Paraguai, pronto sempre a rechaçar pelas armas os selvagens insubmissos e agressores; e o professor, na sua modéstia invejável, na sua prudência dia a dia retemperada, e na sua dedicação inigualável, entregando-se de corpo e alma à missão nobilíssima de alfabetizar crianças e adultos.

Os esforços reunidos desses três varões patriotas e resolutos prognosticavam a vitória do empreendimento ousado e, cedo, o arraial de Ibituruna começou a progredir.

* * *

E logo acima de Figueira volta a dominar a floresta virgem agora não mais habitada pelos Aimorés, mas pela fauna opulenta que barulha o matagal, quebrando a quietude com pios, com gargalhadas esquisitas, com garganteios suaves ou estridentes, com guinchos agudos, com roncos indefinidos, com agradável guizalhar , com apavorante silvo, com murmuroso coaxo…

Se alguém caminha à ventura margeando o rio, depara-se com outro — o Suaçuí Pequeno. Não é fácil atravessá-lo. Só em canoa se pode fazê-lo porque, a nado, há o risco de perder a vida.

Depois de vencer inúmeros obstáculos, esperados uns, imprevistos muitos, consegue-se chegar a Baguari.

O Cabo Máximo dedicou toda sua atividade à fundação, ao desenvolvimento do arraial situado à margem esquerda do Rio Doce, defronte de Ibituruna no lugar que, primitivamente, se chamava Porto de Figueira dos Botocudos. Antes, porém, de residir em Figueira, foi ele o comandante de um destacamento em Baguari e a esse fato se refere o cronista[ 128 ] nos seguintes termos:

Por seu procedimento exemplar conseguiu influir no ânimo de seus superiores ao ponto de criarem um destacamento em Baguari, filiado ao de Joanésia, onde promovido a cabo, veio dar proteção e garantia aos exploradores e nativos, procurando com a força da polícia rechaçar e dominar os Aimorés, que vinham de baixo fazer chacinas, e com sua influência benéfica obter medicamentos para combater as febres e feridas malignas que atacavam o povo. Só deixou a farda, quando pôde tranqüilamente estabelecer-se no cultivo das terras no lugar onde se acham os ‘Cabral’, tendo procurado sempre, com seu espírito de disciplina e cordura, aconselhar, harmonizar e resolver as questões entre uma população nascente e entregue ao léu da sorte, pela falta absoluta de autoridades de qualquer espécie. Viveu no amor da terra que o viu nascer e morreu legando à mesma uma descendência nobre em sentimentos, soldados da pátria e filhos tementes a Deus.

Depreende-se que foi o Cabo Antônio Máximo de Oliveira o homem que, havendo rechaçado ou atraído à civilização os índios que erravam a região compreendida entre o Rio Doce, Suaçuí Grande e o Corrente, preparou a vida, garantiu a entrada dos destemerosos desbravadores, que vieram, depois, e fixaram as bases da civilização que, no futuro, seria ali introduzida com êxito, com entusiasmo.

A semente lançada na terra embora ainda não de todo desmaninhada, produzirá frutos deliciosos. Foi contagiante a magnífica ação do Cabo Máximo que um dia terá, por certo, os seus feitos relembrados em um monumento sob a guarda da montanha imponente.

E Baguari do cabo mameluco não se desenvolve. No princípio do século estava abandonada. Campeava pequeno trato de capoeira e, em seguida, a mata virgem, o deserto verde e hoje, o poeta que exalçou a invencibilidade da Ibituruna no verso “Segues, sempre de pé, sempre invencível” canta o seu Baguari com “imensa tristeza” e com “vontade de chorar!”

BAGUARI[ 129 ]

Minha terra tão sem glória,
tão humilde e merencória,
Baguari, meu Baguari!
Contemplando a natureza,
hoje que imensa tristeza,
estou achando isto aqui.

Devagar, absorto e mudo,
vagueio os olhos por tudo,
fico a lembrar, a lembrar…
Dentre as névoas da distância
aparece a minha infância:
— que vontade de chorar!

…………………………….
……………………………
……………………………

Era uma vez o Passado
— como tudo está mudado,
no meu velho Baguari!
Contemplando a natureza,
hoje, que imensa tristeza
estou achando isto aqui!…

Baguari, primeira preocupação do Cabo Máximo, foi o baluarte de onde partiu a tropa aguerrida para combater os selvagens em correrias, ameaçadores e terríveis e de onde, também, voou a palavra de paz — o convite, o chamamento — para conduzi-los à vida sedentária, à civilização. Esse objetivo foi alcançado e está representado no progresso de Figueira. O centro irradiador e benfazejo continuou, porém, insulado na mata, apesar da afamada cachoeira de potencial anotado e proclamado. E Baguari, no princípio do século estava despovoado. De Roberto Soares, de inesquecível memória, avô de Otávio Soares Ferreira, pai do poeta Soares da Cunha, recebeu assistência e carinho, mas apesar disso não progrediu, é a terra “tão sem glória, tão humilde e merencória” do vate terrantês, mas um dia poderá ser um grande centro industrial. Possibilidades para isso não lhe faltam. Os “vinte mil cavalos de força”,[ 130 ] não há dúvida, serão aproveitados.

De Baguari, para cima, o Rio Doce continua esbarrando em rochas primitivas. Apresenta, todavia, estirões navegáveis.

Alcança-se a foz do caudaloso Corrente e adiante será construída, anos depois, a estação da estrada de ferro — Pedra Corrida. Por toda parte, em ambas as margens, quer nos trechos em que os espigões vinham morrer no rio, quer nos de vargedos, a floresta virgem era portentosa. Acima de Pedra Corrida a peroba, o jacarandá e uma infinidade de madeiras-de-lei pululavam de modo impressionante. Nas vizinhanças do barranco, nas várzeas, nos charcos os palmitais estadeavam as palmas espaventosas que o vento rugitava.

Agora as colinas, os montes, se aproximam do rio, e rompendo passagem, serpenteando vagaroso, vem nele desaguar o Santo Antônio, profundo e volumoso.

* * *

O Rio Doce oferece, daí para cima até à Cachoeira Escura, franca navegação. Em quase todo esse trecho os espigões fenecem na corrente. A mata revela-se com a sua soberbia já descrita.

Salm de Miranda refere-se à Cachoeira Escura e afirma que ela já foi

estudada e avaliada em trinta mil cavalos de força; ali o rio se estreita, correndo apertado entre morros e despeja em dois saltos consecutivos, o primeiro de 25 e logo o segundo de 3,5 metros de altura; esta cachoeira foi objeto de cogitação para a eletrificação da Estrada de Ferro de Vitória a Minas, e nela morreu em 1830 o famoso naturalista alemão von Sellow.

Diversas pessoas têm morrido afogadas a jusante dessa queda de água. Uma piscina ampla e com aparência de não apresentar perigo seduz o banhista que, descuidado, cai no rebojo e por mais que se esforce não consegue evitar o sorvedouro e é colhido pela morte.

* * *

Nas proximidades dessa cachoeira havia uma clareira na floresta fechada, que se prolongava muito além da foz do Piracicaba. O traçado da estrada acompanhará este curso e as matas só diminuem de magnificência do Rio Calado para cima. Antes de Antônio Dias o capim-gordura e as capoeiras de tipos diversos vão surgindo e trepam às montanhas de encostas fragosas.

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NOTAS

[ 125 ] Carlos Frederico Hartt, obra citada, p. 117.
[ 126 ] Acaiaca, Revista de Cultura editada em Belo Horizonte, nov. 1951, p. 74.
[ 127 ] Acaiaca, obra citada, p. 16. Joaquim Campos do Amaral em artigo intitulado História de nossa terra.
[ 128 ] Joaquim Campos do Amaral, obra citada, p. 15.
[ 129 ] Osvaldo Soares da Cunha, obra citada, Acaiaca, p. 66.
[ 130 ] Salm de Miranda, obra citada, p. 19.

[Reprodução da primeira edição publicada pela Livraria e Editora José Olympio, Rio de Janeiro, em 1959, como parte da Coleção Documentos Brasileiros. Publicado originalmente no site em 2004.]

Ceciliano Abel de Almeida (autor) foi engenheiro da Estrada de Ferro Vitória a Minas, tendo trabalhado nos primórdios de sua construção, sendo também responsável por importantes obras de infraestrutura no Estado. Foi o primeiro prefeito de Vitória, ES, professor de ensino secundário no Ginásio Espírito Santo e primeiro reitor da Universidade do Espírito Santo, quando de sua fundação como instituição estadual.

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