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O desbravamento das selvas do Rio Doce (Memórias) – Bugres III

Bugres

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CAPÍTULO III

Sugestão dos índios. “Daqui não sairei.” O livro de Frei Jacinto. Ataques dos Pojichás. Flagelo do Mucuri. Dois mil e quinhentos indígenas. Sarampo e febres. “Você morrerá depois irei eu.” O bugre chorou. Flechados os missionários. O chefe Pojichá volta a ser cruel. Ataques repetidos. Remanescentes da terrível tribo. Presentes. Apertados abraços. Foi infeliz o Dr. Portela.

Depois de haver Frei Serafim Gorízia ordenado que derribassem a mata virgem em grande trato de terreno, no Rio São Mateus, ouviu informes, que lhe deram os índios Potões, que distante dali cerca de quatro léguas o lugar era melhor, “mais fértil, rico de aguadas e com abundantes caça e pesca…”[ 148 ] A princípio resistiu o missionário a ceder à sugestão dos índios mas sendo contínua a insistência deles que, por certo, conheciam as brenhas em que viviam, deu-se por vencido e, em 19 de fevereiro de 1873, ele, “seu fiel companheiro e sua estranha comitiva chegaram ao alto da terra que divide as águas do Itambacuri e do córrego de Areia”.[ 149 ] Deslumbrado pelo panorama do Vale do Itambacuri Frei Serafim considerou o lugar, como indicado pela vontade de Deus, para nele “plantar o marco da fundação do Aldeamento e a tenda. de seu apostolado”, e inspirado e com acento profético exclamou: “Daqui não sairei mais.”[ 150 ]

Não é nosso intuito, escrevermos a história do município do Itambacuri e a da catequese dos silvícolas empreendida pelos missionários Capuchinhos, já escrita por Frei Jacinto de Palazzolo, sob o título Nas Selvas do Mucuri e do Rio Doce, obra em que ele ressalta as figuras dos heróicos fundadores de Itambacuri, Frei Serafim Gorízia e Frei Angelo Sassoferrato.

Revelou a ação civilizadora desses Capuchinhos Paulo Pinheiro Chagas, mencionado por Alceu Amoroso Lima, que fez a Apresentação do livro de Frei Jacinto, declarando, no fim, que

ele presta com isso um verdadeiro serviço à história religiosa do Brasil, realça os méritos dessa admirável ordem de São Francisco em nossa terra e traz uma contribuição preciosa à história da catequese de nossos silvícolas.

Inspirando-nos no livro de Frei Jacinto vamos continuar nossa rápida exposição sobre os indígenas existentes na área contornada ao Norte, Oeste e Sul pelos Rios Mucuri, Itambacuri, Suaçuí e Doce.

A partir de 1861 cessam as atividades de Teófilo Otoni no Vale do Mucuri. Os aborígines voltam para a floresta e os Pojichás recomeçaram os ataques aos civilizados sendo uma de suas primeiras vítimas o engenheiro Roberto Scholobach, incumbido de dirigir consertos na estrada de Santa Clara a Filadélfia.

Fundado o Aldeamento do Itambacuri corresponderam aos instantes convites dos missionários as tribos dos Craacatã, Cujã, Jerunhim, Nerinhim, Trindade, Pontaret, Hen, Jakjat, Rimré, Kremum, Nham-nham, Camri, Pmacgirun, Poton, São Mateus, Peixinho, Bananal, Maurício, Catolé Grande e São José. Atraídos também pela bondade dos padres outros selvagens como os Ponchão, Pmac e Nac-Rehé vieram para o Aldeamento. Alguns destes, porém, regressaram para as matas próximas à cidade de São Mateus.

Frei Serafim e Frei Angelo em 3 de dezembro de 1882 dirigiram ofício ao Diretor-Geral dos índios da Província do Itambacuri, em que declaravam:

Podemos afirmar que, se tivéssemos sido atendidos, hoje já estariam aqui aldeados por sua escolha e livre vontade os botocudos mais temidos, Crecmuns e Crechés vulgarmente chamados os Pojichás.

Essa tribo afamada pelas suas correrias habitava, de preferência, as matas do Vale do Rio Cotaxé ou braço norte do Rio São Mateus e era considerada como o flagelo do Mucuri. Nunca os índios dessa maloca ficaram definitivamente integrados ao Aldeamento dirigido pelos Capuchinhos. Frei Serafim lastima e proclama a atitude sempre hostil dos Pojichás e em seu relatório de 31 de dezembro de 1895, depois de se referir às baixas causadas pelo sarampo diz:

Com relação aos ferozes Pojichás, faço-vos notar, de passagem, que a eles e seus vizinhos, achando-se em estado quase selvagem, sou forçado a permitir-lhes, uma ou duas vezes no ano as caçadas na floresta bruta do São Mateus, para não adoecerem e não ficarem desgostosos. Alguns, porém, ficam trabalhando, como aconteceu ainda há pouco com dois jovens filhos do Capitão Vackman.

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Os bárbaros a1deados eram numerosos. Satisfeitos, os missionários começavam a colher os frutos depois de, pacientemente, terem vencido imensas dificuldades. “Dois mil e quinhentos indígenas viviam em paz e casavam-se com civilizados.” Os bravos Pojichás foram localizados nas terras denominadas “Largo de Santo Antônio”.

A harmonia não durou por muito tempo. O trabalho perseverante dos padres — mestres em fazer prosperar e engrandecer o Itambacuri — vai ser perturbado. Os civilizados, que penetravam então nas matas ao sul do Aldeamento, levaram possivelmente o sarampo e febres de mau-caráter, que se alastraram sobre os índios causando-lhes a morte, assim de crianças como de adultos, que faleciam principalmente porque se banhavam nas águas do rio, quando lhes afogueava os corpos o calor da febre.

Todos se entristeceram com o número elevado de óbitos e mais ainda os selvagens, e isto ensejou aos inimigos dos missionários tentarem pôr fim à catequese.

A trama foi organizada e o bugre Querino Grande, de “índole falsa, indócil e má” como chefe da tribo Potã, conseguiu reunir “os piores e mais atrevidos índios de Itambacuri”. Explodiu a rebelião, em 24 de maio de 1893, sendo flechados Frei Serafim Gorízia e Frei Angelo de Sassoferrato. O primeiro, atingido por uma flecha arremessada pelo organizador da revolta, livrou-se da morte por um triz, e o segundo foi alvejado pelo selvático Manuel Pequeno.

Os chefes dos rebelados atacaram de emboscada os missionários, que de nada suspeitaram, apesar de palavras e gestos de alguns bárbaros, os quais interpretados maldosamente teriam revelado aos padres a traição que estava sendo tramada. Assim Querino ao receber tecidos de Frei Angelo, que lhe exortou a trabalhar para deixar os filhos “agasalhados e bem providos, pois todos temos que morrer”, retrucou-lhe arrogantemente: “sim, todos devemos morrer, mas você morrerá, depois irei eu.” E Joaquim Vackman, “o chefe da mais bárbara e valente tribo — a dos Pojichás”, não aquiesceu no reiterado convite dos traidores aos missionários e resolveu retirar-se para a mata, e quando se despediu de Frei Serafim disse-lhe “palavras misteriosas que denunciavam algum perigo e chorou como uma criança”. Só depois se recordou Frei Serafim das lágrimas, que lhe serviam agora de consolação ao “coração amargurado”.

Depois da revolta em que o chefe dos Pojichás se alteou no conceito dos missionários não assentindo em os trair, embrenharam-se eles nas matas do Rio São Mateus e, quando reapareceram, assassinaram os índios do Aldeamento. Daí para diante continuaram a “atacar, roubar e matar”. E Joaquim Vackman, após se ter recomendado pela sua resolução de fidelidade aos padres, tornou-se cruel como outrora e instigava sua maloca a praticar toda a sorte de crimes.

Atacaram os bugres em 1905 trabalhadores da E. de F. Bahia e Minas entre os trechos das “estações de Bias Fortes, Francisco Sá e Presidente Pena”, e O Mucuri, em artigo em que analisava a insegurança dos que eram forçados a trabalhar na região por eles, de quando em quando, devastada, sugeria: “A providência a ser tomada contra eles deve ser ou o seu total aniquilamento, matando-os e aprisionando-os o que é desumano e difícil, ou mais uma vez tentar-se a catequese.”

Ainda em 1909 os Pojichás atacaram e mataram uma família de lavradores no córrego do Ouro, afluente do Rio Todos os Santos, e somente em agosto se obteve a paz com os dois Capitães Paulo Pojichá e Joaquim Vackman Pojichá, a qual foi rota pelas “mulheres velhas que protestaram não querer ficar no Itambacuri”. Finalmente em 1910 os remanescentes da grande, valente e terrível tribo dos Pojichás foram recolhidos pelos Capuchinhos, que “desarmaram os últimos silvícolas do Itambacuri”.

É, entretanto, nesse ano que o Dr. Carlos Prates, Diretor de Agricultura, em relatório apresentado sobre serviços de colonização, no município de Teófilo Otoni, ao Secretário de Agricultura de Minas Gerais, declara que em companhia do Dr. Alberto Portela, Inspetor do Serviço de Proteção aos índios, visitou

na casa de residência dos padres [no Itambacuri], cerca de cinqüenta índios, quase todos civilizados, das tribos Potã, Nac-ne-nuc, Poté, etc., sendo que, apenas 13 adultos e alguns menores, eram ainda selvagens e pertenciam à tribo dos Pojichás.

Acompanhavam-nos o velho Capitão Joaquim, que não falava o português.[ 151 ] Fez-lhes o Dr. Portela larga distribuição de presentes — chapéus, roupas, machados, facões, miçangas…

Os índios [observa o Dr. Prates] mostravam-se satisfeitos manifestando-se muito camaradas do Dr. Portela, principalmente o Capitão Joaquim. Como sinal de amizade davam-nos fortes e repetidos abraços que, dificilmente, se suportavam.

E Frei Jacinto resume:

O Dr. Portela foi incumbido pelo Governo Federal de organizar naquela zona o Serviço de Proteção aos índios e localização dos trabalhadores nacionais. Encontrou-se com os selvagens em casa dos Padres Diretores e dando-lhes presentes recebeu deles apertados abraços.

Guiado o Dr. Portela “por um intérprete fornecido pelos Padres, levou-os às matas de São Mateus, com o fim de fundar uma colônia, mas não lhe sorriu a sorte, foi infeliz na sua empresa e acabou desastradamente seus dias.”[ 152 ] Foram, como salientamos, enormes as dificuldades encontradas por Teófilo Otoni, pelos Capuchinhos e por Dr. Alberto Portela, todos cheios de bondade, quando buscaram estabelecer pazes definitivas com os aborígines. Quer Teófilo Otoni, o querido Capitão Pogirum, quer os zelosos missionários, quer o Dr. Portela, cedo falecido, todos experimentaram dias infaustos nessa obra de incomparável relevância.

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NOTAS

[ 148 ] P. frei Jacinto de Palazzolo, Nas selvas do Mucuri e do Rio Doce, p. 67.
[ 149 ] Idem, ibidem.
[ 150 ] Idem, ibidem.
[ 151 ] Frei Jacinto, op cit., p. 285 (Relatório do Dr. Carlos Prates).
[ 152 ] Frei Jacinto, op cit., p. 287.

[Reprodução da primeira edição publicada pela Livraria e Editora José Olympio, Rio de Janeiro, em 1959, como parte da Coleção Documentos Brasileiros. Publicado originalmente no site em 2004.]

Ceciliano Abel de Almeida (autor) foi engenheiro da Estrada de Ferro Vitória a Minas, tendo trabalhado nos primórdios de sua construção, sendo também responsável por importantes obras de infraestrutura no Estado. Foi o primeiro prefeito de Vitória, ES, professor de ensino secundário no Ginásio Espírito Santo e primeiro reitor da Universidade do Espírito Santo, quando de sua fundação como instituição estadual.

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