Voltar às postagens

O desbravamento das selvas do Rio Doce (Memórias) – EFVM II

Estrada de Ferro Vitória a Minas

___________________________________________

CAPÍTULO II

A família do chefe. A hospitalidade praxista. A dedicação dos médicos. Justos elogios aos trabalhadores. Visita ao povoado de muitos nomes; a igreja. Exame de perfis e projetos. Preparo do leito da estrada. Fornecimentos difíceis. Mina encravada, trabalhador maneta. Rampa máxima, supressão de túneis e muros. Referências a engenheiros. O Dr. Schnoor, o auxiliar, o pagador e a variante de Cariacica. A construção além de Lauro Müller. Crítica. Caminho de serviço, um arremedo! Garganta do Guasti: o bombardeio, os cavouqueiros e os marreteiros. Minúcias a respeito dos trabalhos. Crianças radiam felicidade. A nobreza da profissão do engenheiro. Discursos de inauguração.

O engenheiro Pedro Bosísio, chefe de seção da construção, acompanhava-se de um grupo de auxiliares e recebeu-nos com mostras de muita simpatia, que se dilatou quando lhe dissemos que havíamos sido colega de um de seus irmãos e disse-nos:

— Com a família vai o senhor ser nosso hóspede. O Esquerdo avisou-nos de sua vinda. Esperávamo-los. Não ficará bem instalado mas aqui na construção está introduzida a praxe de se dar hospedagem aos colegas em trânsito. De boa vontade todos assim procedem. Chegará a sua vez de, também, improvisar recepção e, assim, não se desmente a tradicional hospitalidade brasileira. Dê-me, por favor, o conhecimento de despacho de sua bagagem. Aqui está o camarada para recebê-la e vamos para o escritório, pois que a nossa residência lhe é contígua.

E, dirigindo-se à minha mulher acrescentou:

— Minha esposa não pôde vir à gare. Mandou nossa filha única, para fazer suas vezes e carregar o menino. Ambas ficarão satisfeitíssimas, porque vão ter ocasião de pegá-lo, de acariciá-lo. São loucas por crianças — e voltando-se para nós — o senhor não seguirá amanhã. Hoje mostrar-lhe-ei as plantas, os perfis, e os projetos das obras-de-arte do trecho da construção sob minha direção. Amanhã o senhor visitará em minha companhia os trabalhos de terraplenagem, de alvenaria de pontes e bueiros. Assim o senhor avaliará dos esforços aqui empregados no barateamento das obras, o que é a minha maior preocupação, pois desejo satisfazer, plenamente, à diretoria em suas reiteradas recomendações de economia e de produção máxima. O senhor verá como os orçamentos são escassos, como tudo se faz para diminuir o custo da construção. Isto é uma escola de economia em que, freqüentemente, se sacrifica a parte técnica. Enfim, devo dizer-lhe, aqui se despende dentro de rigorosa fiscalização, e prepare-se para proceder nessa norma e granjear a simpatia dos dirigentes da Companhia. Estamos chegando. Vamos ter tempo de praticar, ainda, esse assunto.

* * *

A família Bosísio tratou-nos com gentileza inexcedível. Tudo providenciou para agradar aos hóspedes, que sentiam enleamento justificável.

Durante o almoço o acanhamento, que nos acabrunhava, foi pouco a pouco se dissipando. A conversa das senhoras animava-se. Eram donas de casa que se iam entendendo. Os temas domésticos empolgavam-nas. Enquanto o chefe relatava fatos ocorridos nos quais dois de seus auxiliares também participavam minudenciando-os, completando-os, esclarecendo-os.

Ouvíamo-los com muita atenção. Íamos tendo as nossas primeiras impressões para, em breve, concluirmos que o assunto preferido nas conversas, quase exclusivamente, era o da construção da estrada, ou o que se relacionasse com ela, embora remotamente. Logo que se apresentou ensejo perguntamos quais os pontos da linha, já construída, eram considerados insalubres. Foram todos enumerados, salientando-se Alfredo Maia e o Itapirá.

Tivemos a confirmação de que os brejos, os vargedos das proximidades do Rio de Santa Maria eram terríveis. A malária não poupou os trabalhadores e muitos faleceram de seus acessos. Também na mata do Guaraná a tremedeira campeou de bravo. O sulfato de quinina já não servia para evitar os acessos. Os auxiliares confirmavam de cabeça e um ajuntou: “Eu quase morri naquele Itapirá maldito; ainda hoje tenho o fígado avariado”.

E a palestra continuava rica em minúcias, narrando-se com toda a naturalidade as ocorrências com os seus imprevistos. Os médicos da estrada eram excelentes clínicos, diligentes, esforçados. Faziam o que podiam. Recebiam três mil réis por trabalhador, que figurasse em folha, quantia que lhe era descontada, e tinham a obrigação de fornecer-lhe, gratuitamente, os remédios que receitassem. O pessoal técnico e auxiliares não sofriam desconto e a todos, indistintamente, eles socorriam. Eram dignos de consideração e os garimpeiros, entretanto, ainda lhes faziam acusações injustas.

Houve elogios a administradores, a feitores, a trabalhadores, e também, restrições àqueles que eram atrevidos, insubordinados, cachaceiros.

É servida a sobremesa e depois o café pela Senhora Bosísio, dama de finíssima educação, de requintada bondade, e excelsas virtudes.

* * *

No escritório fomos apresentado aos escriturários e ao administrador, homem de confiança, de atividade assombrosa, de energia temida. Veio receber notas de serviço para as turmas que deviam começar a trabalhar no dia imediato, pois que os abarracamentos já estavam feitos.

O chefe de seção ia atendê-lo e opinou: “O senhor, se quiser, pode aproveitar o tempo que vou deixar-lhe desembaraçado para conhecer a vila ou para descansar, enquanto vou providenciar para satisfazer o pedido deste homem”.

Minha mulher entretinha-se conversando cordialmente com a dona da casa. O trato lhano desta conseguira colocá-la à vontade. Parecia que eram amigas de longa data.

Aceitaram o nosso convite para visitar o povoado que já tivera o nome de Colônia de Santa Leopoldina, Guaraná, Conde d’Eu, Pau Gigante e Lauro Müller. Percorremos as ruas. As casas eram cobertas de tabuinhas ou de zinco. Cumprimentavam, alegremente, a senhora Bosísio, que, de passagem, ia apresentando-nos. Havia famílias brasileiras, e, também, italianas e ítalo-brasileiras. A percentagem de pardos era pequena. Dirigimo-nos à igreja sob a invocação de São Marcos. Mais tarde ela será reformada e o Dr. Nolasco far-lhe-á donativos e oferecerá os ladrilhos necessários para substituir o assoalho.

Apesar de certo movimento que se notava nas ruas percebiam-se, todavia, indícios de decadência prematura, sustada, agora, pela inauguração da estação da via férrea a 15 de março daquele ano, e pela presença do pessoal da construção da estrada que ia prosseguindo regularmente.

* * *

— Já separei tudo o que pode interessar-lhe e que desejo mostrar-lhe e vamos passar em revista, os perfis, os projetos de algumas obras de arte e alguns planos cotados — disse-nos o Dr. Bosísio. — Daqui para diante o grade da estrada até o lugar marcado para as oficinas é constituído por um trecho de nível continuação do da estação, por uma rampa máxima, por um patamar, por uma contra-rampa e por outro patamar, onde será construída a estação e preparada a esplanada para as oficinas.

E o chefe, esclarecendo o traçado, pormenorizava:

— A primeira ponte é a do Taquaruçu, já está construída, depois vem um aterro grande, é este — e apontava o perfil. — Não houve empréstimo e o corte é volumoso. Na base deu rocha viva, compacta, e na crista boa terra amarelo-avermelhada. Olhe, repare, entre este espigão e estoutro há um grotão, construiu-se nele um bueiro. Que é da planta desta obra? Ei-la. Obra bem acabada e bem construída. Encontrou-se boa pedra. A calçada está solidamente assentada. A alvenaria dos muros é ótima. Bom cimento, boa areia e magnífica mão-de-obra, de acordo com as especificações, com o traço, rigorosamente fixado. O capeamento é de lajões. Pedras de grã-fina, resistente. Um primor. O segundo espigão é de material semelhante ao do primeiro. As sobras, os matacães extraídos foram atirados nas saias do aterro para protegê-lo. Todo este trecho está concluído e já se está assentando nele a linha. Mas que de dificuldades para se prolongarem os trilhos. Estes, primeiro, não vinham porque não haviam chegado a Vitória, depois já estavam descarregados do navio mas não sabiam o paradeiro das talas de junção, estas apareceram e iam providenciar as plataformas para o transporte. Depois de muito custo vão aparecendo aqui os trilhos e as talas, mas não vêm os pregos. E para que os estorvos fossem completos os empreiteiros de dormentes não faziam no prazo as entregas, conforme o combinado, verbalmente, porque contrato ninguém assina temendo não poder cumpri-lo. Felizmente, agora, há em Vitória, trilhos, talas, pregos e à medida que forem remetidos serão empilhados aqui. Os dormentes com as providências tomadas não faltarão mais. Fiz essa explanação afastando-me do objetivo principal que tenho em vista — o de orientá-lo nos trabalhos da construção desta estrada — porque também é bom que conheça os percalços do engenheiro construtor de uma estrada que parte e percorre uma região em que tudo é difícil. O fornecimento do material — cimento, dinamite, ferramentas… — bem como o abastecimento de gêneros alimentícios são problemas sem solução satisfatória. Estão sempre exigindo a máxima atenção. Por amor deles vive-se preocupado, angustiado. Aqui está o perfil do progresso. Por ele verifica-se o andamento do trabalho, mensalmente. Os dois cortes grandes que lhe mostrei no outro perfil foram terminados em seis meses. Aqui estão eles. O progresso está indicado por seis cores diferentes. Também as turmas, que nele trabalharam, são ótimas. O serviço foi atacado nas duas bocas dos cortes, além das janelas feitas na parte mais alta para desbastá-los da terra. Infelizmente neste primeiro corte houve um acidente motivado por uma mina encravada. O trabalhador, porém, não morreu, ficou maneta. Penalizei-me muito. Dei-lhe o lugar de vigia do nosso pequeno almoxarifado. Esta rampa forte é a do Monte Seco. A linha desenvolve-se na encosta da esquerda para transpor a Garganta do Guasti. É um corte contínuo na rocha dura. Como vê, o serviço está todo sendo executado e está bem adiantado. É um traçado que não se recomenda, reconheço. A linha podia ter outras condições técnicas mais favoráveis se na garganta se construísse um túnel. Aqui, porém, anote bem o que lhe vou dizer: não se admite que se fale ou que se cogite em projetar um túnel. O desenvolvimento, os aclives e declives limites e o raio mínimo ensejam ao engenheiro a possibilidade de suprimir túneis e muros-de-arrimo. O corte da garganta já está bem adiantado. Caminha-se, para a sua abertura, nas duas bocas. Examine o que está feito no perfil do progresso. Ei-lo.

E outros esclarecimentos eram-nos ministrados com minúcias admiráveis de precisão sobre a pedra solta, sobre a rocha em decomposição, sobre a natureza do gnaisse, sobre o moledo, sobre os matacães encontrados nas bocas dos cortes e em suas cristas. Estávamos empolgado pela exposição que ia fazendo o chefe de seção e tínhamos receio de não podermos adquirir um amor tão elevado pela profissão e um cumprimento de dever sublimado a tamanha perfeição. Assaltaram-nos essas reflexões quando tomávamos um café pequeno junto à prancheta em que estavam rolos de plantas, de projetos de toda natureza, de perfis e cadernetas convenientemente arrumados. Depois de pequena pausa e de acesos os cigarros, prosseguiu a exposição do distinto engenheiro, a quem já passamos a render o preito de nossa admiração e respeito.

— Examine o perfil além da Garganta do Guasti. Aí está o grade em contra-rampa. O material dos cortes não é tão sólido. Há mais pedras soltas, mais moledo, menos rocha compacta e o serviço está quase terminado. Este rio é o Piraqueaçu. O pegão de alvenaria da margem direita está concluído e o outro acabar-se-á dentro de um mês, aliás quero ultimar todo o trabalho no prazo de mês e meio, no máximo, pois a diretoria deseja que se inaugure a estação em dezembro, e para isto é necessário que se vá assentando os trilhos, à medida que se constrói o leito como estou fazendo. Todavia o assentamento da linha, o seu lastramento e a montagem da ponte do Piraqueaçu podem ser executados por outro engenheiro. Tenho pressa em retirar-me para dar início à construção de novo trecho. O Duque Estrada e o Emílio Cunha ainda demorarão em finalizar os serviços de suas secções. O Versiani, o seu chefe da exploração a partir de Natividade, está findando a locação de uma variante no trecho do Duque Estrada. O senhor teve sorte, ele é ótimo companheiro e colega muito distinto.

Ia-se acender o lampião belga do escritório, quando se anunciou que o jantar estava pronto. E o chefe, muito gentil, culpando-se, procura justificar-se:

— Muito o caceteei mas penso que o senhor apreendeu o método de nossos trabalhos de construção e estou certo de que isto só lhe trará benefícios. Vamos preparar-nos para o jantar. Está na hora e as donas-de-casa não gostam que se retarde.

* * *

Na mesa, o casal com simplicidade encantadora serve-nos de modo cativante, deixando-nos, entretanto, ampla liberdade na escolha dos pratos de nossa preferência.

A conversa avigora-se, pouco a pouco, e o chefe empenha-se em colori-la e amenizá-la. Fala sobre o Dr. Schnoor, que já havia deixado a Companhia e fora substituído pelo engenheiro Fernando Esquerdo. Elogia-o. — É um grande profissional, é um mestre na engenharia ferroviária e é um notável dirigente. É claro, sensível e emotivo. Deixou-nos instruções técnicas sobre a condução do serviço e o exemplo de um trabalhador incansável. Em atividade ninguém rivaliza com ele. Há passagens que, dificilmente, serão esquecidas. De uma feita necessitava, com urgência, do reconhecimento de uma garganta e determinou a um auxiliar de pouca experiência que o fizesse. Deu-lhe minuciosas explicações e indicou-lhe os aparelhos portáteis precisos. O moço com dois trabalhadores andou o dia inteiro na mata cerrada, atingiu, por fim, o divisor de águas, o selado dos morros, e assinalou cotas, e rascunhou esboços, e durante a noite resumiu, em caligrafia impecável, as observações realizadas e julgou, assim haver dado cabal desempenho às ordens do eminente chefe que tanto o havia distinguido. No dia imediato, cedo, vai ancho ao escritório onde já encontra o Dr. Schnoor, em mangas de camisa, na labuta cotidiana, às voltas com plantas e projetos e que, de supetão, lhe dirige uma torrente de perguntas, depois de haver examinado os esboços e lido o pequeno relatório. O rapaz responde o que sabe e como pode, perturba-se, atrapalha-se, desorienta-se, perde, por fim, a tramontana e emudece. E o Dr. Schnoor exaspera-se, enerva-se, exalta-se e repete as perguntas, e torna a repeti-las, quer esclarecimentos completos, quer a descrição exata do terreno, das vertentes, das contravertentes, da garganta, e o auxiliar, coitado, nada responde, conserva-se mudo… E o Dr. Schnoor, alterado, pede explicações, exige que ele fale, que esclareça, que informe, que elucide e o auxiliar escarmentado, abatido e infeliz, nada responde, zumbriu-se de todo e, apático, conserva-se mudo. Nesse transe avizinha-se o pagador, o Jorge, e afoitamente exclama: “Dr. Schnoor, mande este homem recolher-se à sua insignificância”, e o Dr. Schnoor, de repente: “recolha-se! recolha-se à sua insignificância!” Meia hora depois o ajudante revoltava-se contra o Jorge por haver sugerido ao chefe a frase deselegante com que o expulsara de sua presença, “Mas você está zangado comigo? Se não fora a minha providencial intervenção você ainda estaria naquela sabatina que sublimava a sua ignorância. Deixe-se disso: procedi como seu amigo e vou tentar ainda consertar a má situação em que você ficou”. Durante o almoço veio ao debate o incidente desagradável, na opinião do Jorge, e o Dr. Schnoor cientificou-se da contrariedade do subalterno. Mandou chamá-lo. Calmamente palestrou com ele sobre o reconhecimento que se tornou famoso. Abraçou-o. E o auxiliar aquilatou o bom coração do chefe e a amizade do pagador.

* * *

Levantamo-nos da mesa e enquanto o chefe foi atender o encarregado da tropa que vinha receber ordens de serviço para o dia seguinte, um dos auxiliares da secção dirige-nos a palavra para enaltecer o pagador da Companhia.

— O senhor, um dia, há de conhecê-lo. E será seu amigo. Todos o são. É prestimoso, cavalheiro, leal e inteligente. É delicado, em extremo, e por isso conquista a estima de todos — dos trabalhadores aos chefes. Vou narrar-lhe um fato que se passou entre ele e o Dr. Schnoor e só ele era capaz de tamanha ousadia tratando com um superior de tão alta respeitabilidade. O Dr. Schnoor foi assaltado por dores reumáticas e o médico receitou-lhe e, também, recomendou-lhe uso de massagens. O Jorge, sempre obsequiador, prontificou-se a fazê-las e quando, com a melhor boa vontade, assistia o Dr. Schnoor, gabava-lhe a musculatura, pilheriava, e, à medida que passavam os dias, peteava, patarateava de seus feitos, tomava liberdades, potocava sem constrangimento e contava patranhas assombrosas. O chefe acobilhava-o, indulgentemente, porque isso lhe desopilava o fígado e ria-se bem-humorado. E certa vez, quando Jorge lhe comprimia os músculos, ciciava:

“Quando pretende aumentar meu ordenado?” “Que diz você? Não entendo. Fale alto”. E ele continuava a ciciar. “Por que não fala alto?” “E posso fazê-lo?” “Por que não?”

“Então não se aborreça”.

E com todo cuidado prosseguiu na massagem e, ritmicamente, articulava de modo bem audível:

“Quando vai aumentar meu ordenado? Quando vem o aumento? Por que não quer aumentar?

“O que, Jorge?”

“Quando vai aumentar meu ordenado? Quando vem o aumento? Por que não quer aumentar?”

“Jorge, tome juízo. Você já tem idade para tê-lo”.

Mas a reclamação foi deferida. E naquele mês, ele figurou na folha de pagamento com maior salário.

* * *

O chefe chegou a tempo de ouvir o diálogo rememorado pelo auxiliar, e a decisão humana adotada pelo primeiro engenheiro, que agraciou o pagador prestadio, e passou a julgá-lo por homem capaz.

— O Dr. Schnoor é considerado na classe como notável profissional. A Companhia fez magnífica escolha quando o convidou para chefiar os seus serviços, porque, não há dúvida, ele é de inteligência cintilante, de capacidade de trabalho invejável e bom administrador. Às vezes é impulsivo mas, sem tardança, a reflexão irrompe em seu espírito e é, nessas ocasiões, que mais brilham os seus excelsos predicados morais. O seu tino administrativo freqüentemente surpreende. Haja vista ao exemplo que ele proporcionou com a questão da jaqueira de Cariacica, que assim se pode condensar: A Companhia desejava inaugurar o primeiro trecho da estrada com a extensão de vinte e nove quilômetros a partir de Porto Velho. O Dr. Schnoor, com firmeza, atacou a construção e garantiu que em maio do ano passado seriam entregues ao tráfego a estação provisória de Porto Velho, e as de Cariacica e Alfredo Maia. Aconteceu, porém, que a tangente, em que se ia localizar a estação, passava por um terreno onde uma velha jaqueira ostentando louçanias de nova, seria derribada. O proprietário, como era natural, pretendeu obter indenização da faixa de terreno, que fosse ocupada pela estrada, e da fruteira centenária. Surgiu a pendência, que foi levada a juízo. A Companhia, o proprietário e o presidente do Estado empenharam-se por uma sentença judicial breve, para não ser adiada a inauguração das estações. O veredicto do juiz não tardou e todos ficaram harmonizados. O episódio, porém, despertou a atenção do primeiro engenheiro, que cogitou de engendrar uma providência para ressarcir o montante da indenização. Não hesitou, não titubeou. Mandou estudar uma variante. E organizaram-se plantas e novos projetos. Orçou-se a obra. Comparou-se o novo custo com o do trabalho que já se estava executando e ele concluiu, por essas diligências, que se devia abandonar o serviço, já feito, porque o novo orçamento era bem menor do que o primitivo. O traçado da variante foi aprovado e a Companhia compensada, ainda auferiu lucro na execução do novo projeto. A jaqueira foi respeitada, mas mudou de dono. Assim se revelavam o preparo do engenheiro e a clarividência do administrador. Foi pena ter-se retirado da Companhia. Felizmente teve como substituto o Dr. Fernando Esquerdo, colega moço, de grande talento. Considero-o como meu amigo íntimo, por isso, suspeitas são minhas informações sobre ele.

* * *

Às sete horas trouxeram-nos muares arreados e com o Dr. Bosísio partimos para visitar os trabalhos em execução. Ele tudo nos explicava com minúcias cuidadosas.

— Aqui está a ponte do Taquaruçu. A obra é sólida e bem acabada. As pedras em suas partes externas são apenas apicoadas e não cinzeladas. Não há obras de luxo, não se lavra com o escopro. Não tenho grande confiança neste trecho. Receio que nas grandes precipitações pluviais a várzea se inunde e que o aterro fique submerso embora por pouco tempo. O grade, porém, está acima da máxima enchente, mas esta região é sujeita às mangas-d’água e não se pode assegurar que um dia a linha não fique imersa. Eis um dos cortes sobre o qual lhe chamei a atenção quando examinamos o perfil. Repare a parte que é rocha aberta em caixão. O gabarito é bem escasso. Olhe para cima as rampas, no material menos denso, não são alisadas. Preocupou-me a diminuição do custo da abertura do corte. Observe daqui as valetas de proteção como são simples e com a secção, apenas, suficiente para dar escoamento às águas. Pode haver surpresas, mas cumpro as instruções recebidas. Não há gastos supérfluos.

E assim ia o chefe de secção descrevendo o serviço executado, ressaltando as dificuldades vencidas e salientando suas apreensões, deixando transparecer críticas discretíssimas, que nem sequer eram formuladas. E nossas montarias com passos alentecidos percorriam a vereda que colubrejava pela encosta escabrosa inçada de pedregulho.

E o chefe discreteava ainda.

— Podíamos ter vindo pela estrada dos colonos que percorre o vale por onde serpeia o córrego, mas preferi trazê-lo por este trilho escorregadio, cheio de tropeços e perigos para que ajuíze da diminuta quantia destinada ao que se denomina caminho de serviço. Além disso há outra razão que reputo mais importante. Passando por aqui o senhor aprecia melhor o corte contínuo na escarpa, e como a pedra extraída é projetada na quebrada. Assim não há transporte, o que barateia o preparo do leito que já está, quase, em condições de receber os trilhos.

E sempre discorrendo sobre a construção ele parou e apeou. Imitamo-lo.

— Não o convido para dessedentar-se neste pequenino açude porque, decerto, não está com sede. A manhã está fresca e agradável. Faz mais de uma hora que viajamos e ainda não apareceram, não transudaram as bagas de suor do calor. Mas assunte para o filete de água que se desprende, de cima, resvalando sobre a pedra lisa, e da represa, para baixo, como cascateia parecendo entoar hinos ao Criador e à nossa Terra, e, lá, no fundo, está a colônia do Guasti, do homem que deu o nome à garganta. A montanha, em cuja vertente estamos, apelidaram-na de Monte Seco. O quembembe, ali, onde estão aquelas barracas cobertas de zinco, apresenta uma lombada de declive suave. No lugar delas serão construídas as casas da turma da via permanente. A água está próxima e pode ser transportada para junto das casas, provisoriamente, em calhas de madeira. O clima é magnífico, e o terreno elevado e enxuto resguardará de moléstias os trabalhadores. Montemos os nossos machos e prossigamos a trilha visitando o corte da garganta, a ponte sobre o Rio Piraqueaçu e a estação, obras quase concluídas.

* * *

Acercávamo-nos do local de nosso primeiro objetivo quando escutamos o aviso: “fogo!”

— Paremos — disse-nos o chefe. — Aqui não seremos alcançados pelos estilhaços de pedra e teremos ocasião de verificar, depois, se o desmonte foi proveitoso. Duas turmas trabalham ali — uma em cada boca. Vai ser um bombardeio grande.

Novamente ouvimos o anúncio: “fogo!” Os trabalhadores dispersavam-se correndo. Alguns vinham para o nosso lado. E mais uma vez: fogo! Fogo! Arde!… arde!… arde!…”

E, agora, a sucessão de estampidos: um, dois… três, quatro, cinco, seis… até vinte e nove, contamos. Acabou! cheguem! E o chefe, dirigindo-se a um dos feitores:

— Vinte e nove tiros.

— Não senhor, seu doutor. Foram trinta. — Mas contei vinte e nove.

— Foram trinta, seu doutor. Dois saíram juntos. Tenho certeza, sim senhor.

E o outro feitor acudiu em seu auxílio confirmando:

— Foram trinta. Ele está certo. Dois saíram juntos.

— Está bem, mas vejam se há mina encravada.

— Não há não senhor. Todas explodiram.

— Atenção! Não quero acidentes.

— Não haverá acidentes, não senhor. A dinamite, a espoleta e o pavio são de boa qualidade. Todas explodiram.

Naquele tempo não era, ainda, corrente o uso de detonadora elétrica nem de perfuradora mecânica. Os cavoucos eram feitos pelos cavouqueiros e marreteiros com brocas e marretas.

O chefe convida-nos. Vamos examinar o material extraído. O corte, quer de um lado, quer do outro, estava atulhado de pedras e ele observa:

— O serviço foi bem executado. O transporte é que vai ser penoso, como acontece com todo carrego e descarrego dessa natureza.

Antes de se despedir ele manifesta ao pessoal satisfação, elogia-o, anima-o e aos feitores pergunta:

— Estará terminado este serviço até o fim do mês?

—Vamos fazer força para acabar.

— E o seu doutor nos leva para o serviço novo? É no Rio Doce, não é seu doutor?

— É possível que seja. Se quiserem eu os levarei para onde for, se concluírem a abertura deste corte até o dia trinta e um.

— Então é quase certo que iremos, porque vamos fazer força para vencer esta pedra dura.

Despedimo-nos daqueles diligentes anônimos e em caminho o chefe os enaltece.

— São dois feitores ótimos que conseguiram ajustar essas duas turmas de cavouqueiros e marreteiros ao serviço rude de preparo do leito da estrada em rocha densa. Admiro-os e comigo, felizmente, trabalham de boa vontade. Não deixarei de lhes dar outros serviços.

Marchavam, então, os nossos burros com regularidade e de quando em quando o chefe refreava o seu mulo para considerar o trabalho acabado e minuciava:

— Estes cortes, conforme lhe chamei a atenção quando lhe mostrei os perfis, foram abertos sem muita demora, porque o material a escavar-se era maneiro. A piçarra desagregava-se da massa com a picareta e foi relativamente pequena a extensão das rochas brocadas. Os volumes dos cortes compensaram com os dos aterros. O custo das valetas de contorno e das pequenas obras de arte foi moderado. Tudo neste trecho correu bem.

Distraíamo-nos com os esclarecimentos do chefe e não percebemos a aproximação da ponte senão quando ele nos advertiu do término da viagem com voz disfarçada de comando:

— Descavalguemos.

E sem perda de tempo foi dizendo:

— Veja aquele pegão: deu-me muita canseira na fundação, por isso ainda não se terminou; este edifiquei-o depressa e em base firme, com pouca escavação. A pedra empregada é boa e de pequeno transporte. A areia foi tirada do fundo do rio e é excelente. Apressemo-nos porque são dez horas; senão almoçaremos muito tarde. Vamos à estação. deixemos aqui os animais.

Lá chegados, fez ele sucinta exposição da edificação do modesto prédio e apontou o sítio em que seriam localizadas as oficinas. Regressamos à ponte onde haviam ficado os mus e montados neles percorremos, novamente, o leito da estrada até à Garganta do Guasti. Daí para Lauro Müller preferimos, ao incômodo caminho de serviço, a estrada de tropa ou das colônias. De espaço a espaço deparavam-se-nos casas caiadas de branco abrigadas das intempéries por tabuinhas toscas arrumadas convenientemente. Todas obedeciam a um mesmo tipo. Eram moradias de famílias italianas. Muito aprazíveis, naquela hora, banhadas de luz intensa enquanto que, pela manhã, estiveram rebuçadas de névoa espessa. Crianças alouradas acercavam-se da estrada correndo e pulando satisfeitas, alegres, radiando felicidade. O ar era calmo sem o menor farfalho de folhas. Rolas e juritis arrolando e o regato cachoando, somente, quebravam a quietude. Era quase meio-dia e a natureza, ferida pelas vibrações na atmosfera morria, parecia arquejar. Os nossos machos cobriam-se de espumas de suor mas não enfrouxeciam, não esmoreciam, aceleravam, ao invés, a marcha para, por certo, se livrarem da carga.

Os nossos grandes chapelões de palha não nos proporcionavam refrigério e sentíamo-nos afogueados, fatigados, exaustos. O chefe gordanchudo afigurou-se-nos muito alterado com o sangue a rosar-lhe o rosto másculo e suarento. Não perdeu, porém, a ocasião para salientar a oiriçada vida do engenheiro e pendido na sela, para nos ter em seu campo de visão, proclamou que, apesar de sua aspereza, de seus percalços, ele não deixaria de predicar a nobreza da profissão.

— O engenheiro brasileiro de estradas é um desbravador, é um invasor de selvas, é um patriota e é um anônimo. Para ele não há agradecimentos, nem clangores para propalarem suas obras meritórias. Ele dá-se pouco desses justos estímulos, basta-se a si próprio porque tem a alma retemperada, dia a dia, na forja sagrada do cumprimento de seus deveres. Aqui vai encontrar um grêmio de colegas que se sacrificam e o senhor já está recrutado para esse grupo que orgulhoso vive assim como nós agora, com sobranceria e cônscios da ação civilizadora que estamos realizando. Quando se inaugura um trecho de estrada abrilhantam a solenidade os altos representantes das autoridades. Os bonitos discursos enfileiram-se. Um, embevecido, atenta à locomotiva e explode a bela frase, já por demais surrada, aqui está: “a alavanca do progresso”; outro compara a secção entregue ao tráfego com as estradas romanas que serpenteavam os caudais de suas conquistas; e, ainda, há o sonhador de olhar perdido, que pensa lobrigar, na direção do prosseguimento do leito, as matas e os campos, as montanhas e as planícies, as minas e os cascalhos que ocultam as gemas ambicionadas.

Já se avistam casas de Lauro Müller. Fronteamos com a estação. Doze horas e meia marcam os nossos relógios.

— Enfim chegamos — diz-nos o respeitável chefe. — Apeemo-nos. Um banho restaurar-nos-á do cansaço e o almoço, em breve, há de nos restituir a boa disposição para algum outro serviço.


[Reprodução da primeira edição publicada pela Livraria e Editora José Olympio, Rio de Janeiro, em 1959, como parte da Coleção Documentos Brasileiros. Publicado originalmente no site em 2004.]

Ceciliano Abel de Almeida (autor) foi engenheiro da Estrada de Ferro Vitória a Minas, tendo trabalhado nos primórdios de sua construção, sendo também responsável por importantes obras de infraestrutura no Estado. Foi o primeiro prefeito de Vitória, ES, professor de ensino secundário no Ginásio Espírito Santo e primeiro reitor da Universidade do Espírito Santo, quando de sua fundação como instituição estadual.

Deixe um Comentário