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O dia em que o Rei pirou

Autoria: Lucius Kalinc / Produção: João Sampaio. 2017.

 Não vislumbro nenhum empecilho para sonhar que um dia Roberto Carlos, o Rei, cantará em público – ou mesmo gravará em estúdio – alguma ou até, quem sabe, algumas canções do seu conterrâneo, Sérgio Sampaio.

Concedo-me, ainda, o direito de sonhar que isso se dará em um show a céu aberto sob o céu de Cachoeiro.

E enquanto admito, sem muito esforço, sonhar com essa possibilidade, alimento também – mas lacrado com um selo de, digamos, segredo autoral – o projeto de transformar esse sonho em uma peça de ficção, talvez um conto com cintilações de realismo fantástico.

Isso, claro, se ele, o sonho, não se fizer, antes, realidade.

O nome do conto – ou novela, talvez – será o que tomei emprestado para titular este texto aqui, que deslustra, temo, o sonhado songbook do velho bandido.

O conto – como o sonho – se situa na noite de 19 de abril de 2021.
É que para comemorar o seu octogésimo aniversário, Roberto Carlos decidiu soberano e cônscio, fazer um show histórico – e absolutamente inusitado – na sua cidade natal.

Sem o costumeiro alarde publicitário, Sua Majestade convidou alguns instrumentistas, que não compõem seu entourage, para ensaiarem um repertório totalmente estranho ao grande público que acompanha a sua longeva, linear e – mesmo assim – gloriosa carreira.

O sonho não conta, em detalhes, o roteiro desse espetáculo onírico criado pelo Rei.

Mas a ficção permite relatar todas as minudências do show.

Deixemos, então, por inútil, o sonho instalado ali no espaço nenhum que ele (des)ocupa na ilha de Utopia, e entreguemo-nos à ficção, que, como está à mão, vale mais do que qualquer sonho – ainda que seja real – voando.

Aqui, já no ambiente da ficção, enquanto a tarde – de 19 de abril de 2021, lembro – projeta a sua derradeira luminosidade outonal sobre as águas do Itapemirim, podemos observar o velho Rei caminhando solitário e em silêncio pelo grande palco montado na Praça Jerônimo Monteiro, no centro de Cachoeiro, para abrigar esta noite de segunda-feira que não poderá ser senão majestosa.

Só ele, o Rei, sabe que daqui a pouco a cidade presenciará um episódio musical que além de inédito, será surpreendente.

Há quem diga, até, que inacreditável.

Aos músicos que compõem a banda montada exclusivamente pra este show – e, talvez, para um disco que pode nascer daí – o Rei sonegou, com a discrição que a nobreza lhe outorga, maiores informações.

Exaustivo, como de hábito, no afã dos ensaios, ele, no entanto, em momento algum se permitiu com os convivas mais que uma interlocução exclusivamente técnica, ainda que cordial.

A emoção e um ou outro discurso confessional que por certo o assaltarão quando no palco, ele os guardou a sete chaves.

No fundo do seu coração.

Eles, os músicos – alguns ainda circulam pelo palco, neste fim de tarde outoniço, depois da passagem de som – sabem, claro, e com surpresa, do repertório que Zunga reservou para surpreender sua cidade natal, na data em que se completam oito décadas do seu nascimento ali.

Além das canções que ele nunca quis gravar e de outras que deixou de cantar já há algumas dezenas de anos, surpreenderão ainda mais o cenário e os indumentos pessoais que Sua Majestade aprovou para aquela noite.

Ali hoje, ver-se-á cores que vinham sendo proibidas desde que a sua roqueira e – então – transgressora juventude guardiã se findou.

E sabe ele – o Rei que observamos quieto e só ali naquele palco, agora quase vazio – que além de tudo isso, brotarão hoje da sua emoção alguns discursos que ele manteve emudecidos até esta altura do seu reinado vitalício.

Portanto – se a tanto me ajudar meu pouco engenho e minha minguada arte – esse conto (ou um curto romance, ou uma crônica histórica?), que um dia escreverei, terá muito por onde viajar, no labirinto de surpresas desta noite em que o Rei octogenário – segundo o entendimento de alguns – pirou.

Mas aqui, neste espaço songbookiano (que abriga alguns dos mais aguerridos integrantes da sampaiada nacional atual), vou – com o risco de deslustrar o conjunto – só adiantar uma parte – a que mais nos interessa agora – do que a ficção guarda.

Coisa rápida. Alguns takes do show.

Como, por exemplo, a emocionada abertura desse espetáculo improvável.
Com o palco em blecaute total, o Rei, em off e a capella, desenvolve a primeira estrofe de Meu pequeno Cachoeiro diante da praça lotada e muda. Quando chega ao refrão – com o público já cantando, aplaudindo e chorando – Roberto Carlos, iluminado, aparece sustentado pela banda.

Ao final do hino da sua cidade, o Rei dirige-se a um lado do palco, onde está Raul Sampaio Cocco.

Sentado, quieto, absorto.

Roberto o abraça e beija enquanto todo o público, puxado pela banda, canta o refrão da canção.

Quando os aplausos vagarosamente vão ficando mais dispersos e as lágrimas começam a secar, um violão se projeta incisivo e inconfundível sobre o silêncio que vai dominando a praça. Um foco de luz procura a origem desse som e encontra o guitarrista Piau sozinho no centro do palco, incitando as cordas a relembrarem com segura fidelidade a clássica abertura de Cabras pastando.

A luz se amplia até alcançar o Rei, que entra exato, como se chegasse correndo de uma velha tarde de domingo.

A praça explode.

Eu tenho um dom de causar consequências
Um ar de criar evidências
Um sapato novo no lixo

Vem cá
Vem me lembrar que eu venho
de um bando de cabras pastando
De um ninho de cobras me olhando
De herói, de poeta e bandido.

…….

Ao final Roberto apresenta, agradece e aplaude Piau, e, diante de um público em sua maior parte querendo saber de quem é esse rock sedutor que o Rei, jovial, acabara de interpretar e de um pequeno número de sampaiófilos boquiabertos, ele fala que Eu quero é botar meu bloco na rua, o primeiro elepê de Sérgio Sampaio, foi uma grande surpresa pra ele e pra muita gente naquele momento, 1973, em que foi lançado. Que é um disco que ele ouviu muito e do qual ainda gosta pra caramba. Mas que Tem que acontecer, o segundo álbum de Sérgio – onde está gravada Cabras pastando, a música que ele acabara de cantar – é um dos seus discos preferidos.

Conta ainda, Sua Majestade, que depois disso ele perdeu um pouco o contato com a obra genial do Sampaio teimoso.

Mas em alguns outros momentos do show, que durou um pouco mais de duas horas, Roberto voltou a falar (e cantar) coisas de Sérgio ou da família Sampaio.

Como quando ele falou do maestro Raul Sampaio e de quantas vezes e com que alegria ele, muito criança ainda, acompanhou a Banda 26 de Julho ali mesmo naquela Praça Jerônimo Monteiro.

Que também se lembra de que ouvia algumas pessoas, por aí, cantando Cala a boca Zebedeu e dizendo que aquela música era do maestro Raul Sampaio.

No que ele não acreditava.

Aos seus olhos infantis só cabia ao respeitável maestro compor os dobrados e hinos que a 26 de Julho executava com galhardia marcial.

E que ele, Roberto, ainda infante, embora não entendesse muito bem, achava muito engraçado o Zebedeu e que uma das primeiras coisas que ele aprendeu a cantar foi aquele refrão.

Aí, fazendo uma voz infantil e diante das gargalhadas do público e da banda que arrancava sons divertidos dos seus instrumentos, Sua Majestade cantou e repetiu algumas vezes:

Eu vou pro Rio de Janeiro
ver o escrete brasileiro jogar.

Chega.

Mais não contarei aqui.

A literatura ficcional (conto, crônica, novela, romance?) que um dia vou escrever cuidará do restante. Acho.

Só direi ainda, por considerar indispensável, é que o Rei, depois de uma sequência de músicas que ele disse que gostaria de ter criado – a sequência se fechou com Qualquer coisa, de Caetano Veloso – falou de novo de Sérgio Sampaio.

Sua Alteza Real contou que acha Meu pobre blues muito divertido, criativo e atraente. Que ele tem ainda aquele compacto – autografado por Sérgio! – guardado com todo o carinho.

E disse mais o Rei.

Disse que ele sempre teve muita vontade de fazer o que ia fazer agora ali, naquela noite do seu aniversário, em Cachoeiro de Itapemirim.

Convidou Piau para ficar à frente da banda de feras que ele tinha convocado para aquela data e realizou, com realeza, para deleite do público presente e silente, o seu sonho:

Meu amigo,
Um dia eu ouvi maravilhado
No radinho do meu vizinho
Seu rockzinho antigo
Foi como se uma bomba
Tivesse explodido no ar
E todo o povo brasileiro
Nunca mais deixou de cantar
E desde aquele instante
Eu nunca mais parei de tentar
Mostrar meu blues
Pra você cantar

………….

Outra coisa que eu também não posso deixar de registrar aqui é que quase ao final do show – que se encerrou com uma interpretação, digamos, heróica do velho Rei para Quero que vá tudo pro inferno – Roberto convidou ao palco o seu amigo Erasmo Carlos – que mais de uma vez participou do espetáculo de aniversário do parceiro – para juntos cantarem uma música – Um hino nacional! – que cantavam vez ou outra brincando em festinhas da época, em sua casa ou mesmo na de Erasmo.

(Roberto)

Há quem diga que eu dormi de touca
Quem eu perdi a boca
Que eu fugi da briga
Que caí do galho e que não vi saída
Que morri de medo quando o pau quebrou

(Erasmo)

Há quem diga que eu não sou de nada
Que eu não sei de nada
E não peço desculpas
Que eu não tenho culpa
Mas que dei bobeira
E que Durango Kid quase me pegou

(Roberto, Erasmo, a banda e toda a Praça Jerônimo Monteiro, uníssono)

Eu quero é botar meu bloco na rua
Brincar, botar pra gemer
Eu quero é botar meu bloco na rua
Gingar pra dar e vender…

Enquanto todos cantavam e dançavam ali na praça e nas ruas mais próximas diante dos telões – já quase ao final daquele longo e extraordinário show histórico – Roberto pegou, sobre um banquinho a seu lado, um livro e mostrando-o ao público disse: Foi importante que chegasse às minhas mãos este Songbook de Sérgio Sampaio. Essa obra despertou a minha reaproximação com a criação musical deste grande poeta conterrâneo e contemporâneo. Agradeço à turma que há coisa de uns seis anos realizou este trabalho aqui no estado. Valeu! Só tem um texto aqui que deslustra um pouco esta publicação tão importante. Mas fazer o quê, não é? Deixa pra lá…

Ninguém, pra sorte minha, sabia ali a que texto o Rei se referia.

Eu, a um canto da praça, nada disse, nem direi.

Afinal, Rei é Rei.

E se errei, ao escrever (ou ao sonhar), ele, do alto da sua majestade, saberá me perdoar.

Espero.

[In KALINK, Lucius. Songbook Sérgio Sampaio. Vitória: Cousa, 2017.]

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Gilson Soares é poeta e nasceu em Ecoporanga, no extremo noroeste do Estado do Espírito Santo, em 10 de fevereiro de 1955. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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