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O fado da Ferreirinha

Ferreirinha, agora item de colecionador. Foto www.pajuari.com.br - Coleção de Cachaça do Messias.
Ferreirinha, agora item de colecionador.
Foto www.pajuari.com.br – Coleção de Cachaça do Messias.

Só agora, a esta altura do giro pelo Arco Norte vou confidenciar ao meu, já, dileto leitor, que uma das (mais) agradáveis obrigações que cumpro em cada lugar aonde chego é a de degustar, com atenção de pesquisador, os destilados de cana que são produzidos e comercializados ali.

Enfim – sem chalaça –: gosto sim, leitor, dileto, de uma boa cachaça.

E posso, por isso, dizer, com segurança, que o estado do Espírito Santo produz aguardentes de qualidade mais do que satisfatória.

Só que o processo de produção e de distribuição desta bebida nacional aqui entre nós, é feito ainda de forma muito silenciosa, quase clandestina.
Na verdade não temos um padrão de qualidade e sabor que se apresente com semelhança em todo o nosso território e que se firme, assim, como uma marca capixaba. E também carecemos de uma política que almeje e incentive esse padrão e queira, depois, estabelecer e difundir essa marca.
Assim, muitas das boas cachaças que tenho encontrado na minha esforçada pesquisa, digamos, ciclístico-etílica, não têm uma identificação legal, um rótulo.

São, geralmente, obras de pequenos e anônimos produtores que se desdobram na variedade sazonal das suas atividades agrícolas. Apoiados no sóbrio desempenho de um minúsculo alambique alcançam uma produção que nem sempre ultrapassa a demanda doméstica do consumo de pinga.

Quer dizer, sobra – quando sobra – muito pouco pra vender.

Mas é aí que tenho encontrado cachaças puras, honestas e, algumas, até muito inspiradoras.

A Ferreirinha – de que vou falar – não era uma dessas.

Não porque não dispusesse de todas essas virtudes que acabo de enunciar. Dispunha, sim.

Mas mantinha-se afastada da modéstia e do anonimato.

Por sinal, seu comportamento em público era o de uma jovem aguardente com muita pretensão e, até, com uma – pequena que fosse – dose de vaidade.

Cheguei a vê-la – e a saboreá-la! – numa dessas requintadas – e caras – cachaçarias da capital, trajando uma bem cuidada embalagem e estampando um rótulo que, pelo visto – pelo corte, pelo estilo –, deve ter saído da tesoura de algum artista gráfico muito cuidadoso. Coisa tipo exportação.

Só que a Ferreirinha, não me pergunte por que, estava fadada a escafeder-se precocemente.

Sumiu.

Parou de ser produzida e deixou alguns amantes – entre eles, eu – inconsoláveis.

É importante, no entanto, confessar para o leitor, que a minha paixão por esta cana ultrapassa o interesse formal e frio de pesquisador. Há aí, informo, o fato de ela, como eu, ser natural de Ecoporanga.

Isso sempre me provocou um orgulho, meio tolo talvez, que nunca escondi.

Sempre que a encontrava nesses locais públicos, costumava exclamar, entre uma dose e outra, em tom de alegria:

– Minha conterrânea!

Mas nenhuma linha deste discurso que faço aqui, agora, me ocorrera, enquanto passeava saudoso por Cotaxé, naquela agradável manhã de segunda-feira.

Nem mesmo quando, já chegando a hora do almoço, entrei numa venda da vila pra tomar um aperitivo, me lembrava dela.

Ia pedir uma, qualquer, cachaça local.

O que aconteceu é que enquanto, sem pressa, aguardava o dono da venda atender a um ou dois fregueses que por ali já estavam, fiquei bisbilhotando as informações expostas nas parcas prateleiras do estabelecimento. Com alegre surpresa divisei uma garrafa de – veja só! – Ferreirinha cintilando, com indiscrição, num dos pontos mais altos – mas, recôndito – da vitrine da tal vendinha.

Não vou esconder do leitor, talvez abstêmio, que fiquei com água na boca.
Mas não pensei, de forma alguma, em, por isso, tentar furar a fila de atendimento. Esperei.

Quando chegou a minha vez, pedi ao dono da venda – apontando para aquele ponto da prateleira – uma dose de Ferreirinha.

Ele, atencioso, além de me ouvir, acompanhou com o olhar sorridente o ponto que eu indicava e disse convicto:

– Não.

– Ah, então é só a garrafa que está ali, sem nada dentro, não é? Eu disse tentando entender.

Ele:

– Não. É uma Ferreirinha, sim. Original, inteira e absolutamente virgem. Mas eu tenho só aquela garrafa ali e guardo-a como lembrança, relíquia, troféu. Não abro por nada.

O cara, percebi logo, tem aquele comportamento obstinado de colecionador.

Coisa que, nem com muito esforço, consigo muito bem entender.

Nem se eu oferecesse pra ele – o que não faria, claro – a minha pretinha, ele abriria aquela garrafa da velha Ferreira, que, de repente, apareceu à minha frente, em plena segunda-feira, na prateleira de uma vendinha de Cotaxé.

Fazer o que, né?

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Gilson Soares é poeta e nasceu em Ecoporanga, no extremo noroeste do Estado do Espírito Santo, em 10 de fevereiro de 1955. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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