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O homem que dormiu na casa de Faulkner

A boca estava com gosto de guarda-chuva. Poucas eram suas lembranças. Havia um cheque de $50 para inscrição na conferência anual Faulkner e Yoknapatawpha. “Não vá, você não tem condições de viajar para tão longe,” uma voz amiga lhe dizia.

Vento quente de verão entrava pelas grades na cadeia de Oxford, Mississipi. Eustorgênio Schmidel, professor aposentado, vivia uma das personagens de Faulkner. Apesar do sobrenome alemão ele era mulato, ou seja, afro, no sul dos Estados Unidos.

Anos atrás, quando ouvira falar que seu ídolo — Faulkner — iria a São Paulo, com todo o sacrifício foi ouvi-lo, na capital paulista, lá na sede do Instituto Brasil-Estados Unidos. Um homem magro, de nariz afilado, olhos penetrantes, bigodinho à Hitler, e sempre embriagado. Quase se decepcionou, mas continuou, ao longo dos anos, a amar os romances de Faulkner.

Apesar de seu inglês empobrecido pelo desuso, a viagem transcorreu sem dificuldades. Alfândega e imigração em Miami e um voo Delta Line para Memphis, via Atlanta. O meu velho professor vencia todas as dificuldades naturais da viagem, como um pequeno robô de estranho sotaque.

Quarenta e oito milhas no ônibus da Universidade até a pequenina Oxford, Mississipi. Alojamento no campus, gente do mundo todo. Recitais de poesia, conferências com o forte sotaque sulino, o professor, ainda mais que meio surdo, pouco entendia, mas estava no céu.

À tarde visita ao Museu Faulkner, ali pertinho. O velho seguiu os participantes da visita, seguiu-os silencioso, um estranho no ninho.

A casa onde o escritor passou os últimos anos de sua vida é uma mansão sulista, salva da guerra da secessão, grandes colunas gregas, o velho se admirou de ver o roteiro de A Fable escrito a spray vermelho nas paredes do escritório. Sentou-se, quietinho, num banco destinado aos visitantes. O guia os chamava para conhecerem o estábulo e conversar com um velho afro-americano que trabalhara para Faulkner. Não foi. Já estivera lá fora e até furtara, discretamente, barro, pedregulhos e folhas secas daquele solo sagrado. Uma moleza perpassava-lhe o corpo. Acordou, noite alta, a casa quase às escuras.

Para orientar-se, acendeu alguns fósforos. Um deles caiu sobre a mesa e iniciou um pequeno fogo nos papéis ali expostos.

Um vigia, alertado pelas luzinhas, descobriu-o, amedrontado, tentando apagar o fogo. Já era de madrugada. Tartamudeou. Seus lábios tremiam. Não soube explicar-se e foi preso, acusado como incendiário, mais um incêndio juntava-se aos inventados por Faulkner.

A pequena cadeia cinzenta de Oxford só tem um preso: o Prof. Eustorgênio Schmidel. Levado à presença da Justiça — uma juíza afro-americana, contra todos os padrões sulistas — foi-lhe arbitrada fiança muito alta. Não compreenderam que ele apenas dormira, os empregados não o notaram no seu cantinho, jamais faria algo errado na casa de seu ídolo maior.

Domitila Kuster, uma rara bolsista brasileira da Ole Miss, viu a notícia na televisão local.

— Meu Deus, é o pai da Alice!

(Alice morrera, cancerosa, no ano passado, mas fora a primeira professora de inglês de minha amiga Domitila.)

Moveu céus e terras para entrevistar-se com o velho professor. Conseguiu e entendeu a falta de culpa do mestre. Lembrou-se até que ele tinha a mania de assinar seus escritos com o pseudônimo Conan Doyle Jr.

Telefonou ao cônsul do Brasil em Houston, no Texas. Com interferência do embaixador, chegou-se a um acordo com a Promotoria e foi o velho extraditado para o Brasil, suspenso o processo de tentativa dolosa de incêndio.

Ontem fui buscar o velhinho, no Aeroporto Eurico Salles. Com aquele terninho pega-siri, uma velha maleta à mão, e na outra um plástico da Ole Miss Bookstore cheio de terra, o professor Schmidel era a felicidade em forma de gente.

[Reprodução autorizada pelo autor.]

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Renato Pacheco foi importante pesquisador da história e folclore capixabas, além de escritor, com vários livros publicados. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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