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O jogo de gude

Jogo de gude, Vitória, ES. Foto Guilherme Santos Neves.
Jogo de gude, Vitória, ES. Foto Guilherme Santos Neves.

Quase podemos afirmar que o jogo de gude ou de bolinhas não tem, entre os garotos capixabas, o seu mês determinado e certo. Joga-se de janeiro a dezembro, aqui na ilha, ora com mais, ora som menos freqüência — mas joga-se todo o ano.

O jogo é sabido de todos, e conhecido em vários dos seus tipos: o dos três buracos ou casas, o de teque, o da barca etc. Trataremos aqui deste último, que é atualmente, o que mais se joga em Vitória.

Reúnem-se dois ou mais garotos. Riscam no chão bem limpo um grande oval — é a barca. Aí, no centro, põem (casam) as bolas (cada um, 1, 2, 3, conforme a combinação prévia), lado a lado, sentido do diâmetro maior da figura.

Depois, à distância de 2 ou 3 metros, fazem forte risco no chão, paralelo à posição das bolas casadas na barca. Esse risco será o ponto.

Em seguida, voltando à barca, os jogadores atiram de lá, na direção do ponto, cada um a sua bola ou jogadeira. O que a atirar mais perto do ponto será o primeiro a entrar em jogo. Os outros terão a sua vez conforme a colocação de sua jogadeira. Se surgir dúvida quanto à distância entre as bolas e a linha do ponto, a medição será feita por dedos ou palmos, segundo a maior ou menor proximidade das jogadeiras.

Estabelecida a ordem dos jogadores, estes vão até ponto e dali atiram suas jogadeiras, agora em direção à barca.

O jogo consistirá em tirar da barca, a poder de toques ou teques da jogadeira, uma a uma, as bolas aí casadas. O jogador poderá, se quiser, acertar (matar) a jogadeira de qualquer dos outros, eliminando-os do jogo. Daí por que, o primeiro a jogar, ao atirar a sua jogadeira do ponto, procura atingir qualquer das bolas da barca, ou desta se aproximar o mais possível. Os que atiram sua bola depois do primeiro, procuram matar a jogadeira já lançada, ou, prudentemente, dela desviar-se, a fim de não serem atingidos pelo que teve a sorte de começar o jogo. Depois de atiradas assim todas as jogadeiras, o primeiro colocado inicia o seu ataque às bolas casadas ou às bolas dos adversários. Vencerá o jogo se conseguir tirar fora da barca as bolinhas aí postas, ou se tecar as jogadeiras dos demais. Se os jogadores conseguirem tirar, cada qual, algumas bolas casadas, será vencedor o que tirou o maior número delas.

Se o jogador errar qualquer das jogadas, isto, é se não acertar na bola visada, ou se, embora tecando, não conseguir tirar a bola da barca, perde a vez, passando a jogar o segundo colocado, e assim por diante, caso este também cometa qualquer erro.

O gude pode ser jogado à brinca, ou à vera. No primeiro caso, terminado o jogo, restituem-se as bolas aos seus donos. À vera, porém, quem venceu leva as bolas que tecou.

Como em todos os jogos, há no gude, algumas superstições entre os jogadores. Por exemplo: para se acertar qualquer das bolas, costuma-se bater, duas ou três vezes, com a própria jogadeira, nu ma bola qualquer que se tenha segura na outra mão. Dizem que é “tiro e queda!”. Para dar azar na jogada dos outros é bom — riscar no chão uma cruz diante da bola visada pelo adversário. Para desfazer este azar, cospe-se na cruz, e desmancha-se ela com o pé…

Desfilaremos, agora, alguns dos termos, expressões e fórmulas criadas e usadas no jogo de gude:

Caco — Bola comum, feia, muito tecada e gasta.
Olho-de-gato — bola de vidro com estrias ou listas. Vale 3, 4 ou mais bolas comuns, conforme o número de listas que apresenta e que são vistas contra a luz.
Coquinho ou coquinho americano — bolinha vistosa e reluzente, geralmente de uma só cor.
Casar — colocar as bolas no centro da barca, no início do jogo.
Tecar — acertar ou matar qualquer das bolas em jogo.
Teque — toque da jogadeira em qualquer outra bola.
Limpar — ganhar todas as bolas dos adversários.
Ficar limpo — perder, no jogo, todas as suas bolas.
Chegão — jogador que, ao mirar a bola que procura tecar, costuma chegar, isto é, avançar a mão sorrateiramente aproximando-se do alvo.
Dar bucha — atirar, sem querer, a sua jogadeira muito perto da do adversário, facilitando a este o teque final.
Ratão — pixote, calouro no jogo, errado nos teques.
Vicia, ou viciado — ótimo nos teques em qualquer posição.

Há certas fórmulas usadas no jogo de gude — verdadeiras regras a que se deve cega obediência. Por exemplo: o jogador que, antes de atirar a sua jogadeira contra qualquer das bolas em jogo, disser, rápido: quero tudo!, ou apenas: Tudo! terá direito a dar impulso à sua jogada, limpar o terreno, contornar, guardando a mesma distância, os obstáculos que ocultam a bola a ser visada, etc. Se disser: Quero limpo!, ou Limpo! ser-lhe-á concedido limpar o terreno, tirando os gravetos ou pedras para melhor tecar a bola do adversário. Se este, porém, for mais esperto e disser primeiro: Não dou nada!, ou Não dou limpo!, ou apenas — Nada!– o jogador terá de atirar a sua jogadeira sem facilitar, de nenhum modo, a sua jogada.

Estas e as demais regras fazem do jogo de gude, ótimo treino ou exercício de educação, pois criam nas crianças, o sentimento de obediência, disciplina e sociabilidade.

Mas — como também ocorre na vida social — há violações neste jogo, e uma destas é a chamada Mão no bolo!. Eis como a descreve um ginasiano, nosso aluno: “O jogador está perdendo. Ele é maior que os outros. Muitos estão assistindo. Ele então já preparado, grita: Mão no bolo!. Assistentes, jogadores, todos avançam na barca. E num segundo a barca fica limpa…”

[Artigo publicado em Folclore, Vitória-ES, n. 7-8, de julho-outubro de 1950]

Guilherme Santos Neves foi pesquisador do folclore capixaba com vários livros e artigos publicados. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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