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O picolê

A denominação picolê, comum entre nós, porém estranha em outros Estados, parece-me derivada de pique, nome por que é conhecido o jogo aqui e em outras partes do Brasil, como, em Minas, registrou Fausto Teixeira. Lá pelo nordeste e norte, onde maior se verificou a influência da escravidão, a brincadeira chama-se Capitão do Mato (Bahia, Edison Carneiro) e Capitão do Campo (Rio Grande do Norte, Veríssimo de Melo).

Há diversas variedades de picolê: o de abaixar, o trepa-trepa ou de alto, o elétrico, o acusado e o de esconder. Antes de examinarmos estas variedades convém notar que pique entre nós é o lugar onde os meninos que brincam se tornam invulneráveis. (É a mancha dos argentinos ou mesmo do Rio Grande do Norte, termo não usado entre nós). E boiar quer dizer prender; assim – bóia, é você que pega é fórmula de passar à obrigação de pegador a participante que tenha sido agarrado.

Precede ao jogo a escolha do pegador, através de uma das múltiplas fórmulas de sorteio ou escolha, já anotadas por muitos folcloristas, entre nós, por exemplo por Câmara Cascudo, Cecília Meireles, Mariza Lira, Veríssimo de Melo, e, na Argentina por Félix Coluccio.

Das fórmulas de escolha vou repetir as mais comuns entre nós que me foram ensinadas pela inteligente Maria Cecília Veloso.

1) Lá em cima do piano / tem um copo de veneno… / Quem bebeu mo-rreu… Quem bebeu mo-rreu…

2) Você tem uma bonequinha? / Tenho. / Ela é engraçadinha? / É… / Quantos anos ela tem? / 10 (por exemplo) / 1-2-3-4-5-6-7-8-9-10.

3) Lá em cima daquele morro tem um anãozinho? / Tem. / Que cor é a calcinha dele? (qualquer cor que tiver na roupa) / Então me amostra a cor… / (Se tiver a cor sai do jogo; esta fórmula é pouco usada por ser muito demorada).

4) Anabu, anabu / Quem comeu angu / Na panela do urubu, / Quem sai és tu.

Em Vila Velha fazia-se assim:

5) Bamburê / Baredilê… / Tuntarabim / Tarabim-tetê… / Tico-taco / Bambarola, / Este dentro, / Este fora…

E, coisa curiosa, em Santa Tereza, em virtude da influência italiana, usavam-se apenas os quatro últimos versos da fórmula supra, ditos assim:

Tico-taco / Bambarola. / Coesto dentro / Coesto fora.

Estas fórmulas foram já recolhidas nos citados trabalhos, inclusive no argentino de Félix Coluccio que, por sinal, com muita honra para nosso Boletim faz transcrição do citado trabalho de Lima Fonseca. (Dicionário Folclórico Argentino, página 254).

Após a escolha principia a brincadeira. No picolé de abaixar o pegador sai atrás dos outros participantes, que se tornam invulneráveis se se abaixam. O de trepa-trepa ou de alto é variante do precedente só que a invulnerabilidade se consegue subindo a um muro, cadeira, pedra, etc.

No picolê elétrico não há pique ou mancha. Necessita de um campo maior, porque uma vez boiado um participante continua o jogo que se transforma numa alegre e divertida correria.

O acusado é uma variante do picolê de esconder; só que se torna mais cômodo para o pegador que tem apenas de indicar (isto é acusar) onde se acha escondido um de seus companheiros.

No picolê de esconder, saem os participantes em busca de esconderijo. Quando todos estão a salvo gritam: “Está na hora” iniciando-se a brincadeira. Há uma variante que é o chamado 31 de janeiro. Fica o pegador com o rosto voltado para o pique e vai gritando 1, 2, 3, 4, … 29, 30, 31 de janeiro … Quando chega a esta data está esgotado o prazo de que os outros dispõem para a fuga, e sai em busca daquele que o substituirá.

Temos apenas que lamentar o quase esquecimento a que está sendo relegado o picolê, brinquedo de minha infância, suplantado que vai sendo a pouco e pouco, pelo camonebóis e bandidos e americanos importados!

Bibliografia

CARNEIRO, Edison. Antologia do negro brasileiro, 1950, p. 282.

TEIXEIRA, Fausto. Estudos de Folclore, 1949, p. 161 e 165.

COLUCCIO, Felix. Dicionário Folclorico Argentino, 1950, p. 253.

FONSECA, Lima Fonseca. In Folclore nº 1, p. 5, 1949.

MELO, Verissimo de. Fórmulas de escolha, Documento 190 de 14/7/1950 da CNF.

___. Origem de um jogo popular, in Folclore, n. 6, 1950.

[Texto publicado na revista Folclore, Vitória-ES, n. 11-12, março-junho de 1951. Reproduzido com autorização do autor.]

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Renato Pacheco foi importante pesquisador da história e folclore capixabas, além de escritor, com vários livros publicados. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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