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O polêmico morrinho

Tão logo recebeu o diploma de engenheiro, o jovem Antônio Francisco de Athayde elaborou, em 1894, a primeira planta cadastral de Vila Velha atendendo, provavelmente, a solicitação do administrador da época. Nesse trabalho, cuja cópia está arquivada na Casa da Memória de Vila Velha, o jovem profissional mostrou as principais ruas existentes e projetou novas vias que orientassem o futuro crescimento da pacata cidade. Na direção sul, por exemplo, a cidade poderia crescer até a atual rua Sete de Setembro; para oeste, ou na direção do morro Jaburuna, a expansão iria até a atual rua Henrique Laranja. Mas na direção leste, ou sentido Centro-Praia da Costa, parece-nos que cometeu o pecado de projetar o prolongamento da rua Vasco Coutinho, subindo parte da encosta do morro do Convento, desrespeitando os limites de propriedade entre a igreja e a municipalidade, talvez porque toda a área que Dona Luiza Grinalda doou à igreja católica ainda não havia sido demarcada. Basta dizer que, em pleno século XX, a delimitação dos terrenos municipais daqueles da igreja era marcada por uma simples cerca de arame farpado em toda volta do monte. Tanto era assim que a própria rua Luíza Grinalda nas décadas de 1920 e 1930 ainda tinha casas de um lado e mata do morro do outro.

Perdurando por longo tempo essa indefinição, quando Antônio Athayde foi escolhido para prefeito de Vila Velha (período de 1918/1921), andou ele próprio insistindo no erro de autorizar a construção de casas cujos lotes não deveriam pertencer à prefeitura. A partir daí essa prática leviana do bom prefeito encontrou a resistência do guardião do patrimônio do Convento, padre José Lidwin. Por incrível que pareça esta questão de limites entre as terras do patrimônio público municipal e aquelas da igreja deu início à polêmica entre o cuidadoso guardião e o prefeito Antônio Francisco de Athayde, que a imprensa da capital intitulou “O polêmico morrinho”. Para que o leitor conheça melhor o fato, transcrevo na íntegra, a carta do padre José ao prefeito de Vila Velha:

Vitória, 20 de setembro de 1920
Excelentíssimo Senhor Prefeito Municipal da Cidade do Espírito Santo
Tenho a honra de acusar o oficio de Vossa Excelência nº 32 de 17 do corrente que respondo. Absolutamente não invadi terrenos municipais, pela simples razão de o Município da Cidade do Espírito Santo não possuir patrimônio.[ 1 ]
Ora é evidente que, se o próprio governo Municipal declarou, por vezes, que não tem patrimônio, eu absolutamente não poderia invadi-lo. É evidente que por minha ordem está em construção uma casa no Morrinho, mas este, por mais de três séculos pertence ao Convento de Nossa Senhora da Penha, como consta da escritura de doação do morro da Penha ao Sumo Pontífice em 1591 por Dona Luísa Grinalda.[ 2 ] Não consta que Vasco Fernandes Coutinho fizesse doação do “Morrinho” e do “Ucharia” ao Município e que esta doação fosse mais tarde confirmada em escritura pública por Dona Luísa Grinalda se realmente esta doação foi feita, como afirma Vossa Excelência, estimaria muito saber onde se acha este documento. Vossa Excelência prestaria relevantíssimo serviço ao Município que dirige se descobrisse esta escritura, mas estou certo, inúteis serão todos os esforços de Vossa Excelência neste sentido, porque esta escritura nunca foi passada.
Diz Vossa Excelência ‘É lógico que, se fosse intenção da governadora incluir na doação feita em 1591 do morro da Penha aos frades franciscanos, o dito Morrinho, já conhecido por esse nome, teria sido mencionado na referida doação’. Perfeitamente. Reza a escritura: ‘Para que ao diante não sejam molestados, devassados e como lhes fazem roça ao redor daquele monte (…) lhes damos todo o chão e terra, desde o pé do dito monte ao cume.’
Ora, é justamente no Morrinho que o povo fazia roça, onde até hoje existem sinais visíveis de derrubada, ao passo que as outras partes do Morro da Penha conservam-se até hoje em mata virgem.
Demais é evidente que o Morrinho é continuação do Morro da Penha que vem morrendo aos poucos até a rua Luísa Grinalda. Donde conclui-se que, si a governadora da Província do Espírito Santo não tivesse intenção de fazer doação do mencionado Morrinho deveria exclui-lo, o que não fez.
Infelizmente a verdade é esta: Pessoas poucos escrupulosas foram invadindo aos poucos os terrenos de direito à Nossa Senhora da Penha e desta forma apoderando-se de toda a rua Dona Luísa Grinalda, grande parte da rua Pedro Palácios e da área onde está edificado o matadouro municipal. Pessoas antigas que vivem narram que a margem do rio da Costa até o mar pertence também ao Convento de Nossa Senhora da Penha.
Quanto aos documentos que existem no Arquivo da Prefeitura de Vila Velha a que se refere Vossa Excelência, são atas recentes das quais consta que a Municipalidade fez concessões a particulares, mas isto não prova que o Morrinho seja propriedade do Município. É preciso provar que os frades que residem no Convento tinham conhecimento que o Morrinho não lhes pertencia, que permitiam a invasão sem protesto. Pelo contrário, está no domínio público que os frades da Penha cercaram uma área muito maior do que a que eu cerquei e se não impediram a construção da casa, à rua Pedro Palácios, hoje pertencente ao português Luiz Gomes é porque ainda não tinham descoberto escritura feita por Dona Luisa Grinalda em 1591. Depois, tendo Frei João do Amor Divino Costa transferido a sua residência para o Convento de Santo Antônio, no Rio de Janeiro ficando abandonado o Convento de Nossa Senhora da Penha por isso, nos últimos anos correu tudo a revelia agora mesmo, apesar da minha vigilância constante, a invasão do Morro da Penha é tão freqüente quanto mais se não houvesse essa vigilância?!
Terminando essas considerações, permita-me Vossa Excelência que diga com toda franqueza que não invadi terrenos pertencentes ao Município de Vila Velha, porque este não possui patrimônio como provei e que também não recebi sem desgosto a surpresa de ser incomodado quando, em propriedade do Convento de Nossa Senhora da Penha procuro fazer benfeitorias cooperando desta forma para o progresso e embelezamento da Cidade do Espírito Santo, em boa hora confiada á direção de Vossa Excelência.
Confinando, pois, no espírito criterioso, reto, justiceiro e progressista de Vossa Excelência espero que, com toda cordialidade, da melhor forma possível e sem atritos resolveremos, amigavelmente, esta divergência e que, para o futuro, não encontrarei mais obstáculos para levar avante os diversos melhoramentos do Convento de Nossa Senhora da Penha e da área que lhe pertence, que tenho em vista, mas pelo contrário, encontrei todo o apoio e auxílio.
Valho-me do ensejo para apresentar a Vossa Excelência os meus protestos de alta estima e distinta consideração.
Deus guarde a Vossa Excelência.
P. José Lidwin

Ao Excelentíssimo Senhor Doutor Antônio Francisco de Athayde
D. D. Prefeito da Cidade do Espírito Santo[ 3 ]

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NOTAS

[ 1 ] Ensaio sobre a História e Estatística da Província do Espírito Santo, por José Marcelino Pereira Vasconcellos, p. 196: “A Câmara Municipal declara não possuir patrimônio…”; Dicionário Histórico Geográfico e Estatístico da Província do Espírito Santo, coordenado pelo Dr. Cezar Augusto Marques p. 75: “Câmara Municipal – Não tem esta Vila patrimônio…”
[ 2 ] Anais do Rio de Janeiro, do Dr. Balthazar da Silva Lisbôa, vol. p. 227-33.
[ 3 ] Fonte: Mensagem apresentada à Câmara da Cidade do Espirito Santo pelo Prefeito Eng. Antônio Francisco Athayde. Prefeito: 1920/1921. Arquivo Dr Milton Caldeira.

[SANTOS, Jair. Falando de Vila Velha. Vila Velha, 2002. Reprodução autorizada pelo autor.]

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Jair Santos é arquiteto e professor aposentado, natural de Alegre, ES, autor dos livros Vila Velha, onde começou o Estado do Espírito Santo e A igrejinha do Rosário.

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