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O presente precioso ou o precioso presente

Pedro estacionou o carro debaixo do caramanchão da delegacia e viu Lenilda lendo um livro à sombra do pé de tílias. As tílias abriam-se em favos róseos e jubilosos, atraindo abelhas que esvoaçavam de flor em flor, por entre as folhas verdes e ásperas.

“Que livro é este que você está lendo, Lenilda?” perguntou o escrivão, se aproximando da faxineira.

“É O Presente Precioso, o senhor já leu?” respondeu Lenilda, passando a Pedro o exemplar de capa vermelha, de autoria de Spencer Johnson.

O escrivão correu os olhos pela fachada da obra, ficou sabendo que Spencer Johnson, M.D., era também o autor de Quem mexeu no meu queijo? que, segundo lera na revista Veja, fora uma das obras mais vendidas em 2004, e ainda captou, na percorrida d’olhos, que o M.D. Spencer Johnson era formado em psicologia pela Universidade da Califórnia do Sul e em Medicina pelo Royal College of Surgeons, na Inglaterra, tendo trabalhado na Clínica Mayo e na Faculdade de Medicina da Universidade de Harvard.

“Não li e não gostei,” disse Pedro, devolvendo o exemplar à faxineira, mas indagando: “Como você conseguiu o livro?”

“Alguém esqueceu na delegacia. Acho que foi aquela dona que tomou umas bolachadas do marido e apresentou queixa contra ele. Se não foi, deve ter sido a estudante que recebeu uma cantada do professor, na faculdade de Direito…”

“Essa leva mais jeito de ler Spencer Johnson,” concordou Pedro.

“E por que o senhor não quer ler o livro?” insistiu Lenilda.

“Porque é uma dessas obras de auto-ajuda, feitas de encomenda para elevar a auto-estima das pessoas, que não emplacam no meu gênero. É literatura de oportunismo, cheia de lugares comuns e criações pueris.”

“Pois eu até que estou gostando, seu Pedrinho. Tudo que li, achei muito profundo.”

“Eu não quero decepcioná-la, minha amiga, mas para mim o que tem aí não passa de empulhação. A começar pela impressão do texto (e Pedro pegou de novo a obra). Veja: precisava ser impresso, página por página, em letras de fôrma?”

“Mas assim é que é bom de ler, seu Pedrinho,” rebateu Lenilda, que não se dava por vencida. “Lendo em letras grandes a gente aprende melhor os ensinamentos do livro…”

“Que ensinamentos?” irritou-se Pedro.

“Todos os que estão aí, seu Pedrinho. Veja só este aqui.” Lenilda retirou o livro das mãos do escrivão, abriu-o ao acaso na página 67 e devolveu-o ao amigo para ler. Com certa relutância, Pedro passou a vista pelo texto, composto em letras garrafais e com entrelinhas espaçosas:

“MEU PASSADO FOI
O PRESENTE.
O MOMENTO PRESENTE É
UMA REALIDADE
QUE EU EXPERIMENTO.”

“Não é bonito, seu Pedrinho?” cutucou Lenilda a opinião do escrivão.

“Lamento discordar, mas é puro besteirol,” retrucou Pedro, para total desconforto de Lenilda.

“Besteirol…?”

“Besteirol, minha amiga. Qualquer sujeito medíocre escreve uma idiotice dessas. Nem precisa ser formado em psicologia pela Universidade da Califórnia do Sul, conferencista internacional, ou ter curso de medicina pelo Royal College of Surgeons na Inglaterra (Pedro falou com voz de locutor do Jornal Nacional). Vou dizer mais: até Digital, se botar a cabeça pra funcionar um bocadinho, o que nós sabemos que ele não costuma fazer, seria capaz de escrever coisas como as que Spencer Johnson escreveu. De escrever só, não! De pensar também.”

“Aí, seu Pedrinho, o senhor exagerou na dose, porque não acredito que seja tão fácil assim… Pra dizer a verdade, acho que nem o senhor conseguiria…” disse Lenilda com uma sincera descrença flutuando em seu olhar.

“Você quer ver?” arvorou-se Pedro, desafiado em sua capacidade de autor de várias obras publicadas e republicadas, lançadas e relançadas.

“Quero!”

“Então me dê um pedaço de papel e uma caneta…”

Lenilda entregou a Pedro uma página tirada de um caderno de espiral, junto com uma esferográfica. O escrivão pensou um pouco (e, a bem da verdade, muito pouco) e escreveu, também em letras garrafais:

“O MEU PASSADO
FOI O MEU PRESENTE.
O MEU FUTURO SERÁ
O MEU PASSADO.
MEU PASSADO E MEU FUTURO FORMAM UMA REALIDADE, PRESENTE EM MINHA VIDA.

“Que beleza, seu Pedrinho! O senhor conseguiu mesmo! Vou dizer que está até melhor do que no livro. Quer datilografar pra mim na sua máquina de escrever?”

“Datilografar pra quê, Lenilda?”

“Pra eu pregar na porta da minha geladeira. Todo dia vou ler esta beleza de ensinamento que o senhor escreveu.”

Pedro olhou para a amiga a fim de verificar se ela falava sério. Falava.

“Isso que eu escrevi, Lenilda, é pura gozação. Foi pra mostrar a você como é fácil engabelar as pessoas com filosofia barata. Não vou datilografar coisa nenhuma, menos ainda para a porta da sua geladeira!”

“Já que o senhor não quer, eu peço a meu sobrinho, que trabalha na Prefeitura de Cariacica. E vai ser digitado em computador, talqualzinho o senhor escreveu. Vou pedir ainda para colocar seu nome embaixo, não é assim que se faz com o autor? Depois, mando plastificar e colar um imãzinho nas costas para prender na geladeira. Se o senhor quiser ir lá em casa tomar um cafezinho vai ver sua frase onde ela merece estar, para eu ler todos os dias. Vou cuidar disso agora mesmo”.

“Ei, Lenilda, você esqueceu o livro!” disse Pedro, ao ver que a faxineira ia embora levando apenas a folha de caderno e algumas abelhas enroscadas nos cabelos. “Faça-me o favor de levar o livro também.”

“Vou levar só para o senhor não dar sumiço nele. Porque sua frase vai valer pra mim como um precioso presente…” disse Lenilda, pegando o livro e entrando na delegacia com as abelhas grudadas na cabeça.

Ao lado do pé de tílias, em floração exorbitante, Pedro sentia-se com cara de zangão desvalido. Ou com cara de Spencer Johnson, para quem preferir.

[Este texto integra a série intitulada CHAPOT PRESVOT 272, de Luiz Guilherme Santos Neves]

Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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