Voltar às postagens

O rio Sanguaçu

Incêndio no mar.
Incêndio no mar.





Os índios. – O senhor X… – Travessia do rio até Vitória. – o navio incendiado. – Vitória. – Tenha paciência! – Nova Almeida. – Santa Cruz. – Um pórtico de catedral visto de frente e de perfil. – O rio Sanguaçu.[ 1 ] – Cenas e paisagens.

Muitas vezes perguntei aos franceses residentes de longa data no Brasil onde poderia encontrar índios, sem receber porém nenhuma resposta satisfatória. Segundo a maioria desses senhores, os índios quase não mais existiam, sendo uma raça perdida; parecia-me, no entanto, que ainda deviam restar alguns, espalhados pelo país. Eu os queria encontrar a qualquer preço. Negros eu vira na África. Há negros até em Paris. Não fazia questão deles. Finalmente, um dia, ouvi falar de um italiano que, morando há cerca de oito anos no interior do Brasil, tinha comprado terras nas florestas virgens da província do Espírito Santo e se dedicava ao comércio de jacarandá. Esse deveria ter informações a respeito dos índios. Manifestei o desejo de conhecê-lo e prometeram-me apresentar-me a ele logo que viesse ao Rio. De fato, trouxeram-no ao meu estúdio, precisamente num dia em que eu fazia o retrato de corpo inteiro de uma brasileira encantadora e espirituosa, a filha do ministro dos negócios estrangeiros. A oportunidade era boa para o italiano que, naturalmente, carecia de proteção. Fiz tudo para lhe pagar antecipadamente a hospitalidade que ele estava feliz, segundo dizia, por oferecer-me. Intercedi em seu favor mais do que teria feito por mim mesmo, e, se ele não se aproveitou da boa vontade com que me cumulavam, foi um pouco por sua própria culpa. Não poupou, aliás, nenhuma fórmula de agradecimento comigo. Portanto, bastava-me confiar nele para superar todas as dificuldades da viagem; tudo que era dele seria meu, e ele se apressaria em pôr à minha disposição a sua casa e todo o seu pessoal. O que chamava de todo o seu pessoal eram índios. Fiquei maravilhado. Decidiu-se então que me embrenharia nas regiões mais selvagens sob a orientação e proteção de senhor X...[ 2 ]

Na hora de partir, veio-me à cabeça fazer uma coisa de que não tinha qualquer experiência: fotografia. Assim, comprei instrumentos desencontrados, produtos avariados, e mais um livro para estudar em viagem.

No dia 2 de novembro, embarcamos no navio Mucuri,[ 3 ] que levava a reboque um pequeno vapor destinado a subir o rio do mesmo nome. O mar estava péssimo; ventava. O vapor a reboque atrasava sensivelmente nossa viagem. A maior parte dos passageiros eram colonos alemães que iam engrossar o número de seus compatriotas já instalados nas margens do rio. Nosso navio não era muito grande, e várias pessoas tinham de dormir em beliches construídos na coberta. Eu era uma delas e, como o navio jogava muito, tomei a decisão de ficar na posição horizontal o dia inteiro; não era esse porém o único motivo para me manter deitado: andava doente já algum tempo por excesso de trabalho e também porque vivia comendo muitas frutas e coisas salgadas. Ultimamente vinha sofrendo de insônia, e além disso era tempo, como todos diziam, de sair da cidade. À entrada do inverno, a terrível febre amarela faz fugir todos aqueles cujos recursos o permitam. No entanto, na terceira noite de navegação,[ 4 ] o sono, cujas doçuras há algum tempo eu não experimentava, acabava finalmente de envolver-me quando uma explosão terrível me despertou em sobressalto: um grande clarão, parecendo brotado do mar, refletiu-se em nossos mastros e cordames num brilho sinistro; gritos se fizeram ouvir do navio a que estávamos atrelados; a esses gritos sucederam gemidos, e à luz avermelhada sucedeu também a escuridão mais profunda. Botes foram deitados ao mar, apesar do perigo de naufragarem.

Incêndio no mar.
Incêndio no mar.

Foi preciso um certo tempo para se entender a natureza do sinistro . Deve-se saber que os navios brasileiros são em grande parte tripulados por marinheiros negros; falta-lhes um pouco de habilidade, apesar da boa vontade dos oficiais. Um homem se postou junto às amarras, com um machado na mão, e, apesar do vento e da escuridão, vi afastar-se, finalmente, um primeiro bote, que se perdeu completamente nas trevas espessas; outro não pôde fazer o mesmo: foi empurrado com força pelas ondas e quase se partiu.

Viam-se, ainda, com terror, pequenas centelhas elevando-se de segundo em segundo acima do navio. Bem longe de nós, então, ouvíamos um barulho confuso, queixas longínquas; o vento as levava; vozes de lamento, misturando-se com o barulho das ondas, vinham de momento em momento trazer inquietação a nossas almas. Finalmente, um ponto se ergueu entre duas ondas, perdeu-se, reapareceu e, no meio de um silêncio de morte, trouxeram para o navio três corpos que quase não tinham mais forma humana. Soubemos então que, para não atrasar a nossa marcha, os homens a bordo do pequeno vapor a reboque tinham esquentado a caldeira além da medida, fazendo-a explodir. Um incêndio começava a se propagar quando, felizmente, os marinheiros do bote chegaram bem a tempo de apagá-lo, cortando as partes já destruídas e prestando os primeiros socorros a seus infelizes companheiros. Esses homens não estavam mortos, como de início se acreditou; envolvidos em lençóis umedecidos com cachaça, aguardente de cana-de-açúcar, voltaram a si com a dor, sendo deitados com o maior cuidado. Decidiu-se que seriam deixados em Vitória. O médico de bordo tinha esperança de salvar dois; o terceiro, um negro, era uma chaga da cabeça aos pés. Mas esse também não morreu; revi-o muito tempo depois; sua pele estava mosqueada. Revendo-o assim, aprendi uma coisa que de outra forma nunca teria sabido: que as queimaduras em peles negras deixam marcas brancas.

Essa triste aventura nos tomou muito tempo: para que os botes pudessem chegar até o pequeno vapor, fora preciso parar as máquinas e, retomando a viagem com uma carga bem mais pesada a reboque, porque agora completamente inerte, tivemos de ancorar em alto-mar, evitando os riscos da entrada em Vitória durante a noite.

A bandeira do forte no porto de Vitória.
A bandeira do forte no porto de Vitória.

Foi somente por volta das oito horas da manhã que chegamos e, bem antes de entrarmos na cidade, trocamos algumas palavras com um personagem trepado numa carreta de canhão e armado com um megafone. Estávamos passando diante do forte[ 5 ] e, não sei se por ilusão de ótica, a bandeira que tremulava em cima me pareceu maior que o próprio forte.

A condessa de Barral tivera a cortesia de me conseguir cartas de recomendação; porque no Brasil, onde são raras as hospedarias, é indispensável a hospitalidade, e ninguém a pratica tão nobremente como o brasileiro.

Certamente eu não esperava, ao desembarcar em Vitória, encontrar compatriotas. No entanto, dois franceses estavam no cais, esperando a chegada do navio; eu tinha jantado no Rio com um deles e não conhecia o outro, mas sua simpática fisionomia me predispôs logo em seu favor. O Sr. Pénaud, depois de tentar diversos meios de enriquecer, teve a ideia de se tornar padeiro, no que foi bem sucedido. O outro conseguira terras que pretendia explorar.

Meu anfitrião italiano foi procurar pela cidade um hotel. Havia um, e que hotel! E sobretudo que cama! Mandei colocar um colchão em cima de uma mesa de bilhar e, para grande desapontamento de alguns fregueses, interrompi bruscamente as reclamações passando um ferrolho que poderia rivalizar com minha chave do palácio.[ 6 ] Morto de cansaço por causa da viagem desagradável e das emoções que são fáceis de entender, teria dormido, creio, em cima do meu bilhar mesmo sem colchão, quando por volta das oito horas da noite gritos, ou, antes, urros, que nada tinham de humano, me fizeram saltar subitamente ao chão, e me levaram até a janela, de onde pude ver uma multidão se dirigindo para um grande edifício. Esses gritos eram cantos religiosos de um grupo de pessoas de cor, useiras e vezeiras nisso e que, berrando, pensam que estão entoando preces.

No dia seguinte, meu anfitrião foi comigo apresentar minhas cartas de recomendação ao presidente da província,[ 7 ] ao chefe de polícia e a alguns ricos cidadãos. Desde o início percebei com prazer que o senhor X… sabia tirar proveito de tudo; isso me fez ter boa opinião a seu respeito. Essas cartas se referiam particularmente a mim, e ao serem lidas, ele me traduzia algumas palavras de cumprimento e de oferta de serviços, mas depois, sem transição e demoradamente, punha-se a falar de seus interesses a esses cavalheiros, recomendando-se à sua indulgência e explicando com detalhe os projetos maravilhosos que desejava realizar, com o único pensamento de ser útil ao país. Feito isso, fomos embora, e eu me perguntava se fora bem esse o objetivo da condessa de Barral ao se dar ao trabalho de pedir por mim a altos protetores essas cartas que outra pessoa utilizava em benefício próprio.

No entanto, devo reconhecer que, graças a uma dessas epístolas benevolentes, emprestaram-nos cavalos para nos transportar e um negro para trazê-los de volta. Nossas bagagens ficariam em Vitória e, assim que chegássemos a Santa Cruz, se enviariam canoas para buscá-las. Como tivesse tempo, fui percorrer a cidade e os arredores. Aí vi índios pela primeira vez, concentrados numa espécie de subúrbio. Esses índios, bastante numerosos, já eram, para meu gosto, muito civilizados; sua habitação não se poderia chamar de casa, nem tampouco de cabana. Entrei em várias dessas moradas; em quase todas, as mulheres faziam renda de bilro; em todas havia um periquito preso a um pau fixado na parede. Vi nesse passeio alguns papagaios em estado selvagem.

No dia seguinte os cavalos estavam à nossa porta; só que as selas tinham sido esquecidas, e para obtê-las foi necessário correr a cidade, o que nem sempre era fácil, porque certos bairros ficam sobre colinas; as ruas, muito freqüentemente, não são mais do que pedras sobre as quais se escorrega a cada passo. Enfim, o jeito foi sair de casa em casa, ouvindo meu companheiro repetir mil vezes, com gestos de desespero: um cavalo sem selim![ 8 ] — frase que todos repetiam, indo embora, levantando os olhos para o céu: um cavalo sem selim! Mas ninguém deixava de nos consolar com estas duas palavras, que são típicas da língua portuguesa, como o goddem na Inglaterra, o dam na França: Tenha paciência.[ 9 ]

O naturalista a cavalo.
O naturalista a cavalo.

Como nossa desdita estava se tornando quase uma calamidade pública, pessoas prestativas se espalharam por todos os lados, e duas selas guarnecidas de estribos nos foram trazidas triunfalmente, permitindo-nos partir de uma vez por todas.

A região que percorremos no primeiro dia era bem diferente do que eu tinha imaginado. A natureza, bem longe de ser virgem, já tinha sofrido grandes modificações. Passávamos no meio de antigos roçados, já então abandonados. Muitas vezes era-nos necessário entrar na água com os cavalos, que afundavam até a barriga, o que nos obrigava a ficar quase de joelhos e, mesmo assim, ainda saíamos molhados; uma vez, tendo ficado para trás, quando quis atravessar um rio mais largo, não peguei o caminho certo e meu cavalo foi forçado a nadar um instante. O banho foi por inteiro; infelizmente, a água estava suja, senão eu teria feito bom proveito, porque o calor era grande. Doíam-me os pés, pois os estribos, segundo o costume do país, eram tão apertados que só se podia enfiar a ponta dos sapatos. O cavalo do meu anfitrião já escorregara várias vezes, e outras tantas quase afundara nesses pântanos que encontrávamos a toda hora, o que fez com que, depois de pararmos numa barraca para um breve descanso, meu companheiro tivesse a gentileza de montar no meu cavalo, dizendo-se mais habituado do que eu a esse tipo de estribo. Fiquei muito sensibilizado com tanta consideração, que me fazia trocar uma boa montaria por outra ruim.

Tinham-nos dado para comer no caminho um pão com fatias de salame.[ 10 ] A massa era tão grossa que, com a ajuda do salame, eu teria, depois de provar, dado tudo no mundo por um copo d’água; não dessa água utilizada pelos cavalos, bois, etc., mas água fresca e pura. Deixei meu hospedeiro seguir na frente e, chamando o negro que nos guiava, tentei fazê-lo compreender, em mau português, que tinha sede; ele entendeu, sem dúvida, uma parte do meu discurso, porque pouco tempo depois me fez notar a uma pequena distância, através dos matos altos, alguma coisa branca. Água! água! e eis-me correndo a galope. O pequeno fugitivo do navio Tynes[ 11 ] me voltou forçosamente à lembrança porque, infelizmente, o que vi era um braço de mar cuja água salgada não me convinha.

A lembrança recente do verdelhão morrendo de sede no meio da água não era a única que então se apresentava ao meu pensamento. Lembrava-me também do primeiro dia de uma travessia no deserto, em companhia de ingleses. No almoço, tínhamos comido camarão e bebido champanha. Por volta do meio-dia, a sede chegou; já sentindo bem o quanto vale um copo d’água, dirigimo-nos alegremente para um belo lago em que se refletiam com nitidez algumas palmeiras esparsas aqui e ali na areia. Qual não foi nossa decepção: era miragem! Contudo, não nos importamos muito, porque mais adiante havia água de verdade. Uma tropa de camelos, tropeçando nas longas pernas, passava tão perto dela que se multiplicava com nitidez nessa água transparente como um espelho: ai de nós! era miragem de novo, diante de nós, atrás de nós, ao lado, sempre esses mesmos lagos fantásticos. O sol esmorecia-nos o ânimo e, no entanto, certos de estarmos outra vez enganados, nos enganávamos sempre, dizendo: ah, se dessa vez fosse água. Foi assim que se passou esse primeiro dia, começado com camarões e champanha.

Agora a massa com salame tinha produzido a mesma necessidade, que no lugar não havia como satisfazer. Alguns índios estavam esperando ali com canoas, porque de Santa Cruz a Vitória aquela era, eu acho, a única passagem. Prendemos nossas montarias na embarcação, e a curta travessia ocorreu sem acidente. Corno estávamos molhados, o inconveniente de remontar a cavalo foi coisa à toa, ainda mais que teríamos ocasião de tomar outros banhos forçados.

Eu já havia notado magníficos insetos, alguns voejando, outros pousados nas folhas. Chamei o negro e aí acabou-se a monotonia do lugar, porque comecei uma caçada muito proveitosa, não somente pelos espécimes que eu mesmo indicava, mas por aqueles que o negro descobria sozinho, com esse instinto de animal selvagem, essa visão perfeita que as pessoas de cor geralmente têm.

Mesmo comendo, íamos avançando, apesar das poças d’água; várias vezes tivemos de entrar por caminhos muito estreitos, cobertos de sombra, saindo deles para andar algum tempo pela praia. Aí, nova caçada, novo esboço de coleção; depois dos insetos, vinham os mariscos. Se não me matavam a sede, pelo menos essas distrações me faziam esquecê-la tanto quanto possível.

Finalmente avistamos fumaça por entre as árvores; era tempo de chegar; só que faltava ainda apear do cavalo; eu estava arrebentado dessa primeira marcha; além do mais, o animal, tão prestativamente cedido por meu anfitrião em troca do meu, era por coincidência muito manhoso, o que ele, sem dúvida, não sabia; isso me deixara cauteloso, o que veio somar-se ao cansaço provocado pelo sol e pela marcha forçada; quando quis apear, tive grande dificuldade. Os estribos estavam muito baixos, ajustados para as pernas do meu companheiro, mais longas que as minhas. E, como não quisesse depender de favores que me levassem ao ridículo, aproveitei as sombras da noite para tentar apear-me sozinho, com todas as caretas necessárias, conseguindo, ao cabo de uns quinze minutos, cair no chão com um baque surdo. Estávamos na aldeia indígena de Nova Almeida, habitada outrora pelos jesuítas. No meio da praça existe ainda uma grande pedra onde os padres mandavam prender os índios culpados de algum delito. A influência e o poder dos jesuítas sobre esses pobres selvagens, mal instruídos com as primeiras noções do cristianismo, eram tais que se perpetuaram nessa província de geração em geração, e ainda hoje eles respeitam profundamente os padres.

Banho de fonte.
Banho de fonte.

Minha primeira ação, ao levantar-me, como se pode adivinhar, foi beber e lavar-me numa fonte, onde fiquei algum tempo, sem me saciar desse prazer tão desejado. Depois desse banho, porque certamente posso chamar assim os incontáveis mergulhos que ali me permiti, me dei conta de que há muito se passara a hora de jantar. Com o cansaço da estrada e o consumo do pão com salame, que, aliás, repartira com dois cães no caminho, o apetite me chegou; meu anfitrião tinha na aldeia um conhecido que nos daria uma cama, mas, quanto a comida, como o dono da casa era pobre, seria indiscrição pedir qualquer coisa. Isso ele falava bem à vontade, tendo já comido religiosamente a sua ração; eu o tinha visto mordiscando alguma coisa, daí por que lhe era fácil esperar. Quanto a mim, dispus-me a dar um giro pela aldeia, para pedir a esmola de um Maço de pão; ele me suplicou que não o fizesse, sob pena de desagradar àquele que tão generosamente nos dava hospitalidade; era seu compatriota. — Mas não se preocupe, disse ele, ao nascer do dia faremos provisões antes de nos pormos em marcha. — Parecia duro deitar assim sem cear, sobretudo para quem não jantou. Começava a perceber que o companheiro, em cujas mãos me entregara tão irrefletidamente, não tinha por mim a mesma consideração que, em caso semelhante, eu teria tido por ele; mas, comprometido com ele como estava, era preciso resignar-me.

No dia seguinte, fiel à sua promessa, ele veio bater à minha porta às três horas da madrugada: como não quis fazê-lo esperar, logo me pus de pé; saí para selar meu cavalo mas, quando voltei à casa, o senhor X… não se encontrava mais lá; procurei-o em vão. Felizmente não tinha esquecido da expressão: Tenha paciência. Esperei até as sete horas, depois pus-me de novo a percorrer a aldeia, onde sem dúvida ele tinha conhecidos que o faziam esquecer que eu estava pronto há quatro horas. Começava a sentir algum temor, quando o encontraram na cama, dormindo sono profundo. É inútil dizer que lhe fiquei cada vez mais agradecido.

A igreja de Santa Cruz vista de frente.
A igreja de Santa Cruz vista de frente.

O trajeto, como na véspera, se fez metade pela praia, metade pelas trilhas abertas no meio da mata. Mas, à medida que avançávamos, a região adquiria um aspecto mais pitoresco; naquele dia vi, pela primeira vez, orquídeas pendentes das árvores. Passamos por alamedas de cactos gigantes cujo caule chega a ter trinta a quarenta pés de altura; serve para substituir a cortiça, sendo vendido em pedaços nos mercados do Rio;[ 12 ] como ninguém me avisou disso, trouxe um estoque deles comigo. Se era leve, em compensação ocupava muito espaço. Como no dia anterior, meu companheiro ia na frente; deixei-o ir e, sempre acompanhado pelo negro, transformado em apaixonado entomólogo e conquiliólogo, continuei minhas coleções sem apear do cavalo. Tínhamos almoçado muito bem, carne-seca com feijão; por precaução, trazíamos não somente vinho, mas também, muito oportunamente, dessa vez, uma moringa d’água; pois encontramos naquele dia várias fontes de água muito fresca. O calor, pelo meio do dia, ficou opressivo, e agoniava-me deixar a sombra das árvores para retomar a marcha pela praia. Ressentia-me ainda dos sofrimentos por que passara no Rio, cujos sintomas indicavam uma doença que, nos países quentes, costuma ser fatal; estava ansioso por chegar. Como o resto da viagem seria feito em canoa, fiquei muito feliz quando, da praia, percebi ao longe um campanário que se desenhava contra o céu; só podia ser Santa Cruz. Contava com alguns dias de far niente,[ 13 ] porque teria de aguardar o regresso das canoas com nossas bagagens. Como não me informaram que eu ia para um lugar importante e como eu pensava que Santa Cruz fosse simplesmente uma aldeia indígena, não foi sem surpresa que vi uma igreja de aparência imponente. Foi preciso atravessar a mata para chegar à vila, e, quando desembarcamos na planície, vi muitas choças cobertas com folhas de palmeira e algumas casinhas caiadas; vi muitos pescadores, e também mulheres da cor de pão queimado, vestidas de amarelo, rosa, laranja, os pés descalços; aqui e ali, alguns senhores de terno preto, gravata branca e mãos sujas.

O campanário, porém, desaparecera e, no entanto, como podia ter-me enganado? Tinha a mesma forma dos campanários espanhóis, portugueses e brasileiros em geral. De longe, com a ajuda desse sol que permite distinguir uma mosca a cem pessoas, tinha-o visto perfeitamente, pintado de branco, com ornamentos, vasos esculpidos e sinos; estava certo da existência dos sinos, ainda mais porque os tinha ouvido tocar. Que pensar da ausência de um objeto que certamente não havia imaginado? Não podendo permanecer nessa incerteza, decidi pedir ao meu companheiro que me esclarecesse esse enigma: mostrou-me então uma parede de três pés de largura que, por ser muito alta, não me passara despercebida, não lhe dando mais atenção porque estava à procura do monumento desaparecido. Preparava-me para questionar o meu vizinho quando, tendo-nos aproximado mais, um poema inteiro se desenrolou diante dos meus olhos, revelando-se a mais completa obra-prima do orgulho, na sua mais ingênua expressão. Essa parede era efetivamente a igreja destinada a causar efeito sobre o povo, porque se, de perfil, só tinha três pés de largura, de frente tinha a forma de uma fachada. Através das janelas superiores viam-se dois sinos que deixavam pressupor os que não se viam. Ornamentos e vasos esculpidos davam a esse monumento um exterior grandioso, prelúdio das riquezas de arte que não podiam deixar de decorar o interior. Eis aí o que eu tinha entrevisto; e eis aqui o que vi de outro ângulo. Essa parede tão bem ornamentada de frente era solitária; apoiava-se em contrafortes que a defendiam do vento; os que subiam os degraus dessa catedral passavam pelo vão aberto na parede e desciam por trás para entrar na igreja, uma barraca triste pouco maior que as outras cabanas. Quanto aos sinos, podia-se ver agora um andaime onde comodamente se instalara o sineiro para tocar o carrilhão. Tudo fora feito exclusivamente para atender as aparências, pois a própria parede só recebera reboco e caiação na parte da frente; a parte de trás só exibia pedras brutas, mas que importa? A honra, ou antes, o orgulho, estava satisfeito.

Meu anfitrião tinha uma pequena casa na cidade; mas tão abarrotada de caixas e pacotes que, não querendo desarrumá-los, pediu emprestado para mim, a um vizinho, um grande cômodo úmido que servia de depósito de cal. Varreram um canto para meu colchão e transformaram em toalete um barril de bacalhau.

Enquanto tomavam tais providências, acreditei que poderia me pôr à vontade, apesar da suntuosidade da igreja e apesar dos ternos negros usados por certos indivíduos que são verdadeiras personagens, porque em suas lojas se encontram vasilhas com rachaduras, pólvora sempre estragada e fósforos invariavelmente úmidos.

Apesar de toda a aparência aristocrática dos habitantes de Santa Cruz, cometi a impropriedade de me livrar das botas e de sair passeando na relva que cresce abundante nas ruas; daí cheguei à praia, onde me deitei na areia, sob as árvores de mangue que tinha visto de longe. Era ainda ingênuo a ponto de acreditar que se pode dormir ao ar livre no Brasil; assim que me deitei, fui atacado por insetos de toda ordem: como pregar olhos, coisa que porém eu precisava tanto fazer? Tive então de sair dali, voltando à casa para deitar-me no colchão que me tinham preparado; como, no entanto, segundo disse, tinham acabado de varrer o cômodo, me vi obrigado a suportar uma nuvem de cal. Meu anfitrião, cuja extrema decência nunca se desmentiu, veio informar-me pressuroso que os comerciantes tinham adivinhado logo que eu era um colono ou um novo criado destinado a substituir sua cozinheira, com quem ele não andava satisfeito. Como se pode supor, foi-me muito agradável saber o lugar honroso que eu ocupava na opinião publica.

No dia seguinte, mandou-se alguém procurar índios para buscar nossas bagagens em Vitória. Infelizmente, o tempo não ajudou; leves canoas feitas de tronco de árvore não podem lutar contra o vento; era preciso esperar. Travei então conhecimento com o padre,[ 14 ] um jovem sem preconceito, que não recuava diante de uma garrafa de porto ou de aguardente, nem diante de muitas outras coisas. Mas como, após alguns dias, ele tivesse declarado aos que não davam nada por mim que eu parecia ter alguns conhecimentos a respeito de diversos assuntos, embora francês, restringirei a isso as minhas observações. Esse padre me emprestou um fuzil e, munidos de pólvora e chumbo, partimos um dia bem cedinho numa caçada em que rivalizamos em imperícia. Se de lá para cá me tornei excelente caçador, não dando nunca um passo sem meu fuzil, primeiro por diversão, depois, mais tarde, por necessidade, a coisa antes era bem diferente. Era antiga a minha aversão pela caça em conseqüência de um acidente em que quase matara um dos meus companheiros.

Sentindo instintivamente que dia viria em que teria necessidade de saber atirar, saía todos os dias ao campo para treinar tiro ao alvo; tão bem que, quando chegou o dia da partida, eu já estava em condições de fazer maravilhas.

O vento sempre contrário fez regressar os índios ao sertão, à espera de uma mudança. Enquanto isso, eu ia de cabana em cabana, olhando tudo, pedindo para explicarem o uso de cada objeto, passeando na praia e procurando mariscos, sempre seguido por um bando de crianças que, logo que compreenderam o que eu procurava, se dedicaram, por sua vez, à tarefa. Foi assim que, graças aos seus olhos, melhores que os meus, achei um lugarzinho repleto de mariscos microscópicos em perfeito estado de conservação. Graças aos meus ajudantes de história natural, aumentei minha coleção de insetos. Vários deles, tendo pegado pássaros num alçapão, vieram oferecê-los a mim. Eu não era um estrangeiro para eles; mas o que eu ganhava em importância junto aos índios adultos e crianças, perdia junto aos brancos, o que me importava muito pouco.

Sabe-se já que a cidade de Santa Cruz possui uma fachada de catedral. Não vi lá nenhum outro monumento digno de ser citado, a não ser uma fonte recentemente construída.[ 15 ] O resto é pouca coisa: casinhas alinhadas sem simetria, mato crescendo por toda a parte nas ruas, um pequeno porto protegido por quebra-mares. Durante minha permanência forçada, ouvia todo dia a tripulação de três navios que carregavam madeira cantar canções bem monótonas, seja virando o cabrestante, seja erguendo peças de madeira. Decidi, quando passasse por ali, tapar os ouvidos para não guardar essas notas na minha memória; inútil cuidado, porque hoje, ao escrever, me apercebo de que as canto por inspiração. Geralmente é palissandra essa madeira que se envia para o Rio e de lá para a Europa; na região chamam-na de jacarandá.

Os donos de terras que fazem esse comércio se limitam principalmente a essa espécie; do interior de Santa Cruz só trazem os troncos, cortados à altura dos primeiros galhos. Ali serram-nos em dois, antes de embarcá-los.

Com o tempo de novo favorável, mandou-se buscar os índios. Foi preciso bater vários lugares; eles vieram com relutância, e pude ver que a viagem não lhes agradava, nem tampouco aquele que os mandava chamar. Não pareciam ter pelo italiano muita consideração. As canoas finalmente partiram; o vento foi excelente na ida mas, como não mudou na hora de voltarem, o regresso foi outra coisa.
Três semanas se passaram. Todo dia eu consultava o vento: sempre o mesmo. Enfim chegou, e as canoas voltaram, mas em que estado! Nossos bens deteriorados, nossas malas encharcadas. Nem houve tempo de esperar, e o dia da chegada foi o da partida, e dessa vez a viagem seria longa. Três canoas foram carregadas com diversos produtos. Eu os tinha trazido de Vitória, e sobre eles me tive de instalar de maneira bastante incômoda. Vendo isso, meu anfitrião, sempre atento ao meu interesse, foi para outra canoa, deixando-me na minha, que era a mais abarrotada.

Foz do rio Sanguaçu.
Foz do rio Sanguaçu.

À força de remos começamos a subir o rio Sanguaçu.[ 16 ] ainda sob a influência do mar, o que era fácil de ver, pois florestas de mangue esticavam suas raízes entrelaçadas para dentro d’água. Uma meia hora depois da partida, um aguaceiro veio abater-se sobre nós, o que se repetia de quinze em quinze minutos; meu guarda-chuva se quebrou, as malas ficaram inundadas e a canoa ficou de tal modo cheia d’água que, se um dos índios não se tivesse apressado em esvaziá-la, teríamos inevitavelmente naufragado. Não dispondo de vertedouro nem de balde para esse caso urgente, ele teve a feliz ideia de usar um copo, ao mesmo tempo que os outros empurravam a canoa para a margem.

Chegamos a salvo e ficamos esperando que o tempo melhorasse. Não tendo mais a temer um banho forçado, empreguei a meia hora que passamos presos num rochedo a calcular quantos dias seriam necessários para esvaziar nossa embarcação com o copo que o índio usara, chegando à conclusão de que três dias teriam bastado.

Finalmente o céu ficou azul e pudemos continuar nossa viagem. Aproximávamo-nos agora das matas virgens. O rio era largo; ao longe eu via grandes aves brancas, que eram garças-reais, e garças com bico azul-celeste, ornadas de penachos que caíam de cada lado da cabeça, e martins-pescadores gigantes, etc.

Perto de nós passou uma pequena piroga tripulada por um jovem casal, o marido ao leme, a mulher no meio, segurando nos braços um ramo de árvore que servia de vela. Era um tema encantador para um quadro; essa pequena canoa, levada assim pelo vento, desapareceu em pouco tempo.
Eu estava chegando finalmente às florestas virgens tão desejadas. Ia ver uma natureza quase desconhecida onde nunca passou o machado. Pés humanos nunca pisaram essa terra. Parecia-me que uma vida nova se tinha revelado a mim; essa tendência de perceber o lado ridículo das coisas observadas até então dava lugar a pensamentos graves, a um recolhimento quase religioso; cada remada, levando-me para mais perto dessas cenas grandiosas, apagava pouco a pouco a lembrança do passado. O rio se estreita sensivelmente, as duas margens se aproximam, as árvores de mangue desaparecem, a água doce substitui a água salgada, plantas aquáticas escondem a margem, e depois vêm árvores imensas, inteiramente cobertas de parasitas em flor, dessas orquídeas tão adequadamente chamadas de filhas do ar, vivendo sem raízes, suspensas freqüentemente a cipós, sem que se possa entender como e por que o acaso as colocou lá.

O rio Sanguaçu.
O rio Sanguaçu.

O rio se torna pouco a pouco tão estreito que é necessário abaixar-se a fim de evitar as árvores inclinadas pela ação da água que tirou o ponto de apoio de suas raízes. A cada momento passamos por baixo das arcadas formadas por miríades de palmitos de troncos tão frágeis, tão delicados, que parece, vendo-os de longe, que o menor sopro de vento é capaz de quebrá-los.

Meu anfitrião não compreendia minha admiração, vendo-me extasiado à vista das formas estranhas que as plantas trepadeiras, carregadas de flores, davam às árvores que envolviam, a ponto de fazê-las tomar todos os aspectos que a mais rica imaginação pode conceber. Não eram somente as minhas sensações que me faziam ver templos, circos, animais fantásticos, transformados, a cada passo que dávamos, em outras imagens; porque, nessa parte do rio, cada árvore se tornara presa dos cipós, que a enlaçavam de todos os lados, subindo até à copa, descendo em cachos entrelaçados, depois subindo para descer de novo, formando por toda parte redes inextricáveis, sempre verdes, sempre floridas.
Do alto dessas árvores caíam, como cordames de um navio, outros cipós, tão regulares que se poderia tomá-los por obras de arte; a esses cipós se penduravam famílias de saguis que nossa presença não espantava, e que nos olhavam com curiosidade, soltando gritinhos semelhantes a assobios.

Em todas as coisas há contrastes. Um deles eram horríveis caranguejos que, à nossa aproximação, fugiam com a força de suas patas de pinças formidáveis, e sapos do tamanho de um gato, cujo olhar, no entanto, é meigo, sob um envoltório repulsivo. Chegou um momento em que avistamos de um lado uma clareira. Tinham derrubado as árvores para roçar, deixando porém uma fileira delas de pé. O rio, assim resguardado da luz do sol, tornava-se o lugar mais agradável do mundo para o banhista: uma areia fina e amarela como ouro me convidava a aproveitar a oportunidade, mas tive de reprimir o desejo dessa vez, porque estávamos chegando ao fim da viagem.

Meu quarto.
Meu quarto.

Minhas impressões poéticas se dissiparam imediatamente ao pôr o pé em terra. Primeiro vi, num outeiro, uma cabana maior do que as dos índios de Santa Cruz, um grande terreno plano, cortado por poças d’água e coberto de mato, e depois, até onde alcançava a minha vista, matas virgens, cujo aspecto não me interessava mais. Para fazer o roçado de que falei, tinham queimado por toda a parte as árvores derrubadas, assim como as plantas parasitas das que tinham ficado em pé. Por isso essas últimas me pareciam magras e descarnadas. Como o entusiasmo não é um estado normal, de tanto admirar eu não admirava mais; além disso, a visão do hospedeiro em cuja casa eu ia passar seis meses teria bastado para esfriar a minha imaginação; finalmente, sem que pudesse explicar por que, sentia-me triste e desencantado no momento de realização dos meus desejos mais caros. Os índios do lugar vieram buscar as coisas, que eram difíceis de carregar outeiro acima por causa do capim escorregadio. Levaram primeiro tudo que pertencia ao patrão, conforme ordem dele. Quanto a mim, sentado num tronco de árvore, observava em silêncio as atenções delicadas de que eu era alvo. Minha vez chegou, contudo. Conduziram-me ao meu novo lar; acontece que o quarto com que me homenageavam estava repleto de caixas, barris e pacotes de carne-seca. Impossível entrar lá.

Retirei-me, então, e fui sentar-me de novo no capim, esquecido do que me acontecera em Santa Cruz: uma nuvem de insetos veio me fazer lembrar. Forçado a voltar à casa, fui, enquanto esperava o jantar, visitar a cabana por dentro e por fora. Na cozinha, de uma sujeira impossível de descrever, uma velha índia assava um tatu estendido por cima da brasa, e o acreditei destinado à nossa refeição. O fogão, no meio do cômodo, se compunha de uma dúzia de pedras; à direita e à esquerda do fogo havia bancos, onde estavam dormindo os índios que fizeram nossa mudança. Enganava-me com relação ao tatu: nosso jantar se preparava à parte; uma jovem mulata estava encarregada dele. Meu anfitrião, esquecendo que eu não sabia onde me instalar, talvez até mesmo que eu existia, conversava com o feitor[ 17 ] ou, como se diz nas colônias, seu capataz. Continuei então minha visita e, depois da cozinha, tive tempo de examinar, inteiramente à vontade, a sala de jantar, onde encontrei um pequeno sagui bravo que mordia todo mundo, seis ou sete cães esqueléticos, outro tanto de gatos grandes e pequenos, galinhas, patos, bacorinhos; tudo vivendo familiarmente com os donos e cometendo, como pude verificar mais tarde, muitas ações repreensíveis durante as refeições. Finalmente, o dono da propriedade veio me dizer de maneira muito amável: “Meu bravo, vamos jantar!” Fiquei lisonjeado com o epíteto, e fui jantar.

Depois da refeição, o melhor que havia a fazer era deitar. Foi então que o cansaço me fez achar o colchão estendido no chão tão bom quanto a melhor cama. O local em que me haviam colocado de mistura com tantos pacotes só tinha, como todo o resto da cabana, para me resguardar do sol ou dos insetos, um pedaço de pano esbranquiçado de algodão preso com pregos.

Nessa primeira noite ouvi gritos de todos os lados; vários me pareceram muito desagradáveis… sobretudo o de uma ave de que me tinham falado. Essa ave, que os índios chamam saci porque parece pronunciar essas duas sílabas, é para eles motivo de superstição; acreditam que sob a forma dela subsiste a alma de algum parente. Passei mais tarde muitos dias tentando caçá-la: guiado pelo seu grito, avançava lentamente, com cautela, retendo a respiração; de repente, ela se calava e, quando eu dava um passo a mais, o grito se repetia, mas atrás de mim. Nunca pude vê-Ia. Inclinado à tristeza, como estava desde minha chegada, esse grito, que ouvia pela primeira vez, me impressionou muito. Não podendo dormir, fiquei à janela; fui recompensado pelo espetáculo que se ofereceu a meus olhos.Na sombra projetada pelas florestas que nos cercavam ao longe, do sopé do outeiro até o cume, miríades de moscas luminosas brilhavam como se fossem estrelas. Esqueci logo o saci, os gritos agudos das garças, os urros dos gatos selvagens, diante desses fogos de artifício naturais; teria passado ali o resto da noite, se insetos de toda ordem não me tivessem obrigado a fugir e a me refugiar atrás da minha cortina com seus pregos.

Meu hospedeiro.
Meu hospedeiro.

No dia seguinte, pedi ao meu anfitrião para esvaziar o meu quarto. Ele achou mais do que justo, mas só cuidou de mandar desfazer as suas malas e arrumar tudo que era dele. Vários dias se passaram assim. Tive tempo de pensar em todos os favores que prestara a esse personagem para garantir sua colaboração. Não me empenhara em expor e recomendar seus planos de colonização ao imperador? Ele próprio me dissuadira de trazer dinheiro, encarregando-se, dizia, de me custear todas as despesas. Quando voltasse ao Rio comigo, eu o reembolsaria. Eu estava, pois, à sua mercê. A perspectiva não era animadora. Achava-me sem socorro, sem dinheiro, não podendo ir embora sem depender daquele que eu queria deixar, seja para obter canoas ou homens, seja para pagar minha passagem de volta; todos esses pensamentos, essa situação, esse impasse em que estava acuado me tolhiam completamente a felicidade que eu pretendia atingir. Não podendo suportar por mais tempo tão inconveniente conduta, na noite do terceiro dia interrompi uma conversa do meu anfitrião com o feitor para declarar-lhe que estava farto de sua hospitalidade, o que o espantou muito; e não o espantei menos ao afirmar que, se ele estivesse no meu lugar e eu no dele, a primeira coisa que eu faria seria preocupar-me com suas coisas e não com as minhas. Ele custou a crer; porque, dizia ele, não tinha ficado combinado que agiríamos sem cerimônia? Era verdade. Mas, como as quotas de sem-cerimônia não eram iguais, pedi-lhe que me desse os meios de regressar. Essa primeira discussão não teve outro resultado senão o de servir de desabafo, e eu permaneci no alojamento .

Instalado.
Instalado.

No dia seguinte consegui a ajuda de um operário que, armado com martelos e sobretudo com verrumas, veio ajudar-me a fabricar um pequeno laboratório para meus primeiros ensaios de fotografia. Se mencionei as verrumas em especial foi porque as madeiras do Brasil, de tanto que são duras, não se deixam simplesmente furar por pregos. O que se chama prancha no Brasil pesa como nossos pranchões na Europa. O pequeno cômodo destinado a me servir de gabinete, de oficina, de quarto de dormir e de laboratório de história natural só recebia iluminação da porta. O telhado, coberto por folhas de palmeira, avançava muito para a frente e dava mais sombra do que devia; mas o que era de certa forma um inconveniente compensava pelo conforto de evitar um pouco o sol. Na minha instalação, as pranchas maciças e os barris vazios desempenharam os papéis principais. Dois barris serviram de mesa, e como cadeira usei uma caixa de velas. Com uma velha esteira improvisei uma porta. Só tinha espaço para entrar e sair, mais nada. No sentido do comprimento do quarto dispus em prateleiras as duas maiores pranchas, enchendo os dois barris maiores com mil objetos necessários. À toda volta do gabinete se espalhavam minhas roupas, preenchendo os espaços vazios das pranchas, já tomados em parte com papel. Arrumei então as ferramentas de cada uma das atividades que pretendia executar na mata. Dispus em quadrado, sobre as pranchas, pequenas achas de madeira formando compartimentos em que coloquei, em primeiro plano, a caixa de cores e os papéis de desenho destinados a compor mais tarde um álbum. Em seguida vinham os frascos, os alfinetes para insetos, as pranchetas de aloés que eu tinha serrado e passado na lima. O terceiro compartimento continha, escalpelos, tesouras, o sabão arsenical para conservar o produto de minhas caçadas; finalmente, num quarto compartimento ficavam os produtos químicos, as balanças, e o livro no qual pretendia aprender os primeiros elementos de fotografia, arte em que era tão ignorante então quanto na de preparar os animais que, aliás, nem tinham ainda sido mortos.

Meu anfitrião, com quem eu já fizera as pazes, escolheu para mim, dentre vários fuzis novos, de fabricação belga, que ele vendia aos índios, o único que não era quase imprestável, não querendo ser meu inimigo o bastante para me pôr nas mãos um fuzil de dois canos, porque a pessoa pode ferir-se se, por descuido, põe carga dupla no mesmo cano. Ele me recomendou, sobretudo, que prestasse bem atenção ao caçar, para que não ocorresse de, atirando num pássaro, acertar num dos seus bois, que gostavam de deitar no mato. Para não mais voltar ao assunto, acrescento a essa série de excelentes conselhos um outro que ele me deu mais tarde ao me ver montar a cavalo, que foi o de soltar as rédeas quando o animal quisesse beber, a fim de que ele pudesse abaixar a cabeça.

Classificados os meus diversos ramos de ofício, tratava-se agora de trabalhar; mas nem tudo estava terminado. Para fazer economia, eu tinha deixado de comprar a tenda necessária à fotografia: em pouco tempo me convenci de que não podia passar sem ela. No primeiro dia quebrei meu vidro fosco e, como as chuvas tinham chegado, a umidade fez descolar todos os meus instrumentos. Passei quinze dias consertando os danos e fazendo uma tenda para mim com a ajuda de alguns panos que achei nas malas e de saias compradas à velha cozinheira. Terminada a tenda, costurada com cuidado, adaptei-a ao meu guarda-sol de paisagista, amarrei em cada vareta uma cordinha e assim, com a ajuda de estacas cravadas no chão, pude evitar que minha máquina fosse muito sacudida pelo vento que, no Brasil, começa a soprar regularmente todo dia por volta das oito horas da manhã. Portanto, antes das oito horas, há umidade demais, depois das oito, vento demais: como fazer qualquer coisa de bom, sobretudo quando são folhas o que se tem a reproduzir? O jeito então foi abandonar a fotografia e voltar à pintura, tanto mais que as chuvas, que então caíam copiosamente, não permitiam sair. Estando os índios à mão, decidi compor um quadro; mas não tinha contado com meu anfitrião. À primeira palavra sobre o assunto, ele começou a fazer objeções. Os índios são supersticiosos, não iriam querer posar; e, quanto a ele, achava embaraçoso propor-lhes isso. Consegui, contudo, convencer e pintar um dos índios da casa. Nem pensar em convencer um segundo; o primeiro já tinha ficado muito descontente, a julgar pelo que me assegurou o senhor X…

Eu vivia querendo conseguir uma canoa e um homem para subir esse rio de que guardava ainda tantas lembranças. Esperei em vão; o homem e a canoa não apareceram. Queria também, para evitar o vento, penetrar na mata e fazer ali minhas experiências fotográficas; para tanto precisava de um homem que carregasse minha bagagem. Impossível encontrar esse homem.

Um dia, no entanto, encontrei um índio; emprestei-lhe meu fuzil, pólvora, chumbo; ele matou algumas aves; com jeito então propus-lhe que me servisse, explicando-lhe que, uma vez minha bagagem na mata, ele estaria livre para caçar enquanto me esperava. Devo reconhecer, aliás, que foi meu anfitrião quem me sugeriu a idéia de contratar alguém às minhas custas para fazer esse serviço. Aceitei, embora achando original esse procedimento num indivíduo que ia pôr todo mundo à minha disposição e que podia, sem prejuízo, me ceder um escravo por algumas horas.

Logo percebi, pelos olhares espantados do índio, que ele não me estava compreendendo; fiz-lhe sinal para vir à cabana, esperando que ali tudo se arranjasse, mas logo o meu hospedeiro o mandou embora trabalhar, dizendo-me que se tratava de um preguiçoso que não me convinha. Assim tudo me faltava, tudo me escapava, graças à hospitalidade do senhor X… Minha única atividade era a caça, quando a chuva permitia sair. Em pouco tempo me tornei muito hábil. De volta à cabana, preparava os pássaros, os mamíferos, as cobras. Quanto aos insetos, precisava de caixas para guardá-los, e eu esquecera de trazê-las. Felizmente as caixas de charutos não eram raras; serrei pequenas talas de cacto, colei-as no fundo das caixas, e pude assim guardar as minhas coleções. Mas era preciso ter pressa, porque, se eu largasse algumas horas um dos meus bichos sem prepará-lo, as formigas, em qualquer lugar, que estivesse o dissecavam em poucos instantes, começando sempre pelos olhos. Passei assim o fim de novembro e o mês de dezembro ocupado com outros afazeres que não aqueles que para mim tinham realmente importância; era-me impossível sair para fazer estudos, com essas chuvas que tinham alagado todas as trilhas. Não podia pintar as árvores do rio, a menos que entrasse n’água até a cintura, porque o rio tinha transbordado. Com o hábito de andar descalço, adquiri feridas que durante vários meses me incomodavam muito ao caminhar; eram causadas por enxames de pequenas moscas que, atirando-se às pernas, faziam vir uma gotinha de sangue a cada picada; essas picadas, multiplicadas, superpostas, se transformavam em chagas, tanto mais difíceis de curar porque, continuando a andar descalço, outros insetos, além dos dípteros, autores do mal, vinham todo dia irritá-las, sem falar das plantas armadas de farpas e de espinhos.

_____________________________


NOTAS

[ 1 ] Trata-se provavelmente do rio Piraquê-açu.
[ 2 ] Tudo indica que era Pedro Tabachi o hospedeiro italiano de Biard. Em primeiro lugar, embora não se conheça a data exata da chegada de Tabachi ao Espírito Santo, presume-se que tenha sido em 1851, ou no ano seguinte. Fotografias de Tabachi mostram-no alto e magro, usando bigodes e óculos, como no desenho feito a partir do croqui de Biard. Além disso, Tabachi tinha uma propriedade no interior de Santa Cruz e explorava o comércio de jacarandá naquele município. Dando prosseguimento aos seus planos de colonização da região — citados por Biard — Tabachi fundou em 1874 a colônia Nova Trento, nela instalando 56 famílias italianas recrutadas pessoalmente por ele na Itália, num total de 386 pessoas. O descontentamento logo se fez sentir, agravado talvez pelo caráter difícil de Tabachi (mais um ponto de contato com o senhor X de Biard), seguindo-se a revolta dos colonos e a dissolução da colônia. Maiores detalhes sobre Pedro Tabachi e a colônia Nova Trento podem ser encontrados no ensaio “A imigração italiana no Espírito Santo”, de Luiz Busatto (in Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, n.38, Vitória, 1987/8) e no livro Colonie imperiali nella terra del caffe, de Renzo M. Grosselli, parte II (Trento, Itália, 1987). Grosselli, inclusive, não tem dúvidas em identificar como Pedro Tabachi o hospedeiro de Biard. Todos os elementos utilizados na composição desta nota se devem a Luiz Busatto, que sugere, inclusive, que a jovem mulata encontrada por Biard na casa de Santa Cruz ( a “contramestra”) seria Ana Fontoura, com quem Tabachi teve dois filhos e com quem se casou in extremis pouco antes de morrer, em 1874, “ao que parece, de desgosto.”
[ 3 ] Biard grafa Mercury. Esse vapor tinha 146 toneladas de calado e fazia rota regular entre o Rio e o porto de Caravelas (cf. Levy Rocha, Viajantes estrangeiros no Espírito Santo.).
[ 4 ] O acidente ocorreu na altura da barra do rio Itapemirim (cf. Levy Rocha, op.cit.).
[ 5 ] É o forte de São Francisco Xavier da Barra (cf. Levy Rocha, op. cit.).
[ 6 ] Em capítulo anterior, Biard se refere a uma enorme chave que lhe cederam para ter acesso à noite ao palácio onde estava alojado no Rio e que, por seu tamanho, lhe causava muitos incômodos.
[ 7 ] Era o coronel José Francisco de Almeida Monjardim (cf. Levy Rocha, op. cit.).
[ 8 ] No texto original: um cavallo sam sellim.
[ 9 ] No texto original: Tenho patientia.
[ 10 ] Chamava-se matula esse alimento (cf. Levy Rocha, op. cit.).
[ 11 ] No capítulo 1, o Autor grafa Tyne. O pequeno fugitivo é um pássaro (verdelhão) que, sofrendo de sede, fugiu da gaiola para beber água salgada. Foi apanhado a tempo. Uma chuva providencial matou-lhe a sede. (N. do T.)
[ 12 ] Trata-se de articum do brejo, que servia para substituir a cortiça nas boias de rede e salva-vidas (ef. Levy Rocha, op. cit.)
[ 13 ] Em italiano, no original. Ao pé da letra. “fazer nada”, isto é, “ócio”, “ociosidade”. (N. do T.)
[ 14 ] É o padre Francisco Antunes de Sequeira, natural do lugar, que mais tarde se destacaria como poeta e escritor. As obras de construção da igreja estavam sob sua responsabilidade (cf. Levy Rocha, op. cit.).
[ 15 ] A fonte, na verdade, fora construída no século anterior, tendo sido recentemente remodelada (cf. Levy Rocha, op. cit.).
[ 16 ] É o rio Santa Cruz, no qual desaguam os rios Piraquê-açu e Piraquê-mirim (cf. Levy Rocha, op. cit.).
[ 17 ] Em português no original.

[BIARD, Auguste-François. Viagem à província do Espírito Santo. (Tradução de José Augusto Carvalho) Vitória: Cultural-ES; Aracruz Celulose; Fundação Jônice Tristão, s/d. 123p. 
Ilustrações de Édouard Riou com base nos croquis de Auguste-François Biard.]

———
© 2000 Estação Capixaba. Texto com direitos autorais em vigor. A utilização / divulgação sem prévia autorização dos detentores configura violação à lei de direitos autorais e desrespeito aos serviços de preparação para publicação.
———

Auguste-François Biard, pintor e viajante francês, nasceu em Lion, França, em 1799, e faleceu em Fontainebleau, no ano de 1882. Esteve no Brasil de 1858 a 1860,  passando também pelo Espírito Santo, e dessa viagem resultou a publicação do livro Deux années au Brésil (Paris: Librairie de L. Hachette e Cia., 1862), no qual o pintor reuniu suas impressões de viagem sobre a terra brasileira. A obra saiu com ilustrações de Riou calcadas em desenhos originais de Biard. Segundo Gustavo Barroso, essa viagem teria sido programada para pintar retratos da família imperial, retratos esses que foram, de fato, produzidos.

Deixe um Comentário