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“Ora vai, Jerônimo vai…”

Um dos capítulos interessantes do folclore, pelo qual se pode entrever a alma ingênua e simples do povo, é o que se refere às orações, rezas, ensalmos e responsos, onde a religião se entremescla à superstição, e o temor concorre com a fé inabalável e contrita nos altos poderes do céu.

A cada santo se atribui uma força ou poder que os caracteriza e lhes serve de apanágio, correndo, por sua conta, um sem-número de milagrosos feitos, que lhes vêm aumentar o caudal de crentes e devotos.

Para abrandar ou afastar trovoadas, por exemplo, conhecemos a seguinte oração a São Jerônimo, que recolhemos da amorável fonte materna:

Jerônimo se levantou,
em sua cacheirinha pegou,
e o Senhor lhe perguntou:
— Aonde vais, Jerônimo?
— Eu vou pro monte maninho,
onde não haja casa nem beira,
nem raminho de figueira,
nem estriga de linho,
nem bafo de menino,
nem pedra de sal,
nem cousa que faça mal.
— Ora vai, Jerônimo, vai,
leva esta trovoada,
que sobre nós anda armada,
para onde não haja casa nem beira,
nem raminho de figueira,
Nem estriga de linho,
nem bafo de menino,
nem pedra de sal,
nem cousa que faça mal.

Variante próxima, depara-se no livro de Joaquim e Fernando Pires de Lima, Tradições populares de Entre-Douro-e-Minho (p. 168):

“São Jerônimo se vestiu e se calçou,
Suas santas mãos lavou,
Pelo monte baldio passou,
Nosso Senhor encontrou.
O Senhor lhe perguntou:
Aonde vais S. Jerônimo?
Senhor, eu vou para o Céu,
Espalhar os trovões,
Que lá andam, levar todos.
Nosso Senhor lhe disse:
Vai, vai, S. Jerônimo:
Leva-os ao monte maninho,
Onde não há pão nem vinho,
Nem leira nem beira,
Nem ramo de figueira,
Nem pedra de sal,
Nem coisa que faça mal”

É evidente que se trata do mesmo responso e com o mesmo objetivo: “espalhar os trovões” ou “levar a trovoada que sobre nós anda armada”.

Nas duas rezas, encontramos idênticas referências ao “monte maninho”, ao “raminho de figueira”, à “pedra de sal”; à “coisa que faça mal”. Na oração em registro, fala-se também na “estriga de linho” e no “bafo de menino”. Esse “bafo de menino” (possivelmente de “menino pagão”} vamos encontrar em outra reza, variante das duas acima citadas, mas dirigida a Santa Bárbara. Está ela nas Tradições populares de Entre-Douro-e-Minho, à página 167:

“Santa Bárbara se levantou,
Se vestiu e se calçou,
Suas sagradas mãos lavou,
Por esse mundo andou,
Nosso Senhor encontrou,
E ele lhe perguntou:
Bárbara Virgem, aonde vais?
Vou abrandar a trovoada.
Vai, vai, Bárbara Virgem,
Mete-te lá num cantinho,
Onde não haja pão nem vinho,
Nem bafinho de menino,
Nem gente de cristandade.
Valham-nos, pois, a nós todos
As três pessoas divinas
Da Santíssima Trindade. (Diz-se 3 vezes)”

Também noutra oração, em que se invoca a Santo Antônio Pequenino, se fala nesse mesmo “bafo de menino”. O responso, de que se valem para o encontro de coisas perdidas, diz assim (Tradições populares, idem, p. 150):

“Santo Antônio pequenino
Se vestiu e se calçou
E o Senhor lhe perguntou:
Onde vais Santo Antoninho?
Vou desarmar a trovoada
Que em cima de nós está armada
Desarma-a em monte maninho,
Onde falte pão e vinho
E o bafo de menino.”

Santa Bárbara — como se viu — é também santa que se invoca para “abrandar a trovoada”. Variante da oração a ela dirigida e acima citada, é esta, registrada por Jaime Cortesão, em seu livro O que o povo canta em Portugal (p. 252):

“Santa Bárbara se alevantou,
Se vestiu e se calçou,
Suas santas mãos lavou,
E o caminho do Céu andou.
Lá no meio do caminho
A Jesus Cristo encontrou:
— Para onde vais, Bárbara, vais?
— Eu não vou nem quero ir,
Mas ao Céu quero subir.
Vou arramar aquela trovoada
Que lá anda armada.
Arrama-a bem arramada
Lá pra serra do Marão,
No alto serro maninho,
Onde não há vinho nem pão,
Nem bafo de menino,
Nem berrar de cordeirinho:
Só há uma serpente
Com vinte e cinco filhas,
Que lhes dá água de trovão
E leite de maldição. Amém!”

Aqui se localiza expressamente aquele misterioso “monte maninho”, situado “Lá pra serra do Marão”, lugar escuro, deserto e infestado de lobos, como se vê em Leite de Vasconcelos, que anota a velha praga: “Quando eu lhe pegar, lhe peguem os lobos do Marão”. e o dito versificado: “Bem grande é o Marão…/ Não dá palha nem grão!” (Etnografia portuguesa, vol. III, p. 209 e 214).

A invocação a Santa Bárbara, para afastar tempestades é bem antiga. Rodríguez Marin, em Cantos populares españoles (p. 411, vol. I) cita esta oração: “Santa Bárbara bendita, / En e1 cielo hay una ermita / Con papel y agua bendita”, e, em nota à página 433, informa: “Santa Bárbara es abogada contra las tempestades. Esta oración se debía de recitar ya en el siglo XVII, según colijo de Quevedo. “Entremés de la venta”:

“Tempestad de hermosura es esa cara;
No hay aguardar 1os rayos que acredita,
Sin decir Santa Bárbara bendita.”

A mesma santa é citada nesta breve invocação, colhida em Manguinhos, praia de pescadores perto de Vitória. Quando relampeja. diz-se ali, benzendo os relâmpagos: “Santa Clara clareai / Santa Bárbara aliviai!

E aqui temos mais outra santa Santa Clara — que possui o dom de limpar o céu, clarear o tempo. É conhecido de todos o velho processo de fazer parar a chuva: o caçula da casa põe-se de costas para a porta da rua ou do quintal, e atira à chuva, por baixo das pernas abertas, três punhados de cinza, dizendo, de cada vez: Clareai o tempo, Santa Clara / Clareai o tempo, Santa Clara / Clareai o tempo, Santa Clara!

Em Guarapari, quando se quer a volta do sol, diz-se também:

Santa Clara, clareai,
Santa Rita, espalhai,
Santo Antônio, mandai o sol
Pra secar nosso lençol!

E em Vila Velha e noutros pontos do Espírito Santo:

Santa Clara clariou,
São Domingos alumiou,
Vai chuva! Vem sol!

E em Vitória, também:

Santa Clara clariai!
Santa Clara estiai!

Em São Mateus, há muitos anos atrás, e não sei se ainda hoje — era corrente a seguinte invocação, rezada para o mesmo fim:

Santa Clara, fazei sol,
Santa Quitéria, mudai o tempo.
Nossa Senhora do Livramento,
Quem tem dor passa tormento.[ 7 ]

No primeiro verso vemos conferido a Santa Clara o mesmo poder de “mandar ou fazer o sol”, que, segundo rezinha anterior, era atribuição de Santo Antônio; no segundo verso, aparece-nos mais outra santa — Santa Quitéria — com influência preponderante sobre o mau tempo; os dois últimos versos da oração não têm propriamente aplicação ao fim a que ela visa.

Também ao Senhor de Matosinhos, protetor dos pescadores, há invocações mudas, para abrandar tempestades e fugir a riscos no mar, conforme esta crendice precisamente de Leça da Palmeira “vilinha marítima, cheia de luz, de casas brancas, postas de um lado, num areal de ouro, de outro, num rio azul” (Jornadas em Portugal, Antero de Figueiredo, p. 295). Tal crendice é assim referida por A. Ruffat, em seu livro La superstition à travers les ages (p. 236): “Les dévotes de Leça da Palmeira ont de curieuses façons de combiner leurs prières et les rites paiens des libations pour apaiser les forces de la nature: quand la mer est agitée et que les barques de pêche s’approchent imprudemment des récifs de Ia côte, elles allument des lampes à huile devant la statue du Saint, patron des marins, et vont ensuite jeter les restes de l’huile dans la mer pour faire fuir la tempête.”

A crendice fácil do povo, o seu temor aos fenômenos atmosféricos, que sua alma chã e seu espírito ignaro não podem explicar, a tendência natural em aceitar o milagre e atribuí-lo aos santos de sua devoção, tudo isso concorre para a formação de variado material de folclore religioso, representado por orações, rezas e responsos.

Só para o caso especial de abrandar trovoadas, fazer parar ou estiar a chuva, cessar os relâmpagos, fazer bom tempo — a São Jerônimo, Santo Antônio, Santa Bárbara, Santa Clara, Santa Rita, São Domingos, Santa Quitéria e ao Senhor de Matosinhos — ao todo oito santos! — se dirige o povo ingênuo e simplório de Portugal e do Brasil, exortando-lhes, de modo reverente e contrito, que “desarmem”, desfaçam, “arramem” ou afastem as trovoadas; clareiem o céu nublado e chuvoso; espalhem as nuvens túmidas e negras, e lhe tragam de novo o velho sol, quente e triunfal, dissipador de sombras, receios e temores…

NOTAS

[ 7 ] Informação colhida de Albina da Silva Neves, mãe do autor.

[Alto está e alto mora — Nótulas de folclore. Vitória: edição do autor, 1954.]

Guilherme Santos Neves foi pesquisador do folclore capixaba com vários livros e artigos publicados. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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