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Os judas

Malhação de judas. Foto Guilherme Santos Neves, anos 1940.
Malhação de judas. Foto Guilherme Santos Neves, anos 1940.

Vem de longe, lá do pó mais velho e perdido no tempo, a pitoresca tradição de malhar os judas, ao “romper da Aleluia”.

Festa pagã, diretamente ligada às “Compitales romanas”, dela se aproveitou habilidosamente a Igreja, para incutir melhor, na alma do povo, a execração ao gesto infame de Judas Iscariotes — traidor do meigo Nazareno.

No Brasil, desde cedo, o costume se infiltrou através da influência lusa, e correu séculos, propagando-se até hoje, graças à gente miúda, pois o “malhar judas” é essencialmente festa infantil.

De Sexta-feira Santa para Sábado de Aleluia, preparam-se os Judas. Há deles de todas as formas e tamanhos: uns, caprichados, vestidos com velhas roupas, gravatas e sapatos; às vezes, um chapéu no alto da cara de pano, onde se abrem, a carvão, os olhos, o nariz e uma boca enorme. Outros, mais pobres, feitos de saco de estopa cheio de palha, papel e pano; feios grotescos, monstruosos.

Foto Guilherme Santos Neves, anos 1940.
Foto Guilherme Santos Neves, anos 1940.

Amarrado a um poste, enforcado nas árvores, pendurado nos muros, o Judas aguarda, apavorante, o preciso momento de “romper a Aleluia”. E então, fogo no Judeu, que mereceu!

À grita sonora e alegre da garotada, toca-se fogo ao Judas, que é, em seguida, arrastado por corda, através das ruas e praças, e “malhado”, forte e estrepitosamente “malhado” a pau, até romper-se aos pedaços disformes, fumegantes.

Em certos recantos do Nordeste, como o testemunham os folcloristas Câmara Cascudo e Gustavo Barroso, e aqui mesmo em Vitória, como tive ocasião de presenciar — alguns Judas deixam, em versalhada mordaz e brejeira, o seu testamento — peça em que se mexe com muita gente conhecida, apontando-se-lhe os tiques, defeitos e vícios.

Este ano, nesta ilha de Nossa Senhora da Vitória — no centro da cidade (rua Sete, Gama Rosa, Afonso Brás, Vasco Coutinho, Avenida da República) e nos arrabaldes (Praia, Jucutuquara, Vila Rubim, Santo Antônio) a garotada não esqueceu o velho costume de “malhar os Judas”. Eu os vi, aos alegres garotos de minha terra, arrastando pelas ruas os Judas em farrapos, e sovando-lhe o corpo desengonçado e feio, com fúria e sanha digna dos antigos cruzados.

E assim, graças aos moleques capixabas, ainda se conserva e se conservará por muito tempo ainda, o velho e tradicional costume popular de “malhar os Judas”, mantendo-se, deste modo, aceso na alma e na consciência do nosso povo, o repúdio e o desprezo a todos os traidores, de que Judas Iscariotes é a eterna personificação.

[Artigo publicado em Folclore, Vitória-ES, n. 5, de março-abril de 1950]

Guilherme Santos Neves foi pesquisador do folclore capixaba com vários livros e artigos publicados. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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