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Oscar Gama Filho: A invenção do tempo

Ignorando que está no presente, Carlos Nejar escreveu Matusalém de Flores como uma máquina do tempo total — capaz de inventar uma época inexistente — que o levou diretamente às origens do romance. Pelo dom da ubiquidade, todas as frases de seu genial texto datam simultaneamente da novela cavaleiresca medieval Dom Quixote, da Bíblia, do romanceiro medieval em versos e do amanhã. Do hoje, não.

Com mestria, o autor se valeu do arquétipo junguiano do Dom Quixote, de Cervantes, e empregou essa fôrma para narrar as aventuras de Noe Matusalém em um contexto vanguardista e visionário.

Surpreendentemente, se o vemos por um lado, Matusalém de Flores, lançado pela Boitempo, na verdade é uma novela. Visto de outro ângulo, é um romance em estado nascente. Nejar encontrou o elo perdido, a primeira novela pré-romance brasileira, de onde o romance surgiria, se pudesse, mas que ainda não nasceu na era que ele descobriu. E esclareço: o Brasil, nascido no barroco, não produziu livros na Idade Média que não possuiu. E sempre é bom lembrar que a ação transcorre em um imperceptível século XXI.

Carlos escreveu de dentro de uma Idade Média virtual, recriando-a segundo a lei de Sam Peckinpah: “Se a lenda é melhor do que a realidade, imprima-se a lenda e esqueçamos a história.”

Ajudou-o nessa tarefa seu personagem Noe Matusalém, que sobrevive desde sempre, ao contrário do Matusalém bíblico, falecido aos 969 anos. Por encanto, talvez por licença poética, prendeu o tempo em uma garrafa de símbolos sem espaço, pois — diz o personagem —não há tempo sem espaço. Assim, conseguiu não envelhecer e pôde dar sequência às suas façanhas na cidade de Pedra das Flores, juntamente com sua amada Lídia — leia-se Dulcineia — e na companhia de seu fiel cão Crisóstomo — leia-se Sancho Pança. Entenda-se que o arquétipo em que foi inspirado o animal é extensivo, segundo o autor, também  às cadelas Baleia, criada por Graciliano Ramos em Vidas Secas, à Mila, que acompanhou Carlos Heitor Cony, e à fiel Lelé, companheira amada de Nejar durante quatorze anos. Naturalmente, Pedra das Flores fica em algum lugar do Pampa, que é a medida de todas as coisas. Pelo menos para sua cosmogonia.

Dos que foram aprisionados em sua garrafa, o principal símbolo é a palavra. Se Matusalém não morre é porque tem a palavra. Sobreviverá enquanto existirem as palavras. Qualquer homem vive pelo tempo de suas palavras. As palavras o sustentam mais do que suas carnes. Matusalém não encanece porque virou literatura. Que é a missão de todos nós. Fazer-se literatura, tornar-se literatura. Ficou encantado, e o seu encanto subsistirá enquanto houver humanidade. Seu espírito subsistirá porque foi protagonista de um romance completamente original, e suas aventuras heroicas lhe concedem graça e humanidade. E viverá sempre enquanto houver lembrança, tal qual o Quixote.

O corpo de Noe Matusalém parece ser apenas o cavalo em que o personagem se incorporou e a que a entidade estética não dá muita atenção, não lhe permitindo tomar cuidado algum com sua saúde ou com seu aspecto físico, nem ao menos envelhecer. A monástica ascese de sua triste figura serve somente para cumprir o destino literário. Vivendo em um jogo de palavras, enquanto elas existirem ele estará vivo, pois elas o sustentam. Noe Matusalém é tão ocupado que não tem tempo para envelhecer.

As imagens, alegorias, metáforas, aforismos e manipulações da realidade inundam todas as frases, deixando o leitor sem fôlego, como se estivesse diante de um filme em clips rápidos, característicos do cinema moderno. Explico: os filmes antigos eram lentos, possuíam uma ação vagarosa. O cinema contemporâneo acolheu, em sua teoria eisensteiniana da montagem, a linguagem de clips dos anúncios publicitários. Qualquer cena é completa e se constitui em uma surpresa sensorial, tal como cada frase de Matusalém de Flores, pois carrega em si imagens — no sentido literocinematográfico — eletrizantes, comoventes, surpreendentes, condensadas, que prendem a leitura à maneira de um filme-romance. Qualquer oração tem sua beleza em si e explode na cara do leitor em imagens inusitadas típicas do cinema contemporâneo.

Nejar emprega a falsa 3ª pessoa, como advogava Autran Dourado em Uma Poética de Romance: Matéria de Carpintaria —  em que o autor pensa (ou escreve o original) na 1ª pessoa mas transpõe o tempo verbal do texto para a 3ª. Ganha em proximidade, em psicologia do personagem e em envolvimento emocional.

Se é possível tocar no cerne de um romance sem espaço nem tempo, eu diria  que o romance dá um xeque-mate na física por meio do inédito que sua literatura propõe. Reproduzindo o cenário anterior ao big-bang, extinguiu o espaço e assim apagou o tempo. Sua originalidade consiste na subversão dos códigos e padrões estéticos dominantes em sua época. Ela fornece a cada criação a propriedade de se localizar simultaneamente em sua era e em um outro lugar, em um outro momento que ainda não existe, situado no futuro de um dos novos modos de vida que são propostos por ela.

A intuição de Nejar é um sentimento tão puro que chega a ser uma antecipação da infância. Presente na nossa constituição inicial, nós a perdemos lentamente à medida que, por defesa, nos fechamos. Um recém-nascido, cheio de intuição, não precisa de antecipar a infância, pois a experiencia. Matusalém de Flores é a chance oferecida ao leitor para que ele se abra continuamente para o novo que já nos é mais do que o antigo que fomos. E que a intuição traz, nos devolvendo, por meio deste romance, ao original de que agora somos feitos.

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Oscar Gama Filho é psicólogo, poeta e crítico literário com diversas obras publicadas.(Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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