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“O barco ébrio”, de Arthur Rimbaud, tradução de Oscar Gama Filho

Oscar Gama Filho optou, em sua tradução, por respeitar o esquema rímico-métrico de Rimbaud, mantendo os dodecassílabos e as rimas cruzadas do original. Detalhe: seus versos, apesar de homométricos/isométricos, são heterorrítmicos, rompendo, assim, com as regras a que o alexandrino clássico devia obediência.

O BARCO ÉBRIO

Como eu descia pelos Rios impassíveis,
Não me senti mais guiado pelos sirgadores:
Índios gritando os fizeram alvos visíveis,
Tendo-os pregado nus aos seus postes de cores.

Eu me despreocupava das equipagens,
Com algodão inglês e flamengo trigo eu ia.
Quando com os sirgadores findaram as berragens,
Os Rios me deixaram descer onde eu queria.

Nos marulhamentos das marés enraivadas,
No inverno, mais surdo que os cérebros de infantes,
Eu corri! E as Penínsulas desatracadas
Não suportaram confusões mais triunfantes.

O toró benzeu as despertações marítimas.
Mais leve que a rolha sobre as ondas dancei,
Chamando-as roladoras eternas de vítimas,
Dez noites, tolo olho dos faróis não lembrei!

A água verde penetrou meu casco de pinho,
Mais doce do que ácidas maçãs pras crianças,
E de vômitos e de manchas de azuis vinhos
Me lavou, e meu leme e âncora ao mar lança.

Banhei-me no Poema do Mar desde então,
Eu, infundido de astros, o que lactesce,
Comendo os azuis verdes; e, alva flutuação
Encantada, um afogado pensante desce;

Onde, tingindo as azulidades, delira
Um ritmo lento sob o dia em rutilores,
Mais fortes que o álcool, mais vastos do que a lira,
Fermentam ruivores amaros dos amores!

Eu sei céus rompendo em relâmpagos, e as trombas,
Ressacas, correntes: eu sei o entardecer,
A Alba exaltada como uma nação de pombas,
E vi às vezes o que o homem julgou ver!

Vi sol baixo, manchado em místicos horrores,
Coagulações violetas iluminando,
Como de dramas muito antigos os atores,
Ondas seus tremores de postigos rolando!
Sonhei a noite verde em neves deslumbradas,
Beijo em lentidões subindo aos olhos dos mares,
A circulação das seivas inusitadas,
E o acordar louro-azul do fósforo em cantares!

Segui, meses inteiros, como vacarias
Histéricas, onda batendo nos recifes,
Sem sonhar que os pés luminosos das Marias
Dobrassem, de asmáticos mares, os narizes!

Eu choquei-me, sabei vós, com incríveis Floridas
Mesclando flor com olhos de pantera e humanas
Peles! Arco-íris esticados quais bridas
Sob o horizonte do mar, em tropas glaucanas!

Eu vi nassas, grandes pântanos fermentando,
Onde há, nos juncos, Leviatã apodrecendo!
Longes indo pros abismos cataratando,
Água em meio a bonanças, em desabamentos!

Glaciar, sóis de prata, onda em nácar, céu brasante!
Naufrágios no fundo de golfos em negrume
Onde percevejos comem serpes gigantes
Que caem de árvores tortas com negros perfumes!
Queria mostrar às crianças as douradas
Da onda azul, os peixes de ouro, os peixes cantantes.
— Espumas de flores me ninaram largadas,
Ventos inefáveis me alaram por instantes.

O mar soluçante fazia o jogar brando,
E, às vezes, mártir de zona e pólo, cansado,
Me erguia a flor de sombra em ventosas lourando,
E eu ficava, qual uma mulher, ajoelhado…

Quase ilha, movendo no meu bordo as questões
E as fezes de aves de olhos louros e gritando,
Vogava eu, quando através meus frágeis cordões
Afogados desciam a dormir, recuando!…

Ora eu, barco perdido sob cabelos de angras,
Pelo furacão no éter sem ave lançado,
De quem os Monitores e os veleiros de Hansas
Não teriam a carcaça ébria d’água pescado;

Livre, esfumando, montado em brumas violetas,
Eu, que ao céu vermelhado furava qual muro
Que tenha, doce saboroso aos bons poetas,
Líquenes de sol e ranhos de azul puro;
Que corria, lúnula elétrica a manchar,
Prancha louca, escoltada a cavalos-marinhos,
Quando os julhos faziam a golpes desabar,
Nos ardentes funis, os céus ultramarinos;

Que a tremer, sentia a cinqüenta léguas uis
Do cio dos Beemotes e dos Maelstrons densos,
Fiandeiro eterno das fixidezes azuis,
A Europa de antigos parapeitos eu lembro!

Eu vi arquipélagos siderais! E ilhas
Cujos céus delirantes se abrem ao vogador:
— Nestas noites sem fundo é que a dormir te exilas,
Ó milhão de aves de ouro, ó futuro Vigor? —

Verdade, chorei muito! Albas são agoniantes.
Toda lua é atroz, todo sol, de amargar:
O acre amor me encheu de torpores inebriantes.
Ó que a quilha estoure! Ó que eu naufrague no mar!

Se eu desejo uma água de Europa, ela é o charco
Negro e frio onde para o arrebol em desmaio
Uma criança, agachada e triste, solta um barco
Frágil tal como uma borboleta de maio.

Não mais posso, ondas, banhado em vossas canseiras,
Tirar sua esteira ao condutor de algodões,
Nem cruzar o orgulho de flâmulas, bandeiras,
Nem vogar sob o olhar horrível dos pontões.

[Tradução publicada, originalmente, em Eu Conheci Rimbaud & Sete Poemas para Armar um Possível Rimbaud mesclado com O Barco ébrio/Le Bateu Ivre. Vitória, Departamento Estadual de Cultura/Fundação Ceciliano Abel de Almeida-UFES, 1989, p. 42-8.]

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Oscar Gama Filho é psicólogo, poeta e crítico literário com diversas obras publicadas.(Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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