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Pacheco, além do regionalismo mitificador

Não é fácil escrever mais um romance que tenha como núcleo uma pequena cidade brasileira, sem cair nas eternas armadilhas do regionalismo folclórico e contador de casos ou nas pesadas análises sociologizantes. Renato Pacheco, um capixaba de 55 anos, poeta, ensaísta e ficcionista, consegue fugir desse estigma em A oferta e o altar (Editora Ática, 1983, 126 páginas), obra datada de 1962, e que já se encontra em terceira edição.

O alvo do autor é Ponta d’Areia, uma cidadezinha praieira situada no extremo nordeste do Espírito Santo, em seus limites com a Bahia, cujo perfil histórico e geográfico está traçado, em linhas gerais, no prólogo do livro. Como qualquer outra cidade pequena do Interior ou do Litoral, esse espaço desconhecido da maioria dos brasileiros e desprovido de atrativos que o diferenciem de seus pares geográficos, garante sua existência com os mesmos personagens, a mesma rotina, os mesmos pequenos conflitos políticos e sociais detectados em inumeráveis comunidades. E é a partir desses elementos desprovidos de grandiosidade e recheados de lugar-comum que Renato Pacheco consegue elaborar uma narrativa de ritmo preciso, capaz de identificar a cidade no que ela tem de particular e, ao mesmo tempo, inseri-la numa perspectiva que extrapola os limites geográficos e a iguala, na mesquinharia do relacionamento humano, a outras tantas “cidades do Interior”.

De certa forma, o narrador vai traçando um mapa da cidade, elaborado cuidadosamente através de uma topografia humana que revela, em cada um dos seus “acidentes”, os traços culturais de uma província massacrada e massacrante em que a vida escorrega e se esgota nos limites da falta total de perspectiva. Na primeira parte da obra, intitulada “Mosquito filtrado, camelo engolido” e composta de quatro capítulos que se iniciam não com um título, mas com um pequeno resumo do conteúdo, à moda de Don Quijote de la Mancha, novelas e folhetins, o traçado da cidade obedece a uma certa euforia ditada pelo “tempo de eleição”. Nesse clima, vão desfilando os moradores da cidade, repartidos entre os dois partidos políticos e flagrados na sua caricaturesca maneira de ser. Os velhos políticos, os comerciantes, as solteironas, as donas de pensão, o padre idealista, o barbeiro e outras figuras reconhecíveis em qualquer outra cidade do Interior.

Na segunda parte, intitulada “Torre de Petróleo em Ponta d’Areia”, composta de cinco capítulos e construída através da mesma técnica narrativa utilizada na primeira parte, a cidade é desenhada num outro momento em que, passada a euforia das eleições, ela volta à sua rotina contando com a novidade e a perspectiva de se ver famosa através da possibilidade de o petróleo jorrar de seu solo. O aspecto curioso, e que a meu ver dá força e significação a essa narrativa, é que o autor consegue, através de um ritmo cadenciado e até certo ponto beneficamente monótono, colocar em segundo plano essas duas “ofertas” de euforia e dinamização — a eleição e a torre de petróleo — e focalizar de perto essas caricaturas humanas que habitam esse espaço sufocante. Nesse sentido, o autor é impiedoso e implacável, pois deixa de lado o provincianismo e o lirismo mítico que em geral cercam as narrativas que falam do espaço edênico das cidades pequenas, e desvenda a crueldade e antropofagia que reinam entre seus habitantes.

Os personagens, que à primeira vista são caricaturas, tipos “interioranos” etiquetados e acumulados nas prateleiras literárias e no folclore de qualquer região, estão desnudados e delineados no que têm de mais humano e, principalmente, de desumano. A articulação de situações típicas, como a maledicência das comadres e dos compadres, aqueles mesmos que os habitantes das grandes cidades insistem em ver e cantar como a boa gente do Interior, revela um compasso de insanidade capaz de sustentar, pela alienação e pela inércia, um sistema destrutivo em que o ser humano ou se rende às regras mesquinhas da comunidade, ou é obrigado a deixar esse espaço. E é essa perspicácia, resolvida literariamente de uma forma simples, pouco inovadora, mas muito inteligente, que permite a Renato Pacheco ser, ao mesmo tempo, lírico e contundente.

Ao colocar a cidade não como o palco de alguns acontecimentos, mas como a personagem principal que expõe sua face através dos personagens que habitam seus rígidos limites sociais, culturais e políticos, o autor vai delineando um mapa da solidão geográfica e humana que caracteriza e define esse espaço-personagem. Com o gesto cativante do contador de histórias que quer apenas falar das coisas que ele conhece muito de perto, o narrador vai montando um quebra-cabeças em que as peças, personificadas por tipos e situações de um Brasil bastante conhecido, têm como resultado de conjunto um panorama humano profundamente desolador. A cidade pequena é implacavelmente desmistificada como espaço de solidariedade e possibilidade de vida e assume sua verdadeira dimensão autofágica.

Por todas essas características, o romance A oferta e o altar merece a atenção do leitor interessado numa narrativa em que a história, a sociologia, a antropologia vêm como decorrência de uma narrativa harmoniosa e agradável, que acha seu equilíbrio justamente na simplicidade de um relato em que o ritmo simula a colcha de retalhos representada pelas peças que formam uma cidade do Interior e consegue, através desse recurso, ir além da banalidade e do regionalismo mitificador.

[In O Estado de São Paulo, 26/8/1983. Reprodução autorizada pelo autor.]

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Beth Brait (Elisabeth Brait) é crítica, ensaísta, professora associada da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e professora associada aposentada da Universidade de São Paulo. Fez Graduação em Letras, doutorado em Linguística, Livre-Docência em Linguística na USP; pós-doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales – Paris/França. É pesquisadora, Assessora da CAPES, do CNPq e da FAPESP; líder do GP/CNPq/PUC-SP Linguagem, Identidade e Memória; criadora e editora do periódico Bakhtiniana e da Revista de Estudos do Discurso (QUALIS A1/SCIELO/Apoio CNPq).

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